Inspirados na Revolução dos Cravos, dez oficiais espanhóis criaram a União Militar Democrática, um grupo clandestino de democratas num Exército franquista
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Naquela quinta-feira, 25 de abril de 1974, Xosé Fortes, galego, capitão do exército espanhol, passou a manhã a ouvir rádios portuguesas. “Foi uma emoção enorme. O 25 de Abril foi muito importante porque nos convenceu de que há sempre alguma coisa que se pode fazer”, diz Fortes. “Não nos transformou em democratas, porque nós já o éramos, mas percebemos que podíamos fazer alguma coisa por isso, porque estávamos convencidos de que até que morresse o Franco não se podia fazer nada.”
Naquele dia, ouviu como os militares entraram em Lisboa, como Marcelo Caetano se rendeu no Quartel do Carmo, como o povo saiu à rua e acompanhou os militares naquela onda de liberdade. “Portugal era uma festa.”
Os ventos que chegavam de Portugal serviram de inspiração do outro lado da fronteira, mas sabiam que repetir o mesmo em Espanha era impossível. “Primeiro porque aqui não tínhamos uma guerra colonial que motivasse o descontentamento dos militares. E, segundo, porque o exército português não vinha de uma guerra civil. O nosso vinha de uma guerra civil de três anos na qual se tinha expulsado do Exército todos os militares republicanos, por isso o Exército espanhol era todo do 18 de Julho [dia do golpe de Estado espanhol].”
Fizeram contactos com o exército português e reuniram-se com alguns capitães de Abril, “que também estavam preocupados pelo pacto ibérico, tinham medo de que Espanha tentasse interferir nos assuntos portugueses”. Se uma Revolução não era possível em Espanha, acreditavam que pelo menos podiam começar a mudar mentalidades para depois alcançarem os objetivos reais: eleições, um sistema democrático e uma Constituição.
Semear a democracia
Em setembro de 1974, formaram a União Militar Democrática. Começaram por ser dez, mas rapidamente se espalharam pelo país. Escolheram os que tinham estudos, com uma vida para além do Exército e uma mente mais aberta. Foram-se juntando e chegaram a ser 200.
“Os que apoiavam o movimento eram muitos mais, mas nem todos tinham condições para dar a cara. Muitos viviam na residência militar, não tinham outra forma de vida e se os expulsassem do Exército iam ficar em condições muito difíceis”, lembra.
O objetivo era semear as ideias democráticas no Exército para que deixasse de ser um aliado do franquismo. “O grande inimigo de que este país pudesse chegar à democracia por via eleitoral era o Exército. Por isso o que nós queríamos era molhar a pólvora, ou seja, que a intervenção militar fosse impossível, que era o mal deste país, que sempre se habituou a ver como o Exército era o motor das mudanças políticas. Tínhamos de enfrentar os fascistas e fazer-lhes ver que o Exército era outra coisa, não era isso que eles pensavam.”
A 28 de julho de 1975, às 06h20, seis agentes da Guardia Civil entraram em casa de Fortes para o prender. “Sabíamos que íamos ser presos. Sabíamos todos. Mas era o que tínhamos que fazer e, no nosso entender, não o fazer era uma cobardia”, conta.
Os dez foram submetidos a um conselho de guerra e condenados a 4 anos de prisão. “Acusaram-nos de expandir o pensamento democrático nas Forças Armadas, de lutar contra a ideologização das Forças Armadas”, diz com ironia.
Julgamento
O julgamento foi um processo sem garantias, com momentos de agressividade. “Houve um momento em que pensei que nos penduravam. Na declaração final, quando falámos de democracia, de direitos humanos, levantaram-se todos, chamaram-nos de traidores... Achei que nos iam linchar, porque eram cento e poucos militares, dos mais ultras, que tinham sido selecionados para assistir ao Conselho de Guerra e foi um espetáculo aterrador.”
No final só cumpriram apenas um ano de pena, mas foram expulsos do exército e a mancha da “traição” ficou. “Na sociedade civil, não, mas no Exército, sim”, explica. “Tentaram passar a ideia de que tudo teria corrido bem se nós não tivéssemos sido uns traidores do franquismo. E efetivamente, nós traímos o franquismo, claro que traímos o franquismo! Nós não éramos franquistas!”, diz com orgulho.
“Mas ainda hoje o Exército tem no Franco uma espécie de herói de Espanha, que lutou contra o comunismo... é uma coisa que vai acabar por desaparecer, mas muito pouco a pouco. Porque é uma organização muito fechada, e os filhos respiram da mesma forma que os seus pais”, atira.
Só em 2009 o seu papel foi reconhecido oficialmente, com a entrega da medalha ao mérito militar, por Carme Chacón, ministra da Defesa do governo de José Luís Zapatero. Depois de ter sido expulso do exército, Fortes centrou-se na sua carreira académica e a lembrar em cada ano aquele 25 de Abril, que abriu uma fresta de esperança no exército espanhol. “Nós temos a desgraça de ter uma data como vocês com o 25 de Abril. A marcha pela avenida da Liberdade, é maravilhosa, sempre.”
Tal como temiam aqueles militares, a democracia espanhola só haveria de chegar depois da morte de Franco. Mas a União Militar Democrática já tinha dado o primeiro abanão ao regime.
