"A Turquia nunca foi um país muito calmo. Mas é inédito tamanho grau de loucura"
Ece Temelkuran é jornalista e escritora turca. Autora de "Unidos" e "Como Perder Um País", já publicou no The Guardian, New York Times e Der Spiegel, entre outros. Crítica de Erdogan, não conseguiu continuar a viver no país.
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Ao conversarmos com a escritora turca Ece Temelkuran, durante o ultimo Fólio, encontro de escritores em Óbidos, começámos por querer saber como viveu o momento que acabou por determinar a sua saída do país.
O que aconteceu na Turquia em 16 de julho de 2016 (aliás, o autor deste texto chegou lá na manhã do dia 18), a tentativa de golpe ou suposto golpe de Estado pode ajudar-nos a entender que tipo de país é a Turquia hoje?
Bem, o golpe de Estado não ajudaria porque foi realmente um pouco caótico. E, ainda assim, não sabemos realmente o que realmente aconteceu durante o golpe. Porque, sabe, os jornalistas turcos e os média turcos estão sob opressão massiva vinda do governo. Portanto, não temos realmente um relato detalhado dos bastidores desse golpe de estado. No entanto, acho que o golpe de estado, seja o que for que tenha acontecido, durante aquela noite, o próprio golpe de estado foi utilizado pelo governo para criar uma opressão maior. Então, antes do golpe, e daquela noite em diante, criticar o governo, que já era bastante difícil, tornou-se absolutamente impossível. Portanto, foi uma grande purga para os dissidentes, para a oposição, e ainda sofremos com isso após cinco anos.
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A ideia do governo do AKP foi culpar pelo que aconteceu o movimento de Fatullah Gülen. Mas a reação do regime não se dirigiu apenas ao movimento gulenista, aproveitaram a oportunidade e passaram a ter como alvo todos os opositores...
Absolutamente. O movimento de Fatullah Gülen é um aliado do governo há muito tempo. Na verdade, eles foram o poder político e social por trás desse governo durante muito tempo, pelo menos até 2016. Foi assim até ao golpe de Estado; então, foi uma luta pelo poder o que aconteceu entre o Movimento gulenista e o governo do Sr. Erdogan. Com o golpe de estado e durante aquela noite, houve uma grande e majestosa separação, por assim dizer, entre os dois poderes. E então, sim, foi utilizado e é por isso que digo utilizado, o golpe de Estado foi utilizado não apenas para atingir o movimento Fatullah Gulen, mas também todas as outras forças progressistas de esquerda. É por isso que foi uma grande purga, que ainda está a acontecer.
Que tipo de informação tem do seu país nesta altura? Por que é que diz que ainda está a acontecer?
Só hoje, a partir desta manhã, como sabe, há algumas horas, testemunhámos que há uma grande purga nas universidades turcas. Chegam a colocar sob custódia pessoas que recolhem lixo. Muitas outras coisas têm acontecido. Isto foi apenas numa manhã. A Turquia nunca foi um país muito sereno e calmo. Mas acho que é a primeira vez que testemunhamos tamanho grau de loucura. E, além disso, também estamos a passar por uma crise económica. A moeda turca perdeu o seu valor drasticamente desde ontem, e as pessoas estão a ficar cada vez mais pobres, a cada minuto. Então, é uma loucura. Isso é o que eu posso dizer, aquilo que penso.
Estamos a falar a 23 de outubro de 2021. Foi em 2016, quando aconteceu aquele suposto golpe de estado, que decidiu abandonar o país. Porquê?
Bem, para pessoas como eu, a Turquia tem sido um país difícil, especialmente desde o segundo mandato do poder do AKP. Eles são pragmáticos radicais, eles mudam a sua visão das coisas. Eles mudam de aliados constantemente. E de cada vez, há vítimas políticas, por assim dizer. Então, pessoas como eu, que criticamos o governo desde o início, e que alertam as outras pessoas sobre as intenções autoritárias desse governo, estão sob constante opressão. E temos perdido os nossos empregos. Perdi o meu emprego em 2012, porque escrevi um artigo sobre um massacre na fronteira do Iraque com a Turquia, que chamamos de massacre de Uludere in Sirnak. Uma dúzia de crianças foram mortas, acidentalmente, pelo exército turco, e aconteceu eu escrever sobre isso. Então, perdi o meu emprego. E na época foi um grande estigma, porque perdi o emprego por motivos políticos, e ninguém me iria contratar. A partir daí, tudo se tornou cada vez mais difícil, a cada dia. Mas depois de 2016, era óbvio que não haveria a possibilidade de pessoas como eu viverem uma vida pacífica. E é por isso que eu quis deixar o país, para escrever livros e para pensar num ambiente mais calmo.
Como descreve o regime de Erdogan nesta altura? É uma liderança populista?
Embora ele certamente tenha usado ferramentas políticas populistas até ao limite, eu também o consideraria um regime autoritário em pleno vigor. E também é um one man show, obviamente. Ele entra na solidão do ditador, mais e mais, a cada dia que passa. Então, eu considero que se trata de um regime autoritário.
No seu livro "How To Loose a Country" identifica uma recorrência de padrões globais de populismo, quais são eles?
Bem, o livro "Como Perder Um País" trata de sete padrões globais de populismo e autoritarismo de direita. Não quero contá-los, não quero estragar o livro para quem ainda não o leu, mas o primeiro é, bem... escrevi o livro como um manual para um ditador principiante. Então...
Fala sobre sete passos que fazem de figuras ridículas autocratas intimidantes...
Sim absolutamente. E então, é assim: eles criam um movimento, eles não estabelecem ou fundam um partido. E então pedem respeito, o que os torna automaticamente inquestionáveis. E depois perdem a vergonha e mobilizam a ignorância, organizam e mobilizam a ignorância para escolhas contra os interesses da sociedade. E depois desmantelam o sistema judiciário, obviamente, e visam os jornalistas e assim por diante, há sete passos comuns que um ditador dá em direção ao poder final.
Como é que esses autocratas ou ditadores podem ser vencidos? E como se podem unir forças num sentido coletivo?
Foi para responder a essa pergunta que escrevi o livro "Unidos: 10 escolhas para um AGORA melhor". Bem, é óbvio dizer que temos que nos organizar, unir-nos e construir coligações e assim por diante. Mas hoje estamos a experimentar um discurso extremamente divisivo entre os progressistas, estamos a falar principalmente sobre como somos diferentes uns dos outros. Considerando que devemos falar sobre os nossos pontos comuns que partilhamos. E acho que as pessoas perderam a fé na democracia e também em si mesmas. E este é um fenómeno global, penso. E é por isso que tento restaurar a fé na democracia e a fé na humanidade para que possamos organizar-nos e mobilizar as forças progressistas do mundo.
Nesse livro, a Ece escreve: é o momento de acreditar que somos melhores que galinhas sem cabeça que o nosso destino é a beleza. E não devemos esperar tempos melhores para ter esperança. Porque é que diz que o momento é agora?
Bem, porque já é tarde demais. Não estamos apenas a lidar com um aumento global do autoritarismo, mas também com o fato de que o planeta está a morrer. Portanto, não há momento melhor do que agora, e acho que para a geração jovem, especialmente, será tarde demais se continuarmos a adiar o último momento ou a última possibilidade. Então, sim, agora. Não é mais tarde, é agora, com certeza.
Começa o livro com uma palavra ou conceito para encontrar novas soluções para problemas conhecidos: crise do capitalismo, o aumento da crise climática, populismo de direita. Portanto, dez capítulos resultaram, como diz, na restauração da fé nos seres humanos. Porque é que diz fé em vez de esperança?
Porque a esperança é muito frágil para estes tempos difíceis e a fé é irrefutável.
Porquê escolher a realidade complexa?
Temos tanto medo da realidade... isso é algo que nos é imposto. Se nos aproximarmos da realidade, veremos que não é só dolorosa, também pode ser inspiradora.
Porquê escolher o medo como amigo?
Vivemos em constante medo. E esta é a era do medo. Portanto, temos que colocar os nossos medos pessoais numa perspectiva realista para os conseguirmos gerir.
Enfrentar o medo...
Não é bem enfrentar é fazer amizade com ele, é mais ambicioso ainda.
Porquê escolher a dignidade em vez do orgulho?
Orgulho é uma palavra violenta e geralmente usada por líderes autoritários; dignidade é uma palavra pacífica que sempre clama pela unidade da humanidade.
Atenção em vez de raiva?
A raiva tornou-se uma mercadoria nas redes sociais, da qual apenas as empresas dessas redes lucram. Portanto, não é mais uma emoção política da qual possamos depender se queremos mobilizar as pessoas. Então eu escolho a atenção, atenção determinada em vez de expressão excessiva de raiva.
Força em vez de poder?
O poder é a força masculina; a força é feminina e o século 21 será feminino.
O suficiente em vez de menos?
Esse capítulo é sobre economia e fala sobre a necessidade de regular o mercado. Estamos a viver numa era muito complexa. Portanto, produzir ou consumir menos não resolveria nossos problemas, o que precisamos é de uma economia democraticamente regulada.
Recife em vez de um naufrágio?
Penso que os novos movimentos políticos não podem encontrar abrigo na política convencional, mas têm que acomodar as instituições políticas tradicionais a fim os transformar; da destruição passa a vida.
Afirma... escolher a amizade...
Sim, a amizade tem sido um conceito político e filosófico desde Aristótoles e eu quis reviver esse conceito em termos de política, porque até agora, a nossa ligação um com o outro, seja cidadania ou filiação política, não está preenche as necessidades. Portanto, a política das emoções é necessária para os progressistas de hoje e pensei que a amizade poderia ser um dos conceitos centrais que podem reviver a nossa compreensão da política das emoções como progressistas.
Escolher estar unidos...
Bem, é irónico que estejamos a falar sobre isso após um ano em que todos estávamos sozinhos. E vejo a falta de vontade de nos reunirmos, ultimamente. Então sim, quando estivermos juntos não significaremos nada se não formos uma massa, um coletivo a exigir um mundo mais igual e justo.
Realmente pensa que a humanidade foi capaz de aprender algumas lições com essa pandemia?
Não. Alguns de nós sim, alguns de nós não. Mas toda a crise é uma oportunidade, é um momento em que o mal e o bem se cristalizam e porque isso aconteceu durante a pandemia também nós vimos o melhor e o pior da humanidade, mas opto por me concentrar no bem, em ver como podemos mobilizar as pessoas para um futuro melhor, penso eu.
Lutar contra as desigualdades, adotar abordagens antirracistas para a sociedade, a ação climática. Serão as novas e mais importantes causas comuns?
Absolutamente, acho que um mundo com dignidade pode ser a base, o terreno comum, para todo o movimento político hoje, porque dignidade é uma palavra muito mágica que pode cortar as diferenças de classe, que pode cortar as diferenças de identidade, e que pode reunir a procura por um planeta melhor e por um sistema político melhor.
