A voz das favelas precisa de ouvidos (e lança farpas à esquerda presa a Marx)
No Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, reivindicam-se ouvidos para as vozes que há muito vêm tentando ocupar o espaço público. Há esperança na vitória de Lula, mas reconhece-se que a direita sabe trabalhar melhor o povo: "A esquerda ainda está no encantamento de falar sobre o Marx. Nem ele acredita já naquele bagulho que ele falava..."
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É no "beco laranjinha", perto da boca da favela do Parque União, no Complexo da Maré, que a organização não-governamental Movimentos faz o seu trabalho dia-a-dia. E não é coisa pouca: ampliar as vozes dos jovens favelados, com todas as camadas que essa amplificação pode e deve ter.
Quando a pergunta é sobre o maior problema que a favela tem para resolver neste momento, a resposta é relativamente simples e Thaynara Santos, coordenadora da comunicação desta ONG, não tem dúvidas em afirmar que é a segurança pública, aliada, claro, ao "abandono e precarização". Afinal, no Rio há uma dualidade para tudo: "Quando há uma operação [policial] aqui, não há aulas, as clínicas da família não abrem. Você para tudo, para a sua vida, e isso não acontece na Zona Sul, em Copacabana ou Ipanema isso nunca vai acontecer", constata a jovem sempre de sorriso na cara.
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Fora da sede de três andares, tão natural como beber uma cerveja no boteco ou comprar uma fruta no mercado, é o corrupio de motas e não é de estranhar ver um homem na esquina com uma metralhadora na mão. Para quem passa a primeira vez, choca, para quem lá vive, é só mais uma segunda-feira.
E no entretanto, quando se começa a desenrolar o novelo, não dá só para apontar a segurança como maior problema. Ricardo Fernandes, coordenador de arte e cultura da Movimentos, volta à dualidade de critérios bastante gritantes nesta sociedade brasileira ao notar que "existem pessoas que, além de terem dinheiro, têm todos os seus direitos garantidos, e existem pessoas que não têm nenhum dos seus direitos garantidos".
"Não é o direito a coisas que podem ser consideradas de conforto ou de luxo, é o direito ao básico do básico do básico. Você perceber que o que está em negociação, a cada eleição, são os seus direitos básicos, é desesperador", realça o também ator e homem do teatro. "Você não tem perspetiva de permanecer tendo aquele médio ou pouco que tem, é essa a questão que está sempre em discussão. É uma gestão entrar - municipal, estadual e federal -, e todo aquele pouco se perder porque aquilo pertence a outra gestão, a outra pessoa", critica.
É precisamente no tema da gestão que Ricardo mais demora enquanto retira um pão de queijo do prato que, amavelmente, a ONG preparou para esta entrevista. Afinal, a origem de tudo remonta há alguns séculos. "Chega uma gestão que tem um olhar mais sensível sobre a Maré e aí vai fazer, mas isso não tem de ser uma gestão, tem de ser um plano estatal. O Brasil precisa de ter planos estatais além do que tem... Um plano estatal que o Brasil tem é a normalidade sobre a morte de pessoas pretas e faveladas, isso é um plano, um projeto", destaca.
"Essas pessoas eram mortas em 1500 e, então, essas pessoas podem ser mortas hoje; há cento e poucos anos essas pessoas estavam algemadas, andando pela rua e pertencendo a alguém. Isso não é visto como uma tragédia, isso pode repetir-se hoje sem ser uma tragédia", lamenta Ricardo, lembrando que na Alemanha há memoriais para lembrar as atrocidades do holocausto, mas que no Brasil a escravidão não é pensada dessa forma. "A escravidão é vista como um processo de colonização de um país... É visto como um processo só que não é um processo, é uma atrocidade absurda que desenvolveu um país para ele ser o que é hoje".
A meio, Thaynara lembra-se de outro grande problema. O saneamento básico inexistente para muitos dos moradores da favela, adiante lembra-se que não se lembra de espaços culturais a existir no Parque União, apenas um e apenas porque outro coletivo assumiu a responsabilidade.
Voz? Não, ouvidos (e uma esquerda que não também não ouve)
Para Thaynara, a Movimentos é "uma ferramenta". "Trabalhamos muito com educação, comunicação, e o nosso principal objetivo é que os jovens da favela entendam que têm diferentes possibilidades de futuro, que conseguem ter pensamento crítico, que são capazes de muito e que a realidade deles não é limitada pelas questões que os cercam."
Não é coisa pouca e Ricardo sintetiza: "Às vezes, tem uma frase que as pessoas dizem e que é a de 'dar voz às pessoas da favela', só que o que as pessoas de fora da favela precisam de dar são os seus ouvidos para ouvir o que as vozes da favela já estão falando há tanto tempo. Algumas estão muito cansadas, o Movimentos está aqui para, em muitos momentos, renovar a energia de quem está a falar há muito mais tempo."
A conversa flui e, partindo para o óbvio tema das eleições, estas pessoas que estão assumidamente com Lula, não param para pensar duas vezes na crítica que têm a fazer à esquerda brasileira. Mas, primeiro, vamos a Bolsonaro.
De acordo com o jornal Extra, no primeiro turno das eleições, Jair Bolsonaro não foi além dos 36,8% no Complexo da Maré, Lula foi o grande vencedor com 56% dos votos. No entanto, várias favelas do Grande Rio votaram maioritariamente em Bolsonaro contra aquilo que, talvez, numa ótica mais ingénua se poderia achar. Afinal, é recorrente a associação feita pelo presidente brasileiro entre favelas e bandidos.
No dia-a-dia do Parque União, Ricardo diz-nos que visivelmente a expressão popular está com Lula, mas os apoiantes de Bolsonaro estão lá. "Uma manifestação do bolsonarismo dentro das favelas não seria bem aceite. O bolsonarismo opõe-se aos coordenadores das favelas, não daria para o pessoal ficar ali. Imagina uma manifestação de bolsonaristas a falar que bandido bom é bandido morto", diz, rindo-se, pensando na reação que esta poderia ter nas ruas.
Mas Bolsonaro está como que omnipresente. "Ele não precisa de estar aqui presencialmente, ele é literalmente uma ideia, uma ideia virtual, ele está no grupo do WhatsApp", aponta Ricardo lembrando que, com os tópicos de defesa da família colocados de forma bastante simplista e populista, leva a que as pessoas passem a "inclinar-se para o bolsonarismo" e "passem a acreditar em tudo o que o bolsonarismo fala, porque o bolsonarismo faz tudo muito simplificado e mastigado". "Não é preciso refletir muito, não são conceitos, são coisas diretas", vinca para começar com as farpas à esquerda.
A "esquerda pedante" que ainda está no encantamento de falar sobre Marx
Confessando que a crença para domingo vai oscilando (e com muita fé no povo nordestino), Ricardo tem a imagem perfeita para o que sente: "Em alguns momentos sou otimista, noutros sou pessimista... Pelo jeito, esse monstro não cai em quatro anos, só em oito. Dentro da nossa bolha, o Lula ganhou. Só que dentro da espuma que é o Brasil, é complicado, uma espuma tem muitas bolhas e isso é desesperador."
Nessa espuma, a esquerda parece estar sempre dentro das mesmas bolhas. Thaynara começa por refletir que "a esquerda branca, no Brasil, tomou um lugar muito de se sentir superior aos outros, têm uma linguagem muito pedante e que não é acessível à maioria das pessoas".
Virando-se para que Ricardo elabore, começa a introdução de um monólogo de quem já pensou sobre o assunto muitas vezes, criticando desde logo a intelectualização e a forte ligação académica na esquerda que, diz, "vai fazendo com que o trabalho de base distancie". "A Academia no Brasil é algo extremamente cruel ao ponto de distanciar a pessoa da vida comum. Aí, a pessoa vai ficando distanciada, vai vivendo só esse mundo, ela não devolve para o lugar de onde ela veio tudo o que está a receber desse mundo", destaca o ator sublinhando a criação de "linguagens próprias, narrativas próprias" que "a restante população não consegue entender". Algo que a direita não faz.
"Eles fazem um trabalho de aproximação muito maior do que um partido de esquerda. Porque é que as pessoas de esquerda para fazer um encontro desses fariam na casa do Caetano Veloso ou numa universidade? Se vai ser na casa do Caetano Veloso, vão três pessoas de favela... Se for na faculdade, vão só as pessoas da faculdade. E, se for na favela, vai ser num projeto social. Não! Não tem de ser num projeto social porque ele também já é um recorte de uma intelectualização da favela. Precisa de ser na praça pública, como os caras fazem, botar um churrasco, precisam de fazer coisas para se aproximar da população...", critica.
Afinal, "linguagem é mais do que querer, falar gíria, botar boné e óculos da Oakley, é estar ali com aquelas pessoas mesmo, ter interlocutores seus ali entre aquelas pessoas". E isso há partidos de direita que o sabem fazer, aponta Ricardo.
"Eles entenderam como funciona a máquina pública brasileira de fazer política e a esquerda ainda está no encantamento de falar sobre o Marx. Qual é, cara? Nem ele acredita já naquele bagulho que ele falava...", nota entre risos.
"O que as favelas vivem nesse momento não cabe em nenhuma universidade de lugar nenhum do mundo porque é o momento. Daqui a 30 anos, o favelismo vai ser um conceito como tem todos os outros conceitos do mundo, mas neste momento a gente está a vivê-lo. Não dá para alguém pegar em conceitos anteriores e querer replicar sobre a favela, não vai dar conta. Não tem conceito que dê conta das coisas que vivemos aqui. A gente vive aqui, vai fazer uma ação e, de repente, a gente pode receber a notícia de que seis pessoas que acabámos de ver estão ali estiradas no chão. E quando a gente for embora vamos ter de passar por aquele corpo, qual o conceito desses caras barbudos para explicar isso aí? Nenhum. No dia seguinte, vamos ter de estar bem, como é que a gente tem sanidade mental para viver o que a gente vive, para fazer o que a gente faz, para alcançarmos o número de pessoas que alcançamos, com todos os atravessamentos, gente que a gente viu morto, parentes nossos, gente picotada, falta de políticas públicas, coisa básica... Como é que a gente ainda consegue ter sanidade mental para dar uma entrevista para Portugal? Não se explica, não tem como explicar esse momento que estamos vivendo, mas nada do que já existiu consegue explicar."
O monólogo de Ricardo encerra a conversa. Afinal, depois desta fala ser ouvida, não há lugar para dizer mais nada.
