Pela primeira vez na história de 75 anos das Nações Unidas, o Conselho de Segurança está a funcionar por videoconferência. Muito criticados por falta de ação, os 15 países do órgão mais influente da ONU reúnem-se esta quinta-feira com o Secretário-geral, António Guterres, e o homem que preside ao Conselho, José Singer, da República Dominicana, deu uma entrevista exclusiva à TSF.
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Embaixador José Singer, concorda que houve até agora uma grande inércia do Conselho de Segurança relativamente à pandemia que o mundo está a viver? Está "missing in action" (desaparecido em combate), como se escrevia há dias no New York Times?
Bem, cumprimento a todos em primeiro lugar; um abraço do povo dominicano e aqui da presidência do Conselho de Segurança, pela segunda vez sob o nosso mandato. Desta vez em condições históricas. De Santo Domingo, estamos a administrar o Conselho de Segurança, algo que nunca aconteceu, graças à videoconferência. Realmente, há muito interesse em ouvir o Conselho referir-se ao maior problema que já ocorreu nas nossas gerações, que é o problema da Covid-19. Estamos a trabalhar para ter essa reunião, que está a ser discutida no Conselho. Você deve entender, antes de tudo, que eu, como presidente do Conselho, devo ser imparcial em todas as opiniões e apenas reiterar o mandato que tenho do Conselho, para o qual tenho limitações em relação às opiniões particulares da República Dominicana. É assim que isto é tratado, de forma transparente, mas sempre que falo em nome do Conselho só lhe posso dar as opiniões que emitimos no Conselho de Segurança.
Não me poderá então responder, mas este impasse, esta ausência do Conselho de Segurança pode ser imputada à Rússia por causa da insistência nas reuniões presenciais e na dificuldade em chegar a um acordo sobre o sistema de votação, com o argumento de que todas as sessões formais do Conselho de Segurança devem ocorrer dentro da câmara na ONU? Ou era a China que não queria ver discutido um assunto que nasceu na China? E o que é que o senhor embaixador pretende fazer neste mês para mudar esse estado de coisas?
Repito: a República Dominicana assumiu a presidência do Conselho em circunstâncias sem precedentes. Nas circunstâncias atuais, o nosso principal objetivo será manter a transparência e a legitimidade do Conselho, permitindo a abertura de algumas partes do programa. Você sabe que, nestas circunstâncias, tivemos que fazer coisas que não estavam escritas na Carta das Nações Unidas. Todas as reuniões que teremos serão informais. É do nosso interesse que o público saiba que sim, que o Conselho de Segurança está a trabalhar nas questões pendentes. Conseguimos chegar a um acordo sobre um método de trabalho, a presidência chinesa, que começou por enfrentar o problema durante o seu mandato - o problema do encerramento das Nações Unidas -, conseguiu chegar a um acordo entre os embaixadores, para que os mandatos e resoluções fossem escritos, que não precisávamos ir para a sala do Conselho de Segurança, de modo a cuidar da saúde de todas as nossas missões, que é a coisa mais importante de todas.
Esta terça-feira temos a primeira reunião sobre o Mali, que será aberta e novamente será chamada de videoconferência aberta e substituirá os briefings na sala. E a videoconferência fechada substituirá as consultas, a que o público não tem acesso.
O Relatório Global sobre a Crise Alimentar revela claramente que os conflitos continuam a ser dos principais fatores de insegurança alimentar e fome.
A primeira reunião com o secretário-geral vai ser na quinta-feira...
Uma primeira reunião com o secretário-geral, havendo um consenso para o encontro sobre o tema principal do secretário-geral, que é a cessação do conflito armado nesta situação de Covid-19 e como a Covid-19 afeta tudo. Mas antes o Mali ainda será discutido, a Líbia será discutida, haverá uma reunião sobre a Líbia na quarta-feira, que tem que ver com a proposta da missão que os países europeus propuseram... Isso será discutido na quarta-feira à tarde, numa sessão fechada, mas temos também o tema do Saara Ocidental, que é um tema recorrente, temos o tema da situação na região dos Grandes Lagos. O outro tema recorrente para abril é o tema do Sudão do Sul e temos questões relacionadas com o Médio Oriente. Sempre o tema da Síria, que tem três faces: política, monetária e química. Isso vai ser discutido. A grave situação no Iémen, onde 80% da população requer ajuda alimentar, dia após dia, da comunidade internacional. Também temos o habitual debate mensal sobre Israel e Palestina. Este mês também discutiremos a questão do Kosovo e a questão da Colômbia.
É isso que vai marcar a presidência dominicana?
Para a nossa segunda presidência, temos dois eventos que são muito importantes para nós: em 21 de abril, teremos uma videoconferência sobre a proteção de civis contra a fome induzida por conflitos. O briefing também coincidirá com o lançamento do Relatório Global sobre a Crise Alimentar, onde se revela claramente que os conflitos continuam a ser dos principais fatores de insegurança alimentar e fome. Este é um tópico de grande importância para o nosso país, uma vez que o Presidente dominicano, Danilo Medina, declarou o ano de 2020 como o ano da consolidação da segurança alimentar.
É lamentável que, no mundo de hoje, face ao maior problema dos últimos anos, não tenha havido cessar-fogo em todos os conflitos.
Como sabemos, a pandemia gerou uma emergência na maioria dos países, o que, sem dúvida, mudará a resposta do Estado. Temos vários oradores que é muito importante mencionar: o Diretor Geral da FAO, o Diretor Executivo do PAM e o secretário-geral do Conselho Norueguês para os Refugiados, Jan Egeland. Esperamos adotar uma declaração da presidência do Conselho após essa reunião e, finalmente, o programa dominicano terá um debate aberto que deverá ser convertido numa videoconferência, sobre paz e segurança dos jovens, a 27 de abril, com o objetivo de fornecer uma plataforma aos Estados-membros. Faremos um balanço do progresso alcançado em relação à implementação de resoluções relevantes e partilharemos as melhores práticas e lições aprendidas a nível nacional e regional, bem como discutiremos recomendações e prioridades de ação nesse sentido. Nessa reunião, teremos o secretário-geral como o principal orador.
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O senhor falou de segurança alimentar. Pode a pandemia constituir uma ameaça à segurança alimentar mas também à paz e segurança internacional, como defendeu a Estónia junto do Conselho de Segurança, não tendo tido apoio para essa proposta?
Sim. Como República Dominicana, somos muito conscientes do perigo para a segurança alimentar e é por isso que é muito importante o debate que teremos no dia 21. Mas a pandemia afetará todas as missões e todos os conflitos. É lamentável que, no mundo de hoje, face ao maior problema dos últimos anos, não tenha havido cessar-fogo em todos esses conflitos e vemos que os problemas continuam como se nada estivesse a acontecer. E, portanto, todos, todos mesmo, temos que apoiar o Secretário-Geral no seu apelo ao mundo.
Todo o mundo está a competir por máscaras, todos estão a competir por ventiladores. Imagine-se em nações em desenvolvimento!
É certo que estamos a viver um tempo excecional. Mas não concorda com o Embaixador da Rússia, quando afirma que, nas circunstâncias atuais, é importante mostrar ao resto do mundo que o Conselho de Segurança está a funcionar, tendo proposto manter as reuniões presenciais?
Bem, é isso que estamos a fazer, daí as reuniões por videoconferência, porque é muito importante que não nos retiremos e continuemos a atender a todos esses problemas que agora, eu diria que, com o problema da pandemia, se duplicaram ou triplicaram, porque agora as soluções não estão à mão. Todo o mundo está a competir por máscaras, todos estão a competir por ventiladores. Imagine-se em nações em desenvolvimento! Como competimos com grandes nações? Portanto, a ideia do secretário-geral é de que precisamos de uma abordagem global do problema em vez da forma como está a ser tratado.
É necessário um grande exercício de criatividade da parte do Conselho de Segurança e do seu presidente para propor um termo que não seja "vírus Wuhan" ou "vírus chinês", como o presidente Trump e o secretário de Estado Mike Pompeo lhe têm repetidamente chamado, de modo a poder desbloquear o debate no Conselho?
Bem, para nós Covid-19 é o termo certo e não vamos sair daí, é o termo que estamos a usar. Cada nação individualmente pode dizer diferentemente, mas através da presidência do Conselho, nós chamamos Covid-19.
Conseguir o que a China conseguiu é muito importante.
O Conselho em março, durante a presidência chinesa, esteve algum tempo sem se reunir e sem falar sobre este tema da pandemia. Deveria o secretário-geral ter submetido um relatório formal ao Conselho de Segurança sobre este tema?
Isso deve ser perguntado ao próprio, tenho muito pouca resposta para isso. Deixe-me dizer-lhe: a presidência da China foi bastante eficiente nas circunstâncias em que conseguiu realizar reuniões e incorporar a tecnologia. Não era uma coisa 100%; ninguém estava preparado para isto. Mas eles alcançaram-no, o que é de grande importância, conseguimos estender mandatos sob um esquema informal, mas convertendo através de cartas que distribuímos e ratificamos o nosso voto e qualquer resolução que possa ser apresentada. Não prevemos nenhuma resolução ou extensão de mandato na nossa presidência, mas acredito que qualquer nação que tivesse enfrentado o mesmo desafio que a presidência chinesa teria os mesmos problemas. Conseguir o que a China conseguiu é muito importante; a importância da renovação de mandatos e resoluções é fundamental para as operações de paz e segurança.
A resposta ao ébola levou um ano e meio ou dois anos; foi diferente porque aconteceu num lugar tão remoto.
Vai apoiar a iniciativa de seis governos, creio que Gana, Indonésia, Liechtenstein, Noruega, Suíça e Singapura, que propuseram à Assembleia Geral uma resolução que realce o "papel central" da ONU na abordagem das crises. No sexta-feira, os copatrocinadores já tinham conseguido assinaturas de apoio à medida por parte de 147 países. O senhor apoia esta iniciativa?
Como presidente do Conselho de Segurança não, mas o meu país apoiou e apoiará essa iniciativa na Assembleia Geral.
Nesta altura, ainda acredita que seja possível produzir uma ação mais coerente e conjunta, como aconteceu na resposta anterior do Conselho de Segurança às ameaças internacionais, dos atentados do 11 de setembro à epidemia de ébola de 2014?
Como presidente do Conselho, farei todos os esforços para que tal aconteça. Mas eu dependo do mandato que os outros 14 amigos me deram. Não posso falar sem a autorização deles. Agora, eu lembro, - não para ser negativo ou qualquer coisa do tipo, pois tenho uma expectativa de que isso seja feito - a resposta ao ébola levou um ano e meio ou dois anos; foi diferente porque aconteceu num lugar tão remoto. O multilateralismo é uma realidade. É o melhor que existe no mundo, mas tem a sua realidade e todos nós a vivemos e por vezes frustramo-nos. Mas tem tantas coisas boas! As Nações Unidas são uma instituição excecional que ajuda milhões e milhões de pessoas e é o único lugar que ainda junta 120 presidentes uma vez por ano. De que outro sítio ou instituição poderíamos dizer isso, entende? Temos que colocar as coisas em contexto, a história existe, a realidade existe e temos que viver essa realidade.
Quanto tempo essa pandemia dure e os danos económicos que ela cause às nações serão indicativos do que aprendemos e do que não aprendemos.
Esta crise pandémica é mais uma facada no multilateralismo ou, por outro lado, acredita que possa vir a dar uma renovada força ao concerto das nações?
Bem, acho que é uma grande lição que apanhou todos desprevenidos, uma grande lição mesmo e acredito que esta não será nem a primeira nem a última pandemia. Acho que todos aprenderemos muito com tudo o que aconteceu e principalmente muitas nações que nunca estiveram preparadas para algo assim, que só vimos no cinema ou olhando para a história em 1918. Ninguém pensou que, neste mundo moderno e conectado, onde todas as mortes são contadas nas redes sociais, isto fosse acontecer, certo? Mas isto é algo que parou todas as economias do mundo. Quanto tempo essa pandemia dure e os danos económicos que ela cause às nações serão indicativos do que aprendemos e do que não aprendemos. Contudo, com a ajuda de Deus, esperamos que a ciência encontre uma cura com uma vacina. Mas estamos todos a lutar contra o tempo, todas as nações. A República Dominicana estabeleceu um prazo máximo de 60 dias para encontrar soluções económicas; nós não temos a facilidade das nações mais desenvolvidas para emitir dinheiro e nosso Presidente está a fazer um trabalho tremendo para manter e alimentar todos os que não estão a trabalhar. Indubitavelmente, alimenta a população.
Temos que ter um grande coração e uma grande vontade política.
Como é que está a viver a população da República Dominicana esta crise?
Bem, para nós, o turismo é o recurso mais importante, que resistirá algum tempo, mas teremos que adaptá-lo à crise. Quer dizer, não há mais nada a fazer. O mais importante agora é a saúde das pessoas. Número um: alimentar as pessoas mais carentes. Foi o que o nosso Presidente disse, esse é o seu ângulo mais importante e acredito que todos os países estão na mesma linha. Muitos de nós não têm os recursos que outros têm. Quero acreditar que as organizações internacionais de empréstimo serão generosas e compreensivas com a situação que existe. É a realidade.
O que é que é mais necessário para que as Nações Unidas cumpram o seu papel?
Nações Unidas... O que dizem em inglês: Vontade política! Essa vontade política deve prevalecer, porque, acima de tudo, há vidas humanas, seres humanos e eu exorto o mundo e outros líderes: essa vontade política deve atingir os nossos corações, porque esta epidemia não conhece nome nem sobrenome, ricos ou pobres, afeta todos e afeta principalmente as pessoas idosas e as pessoas com problemas de saúde. Por outras palavras, aqueles que são os mais vulneráveis. Eles são tudo o que nos ensinaram e é por isso que temos que ter um grande coração e uma grande vontade política.