"Acordar no lado errado da história." Portuguesa em Moscovo relata os dias após o ataque russo à Ucrânia
Lojas a fechar, preços a aumentar e manifestações contra Putin cada vez maiores. A TSF falou com uma jovem portuguesa que descreve como têm sido os últimos dias na capital russa desde a invasão à Ucrânia.
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Há menos de 20 portugueses a viver em Moscovo. Júlia (nome fictício) é um deles. Tem menos de 30 anos e vive na Rússia há mais de cinco. Tempo suficiente para conhecer a "retórica do Kremlin" e preferir salvaguardar a identidade. Apesar do aumento da tensão entre a Rússia e a Ucrânia no último mês, não esperava que as tropas do país a que chama de casa invadissem a Ucrânia na madrugada de 24 de fevereiro. Foi apanhada de surpresa.
"O acordar da manhã da invasão foi um choque completo. Não há palavras que possam descrever o que é acordar no lado errado da história. É como pensar que a guerra só acontece nos livros e nos filmes e, de repente, estás a viver uma realidade que pensavas ser muito distante e impossível de alguma vez acontecer contigo. Da noite para o dia, o teu mundo vira completamente ao contrário. Não há como racionalizar um evento assim", recorda Júlia à TSF.
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Nesse dia, não teve medo de sair à rua, mas não ficou indiferente ao "ambiente muito pesaroso" que se sentia por todo o lado. As pessoas com quem se cruzou no metro ou em elevadores devolveram-lhe o olhar, olhos nos olhos.
"Acho que todos tínhamos um entendimento mútuo de que algo errado se estava a passar. A polícia não apareceu muito a não ser no centro, em Pushkinskaya, que é a praça onde tipicamente os protestos acontecem", lembra a portuguesa.
Como vive no país há já alguns anos, a maioria dos amigos de Júlia são russos e estão "muitíssimo revoltados, horrorizados e aterrorizados" com toda a situação. Além de toda a violência que a invasão acarreta, em menos de uma semana perderam todos os meios de comunicação independentes, as companhias aéreas estrangeiras estão a abandonar o país e o sistema financeiro a colapsar.
"Estamos presos nesta situação terrível. Claro que há um sentimento de revolta e injustiça enorme. A grande maioria dos russos não escolheu esta guerra. Esta guerra foi escolhida por eles", explica.
"Muitos russos perderam o seu futuro para que os que o que criaram esta guerra pudessem voltar a um passado perdido, um passado soviético e imperialista."
A portuguesa e os amigos gostavam de poder protestar, mas temem as pesadas consequências. O governo de Putin aprovou leis nos últimos dias que preveem 20 anos de prisão para quem prestar ajuda financeira à Ucrânia, 15 anos para quem veicular informações entendidas pelo governo como sendo falsas e três anos para quem apoiar as sanções contra a Rússia.
"Para muitos é preferível sair do país do que arriscar ser preso. Tenho amigos que choram nos meus braços porque se sentem completamente impotentes para mudar a situação. Muitos perguntam-me como é que alguma vez poderão ser perdoados pelos ucranianos. No fundo, no espaço de uma semana, muitos russos perderam o seu futuro para que os que o que criaram esta guerra pudessem voltar a um passado perdido, um passado soviético e imperialista. É profundamente injusto sacrificar 145 milhões de russos e 40 milhões de ucranianos por algo assim", conta Júlia.
Grafitar, usar roupa verde ou escrever em recibos. Como os russos protestam contra a guerra
Como quem ousa participar em protestos contra Vladimir Putin arrisca ser severamente punido, os russos arranjaram outras formas de contestar regime. Muitas redes sociais foram banidas - Facebook e Twitter, por exemplo - e as comunicações estão restritas, por isso é tudo feito offline.
"Há quem deixe mensagens grafitadas, há quem use peças de roupa verde, que é a cor escolhida para demonstrar oposição à guerra e há quem escreva não à guerra nos recibos que são emitidos em restaurantes e lojas pequenas. Os russos estão a encontrar outras formas de tentar espalhar a mensagem de que não estão de acordo com a guerra", revela a portuguesa.
A lei marcial, que implica a suspensão da lei civil, restringindo os direitos dos cidadãos e dotando as Forças Armadas de mais poder e, na Ucrânia, impediu os homens entre os 18 e os 60 anos de deixarem o país, ainda não foi aplicada na Rússia, mas Júlia acredita que é uma questão de tempo. Uma possibilidade que está a fazer com que muitos dos seus amigos abandonem o país.
"Claro que se recusam a ter de ir combater e possivelmente matar a própria família. Assim são os laços entre os dois países."
"Estão a considerar outras opções como ir de carro até uma fronteira Europeia ou então até à Geórgia. Qualquer um deles pode ser obrigado a ir e ter de lutar nesta guerra. Muitos têm família na Ucrânia ou são eles mesmos parte ucranianos, como é o caso de amigos próximos. Claro que se recusam a ter de ir combater e possivelmente matar a própria família. Assim são os laços entre os dois países. Grande parte da população russa tem família ucraniana e vice-versa. Esta é uma das maiores perversões deste conflito. Então sim, o risco persiste e as pessoas estão a tentar encontrar formas de fugir antes que as fronteiras encerrem totalmente. A maioria das conversas que mantenho hoje em dia prendem-se com este assunto", esclarece.
Quando tentam sair do país de avião, os russos são questionados, nos aeroportos, sobre as intenções por trás das viagens. Nos chats de Telegram, aconselham-se uns aos outros a fingir que vão de férias para despistar as autoridades.
"De modo geral já é demasiado tarde para tentar sair da Rússia. Ou não há voos ou há o risco de interrogação por parte das autoridades", sublinha Júlia.
Para já, a jovem portuguesa ainda não quer sair da Rússia e regressar a Portugal. Tem muito a prendê-la ao país.
"Por outro lado, as coisas estão a mudar tão rapidamente que é difícil tomar decisões. Se sair não sei se alguma vez poderei voltar e, se voltar, que país encontrarei. Sairei se a minha segurança pessoal estiver em risco, o que de momento não se coloca. Nesses aspetos, a vida em Moscovo continua como era antes e a cidade sempre foi das mais seguras que conheci. Não sinto que por ser estrangeira alguma vez tenha sido discriminada e nada mudou nesse respeito desde do início deste conflito", justifica a portuguesa.
Lojas a fechar e preços a aumentar sem "pânico geral"
Ao oitavo dia de conflito, pouco tinha mudado em Moscovo. Todos continuavam a ir trabalhar, algo que Júlia considera ser "uma questão de aparências", e sobre a guerra só se falava "em segredo, dentro de portas fechadas. Conversas de cozinha, como dizem os russos". Agora, ao 14.º dia, as lojas já começaram a fechar, os preços a aumentar e as manifestações a ficarem cada vez maiores.
Na vida de Júlia, a rotina não mudou, mas deixou de ter razões para celebrar o que quer que seja. A simples ida ao café com um amigo, a um restaurante ou manter um hobby passaram a estar fora de questão.
"Também tenho muito mais cuidado com o que digo e a quem o digo. Já tive que cortar laços com algumas pessoas."
"Até comprar um ramo de flores me parece fútil nos dias que correm. O aspeto que mais mudou passa por me ter tornado ainda mais próxima de algumas pessoas, seja no âmbito pessoal ou profissional. Partilhamos as últimas notícias, fazemos perguntas, falamos da nossa ansiedade e frustração e nesse sentido estou muito mais em contacto com os que estão à minha volta. Por outro lado, também tenho muito mais cuidado com o que digo e a quem o digo. Já tive que cortar laços com algumas pessoas e é uma tendência geral", confessa.
A nível económico, as sanções já se fazem sentir. Primeiro subiram os preços dos iPhones e carros de luxo, depois os de outros bens não essenciais, que já custam o dobro. Os centros comerciais também começam a ficar vazios. Tudo por causa do boicote das marcas internacionais, que já deixaram a Rússia.
"Isto tudo já está a dar lugar a um mercado negro."
"Isto tudo tem acontecido do dia para a noite. Em breve é bastante óbvio que certos produtos deixarão de existir na Rússia. E isto tudo já está a dar lugar a um mercado negro. Por exemplo, desde o fecho da IKEA que alguns dos produtos mais populares, como o famoso peluche do tubarão para crianças, aparece em sites de revenda a três ou quatro vezes o preço original. No que toca a produtos essenciais, a maioria das redes de supermercado já começou a restringir a sua venda, ainda que não se note um pânico geral em relação a esse tipo de compras", afirmou Júlia.
Os russos vão vivendo ansiosos, sem saberem com que futuro podem contar. Sabem que muitos vão perder o emprego, mas desconhecem o que vai acontecer amanhã.
"O rublo está no seu valor mais baixo desde o colapso da união soviética, vive-se um ambiente tenso e incerto. Não saber quais vão ser os próximos passos deste governo são de momento o maior medo das pessoas com quem falo", conta a portuguesa.
Sem meios de comunicação russos independentes e com os jornais internacionais impedidos de fazer notícias no país, Júlia usa o Twitter e o Telegram como principais fontes de informação. Mas, mesmo assim, "é preciso ter imenso cuidado".
"A propaganda russa é muitíssimo forte e claramente persuasiva."
"É uma aprendizagem que já tenho vindo a fazer nos últimos anos, mas agora mais do que nunca coloco em prática o meu sentido crítico e tenho cuidado para não cair num ciclo de desinformação. A propaganda russa é muitíssimo forte e claramente persuasiva para muitos dentro do país que não têm acesso a nenhum outro ângulo, mas pessoalmente acho que sou capaz de fazer escolhas informadas", esclarece.
O conflito entre os dois países não começou agora e também não parece estar perto do fim. Até lá, Júlia vai vivendo a vida "dia a dia". Sempre que pode evita ver notícias. Estar constantemente em cima dos acontecimentos estava "a ter um impacto brutal" na sua saúde mental. A paz entre os dois países parece-lhe, para já, "um futuro distante."
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