A morgue da cidade da Beira está sobrelotada, é difícil receber tantos mortos. Manuel Gerimoio trabalha há 20 anos aqui, mas nunca viu nada parecido.
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A Beira é uma cidade de corvos, mas ali junto à morgue arrepiam. Não a Manuel Gerimoio, que faz isto há 20 anos, controla as entradas e saídas da morgue que fica junto ao Hospital Central da Beira. Admite que não é fácil. Aos 49 anos, e com um ofício tão derradeiro, Manuel Gerimoio não desgosta de filosofar, "cada um que está no seu serviço diz que o serviço custa, o outro olha o serviço do outro e acha que é serviço fácil".
Se já não é fácil controlar os cadáveres no breve circuito entre o hospital, a casa mortuária e a sala religiosa onde se recolhem os corpos para o funeral, nada se compara com o que foi a última semana. "Nunca vi, se calhar houve pior, mas nos tempos de cólera ainda não estava cá."
Além de difícil, a última semana foi única na vida de Manuel Gerimoio, "a demanda foi demais". Fica sempre triste porque todos são concidadãos, mas desta vez sabe que podia estar, literalmente, no lugar do morto. Em vez disso, "recebi famílias, recebi parentes", o sogro de José passou por aqui, "ficou debaixo de uma parede", vivia com a mulher na zona de Nhancala. A sogra de Manuel está agora a viver em casa de vizinhos.
Na casa do contador de cadáveres ficaram todos bem, fica ali para os lados de Cerâmica. Tem oito filhos que se organizam em escadinhas, "começa nos 25 e o último tem quatro anos".
Manuel muda rapidamente o semblante de orgulhoso para angustiado: "Até houve uma tristeza para uma casa que perdeu três filhos." De uma vez, a parede caiu sobre eles. A mãe está ferida e os três filhos morreram, "um rapaz de quatro anos e duas raparigas gémeas, de dois anos". "Na minha casa só saíram duas chapas do telhado", conta.
Estar vivo consola, este é um serviço difícil, mas "é o melhor para mim". E diz que também não trocava: "Tenho amor a este serviço, é como posso ajudar as pessoas."
Gerimoio não sabe ao certo quantos cadáveres entraram na morgue durante a última semana, foi tanto corpo que decidiram só contabilizar quem veio de fora e esses "foram uns 85".
"São muitos mortos"
Só se entra na morgue com autorização expressa do município da Beira, que é quem gere o serviço, por isso, o chefe das instalações, José Roberto, lá abre a porta a contragosto. Desmente tudo: "Não, não está esgotada. Não, não há problema. Sim, temos funcionado com toda a normalidade. Não, não temos problemas de refrigeração."
Como quem quer provar tudo de uma vez puxa-nos para dentro da sala. Agora, não se pode dar parte fraca. Está parcialmente destelhada e coberta com lonas. Felizmente, senão o cheiro abatia-nos como um raio. O funcionário puxa um pouco mais e abre, subitamente, a primeira das 24 portas câmaras frigoríficas. Estão, de facto, quatro corpos em cada uma. Não está frio, há toalhas ensopadas junto a algumas portas, de resto, está normal para uma morgue em tempo de catástrofe.
"Assim não se consegue gerir a morgue, são muitos mortos", contrapõe o vereador do Conselho Municipal da Beira. Foi José Manuel Moisés quem nos autorizou a visita e nos recebe agora. É rápido a reconhecer os problemas, "dentro da nossa capacidade pomos um corpo em cada gaveta, mas às vezes na última semana chegámos a inserir três corpos por gaveta".
Também está muito calor e não há eletricidade para refrigeração, é por isso que as autoridades estão a pedir às famílias para fazerem os enterros o mais depressa possível. Quando são muçulmanos não é difícil, já os cristãos pedem tempo. Mas isto era se se soubéssemos a religião destes mortos ou se aparecessem familiares a exigirem rituais.
O vereador reconhece que "muitos vão para valas comuns", que é a zona do cemitério da Beira para onde vão os mortos sem nome, "os anónimos".
"A potência do gerador não abrange todas as gavetas", explica José Manuel Moisés, sem saber que explica também o cheiro. "Vamos fornecendo energia e frio por partes." Só não há colapso porque o serviço de medicina geral do hospital evita enviar mortos para esta morgue.
À pressa, este dirigente municipal justifica por que motivos já não se cumprem as duas semanas da lei. Agora os corpos não reclamados vão mais depressa para valas comuns, "temos de libertar espaço", diz o vereador a pedir desculpa com um encolher de ombros.
"A situação é dramática"
Neste pequeno espaço também é fácil perceber o que mudou em tão poucos dias. Primeiro entraram as vítimas do ciclone Idai, mas nos últimos dias chegam cada vez mais vítimas das cheias. "A situação é dramática", conta o vereador, "são recuperados corpos a flutuar e outros encalhados".
Da parte dos vivos, a morgue continua a ter muita procura mas divide-se. Uns procuram familiares desaparecidos algures numa zona submersa da província de Sofala, os que aqui não passam é porque foram antes à procura de quem chegou à Beira de barco ou de helicóptero. Só cá chegam os que tiveram azar.
Não se sabe, e possivelmente nunca se saberá exatamente, quantos nem quem morreu nesta catástrofe dupla. José Manuel Moisés concorda: "Os nossos registos não são eficientes, há um grande défice e é lógico que aparecem corpos não identificados."
Uma ideia que chegou a ser ponderada era a de divulgar a imprensa ou na rádio características das vítimas mortais não identificadas, mas era difícil, "sem identificação" e também é muita gente. Ao certo ainda não há registo oficial, mas aponta-se para mais de 100 mortos numa semana aqui na morgue.
Ainda fica a faltar muita gente se compararmos com o número oficial de vítimas e faltará muito mais se seguirmos o pragmatismo do vereador: "Tenho a certeza de que nunca se saberá quantas pessoas morreram, há corpos que desaparecem nas águas."
Pessoas que nunca foram registadas, que nunca entraram em nenhum censo e que desapareceram à margem da vida oficial.