Agência da ONU para refugiados em Gaza avisa que "vai entrar em colapso" sem intervenção dos Estados-membros
As autoridades israelitas "têm apontado o desmantelamento da UNRWA como um objetivo da guerra" e a lei do Knesset pretende "pôr fim ao direito dos palestinianos à autodeterminação e à sua aspiração a uma solução política justa"
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O diretor da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos (UNRWA), que Israel decidiu proibir, alertou esta quarta-feira, na Assembleia-Geral da ONU, que a agência está a viver "o seu pior momento", apelando aos Estados-membros para a salvarem.
"Sem a intervenção dos Estados-membros, a UNRWA vai entrar em colapso, mergulhando milhões de palestinianos no caos", declarou Philippe Lazzarini, exortando os Estados-membros da Assembleia, que criou aquela agência em 1949, para que "impeçam a aplicação da lei contra a UNRWA" aprovada pelo parlamento israelita (Knesset).
Uma semana depois de o Knesset ter aprovado uma lei que proíbe as atividades da UNRWA em Israel, o país notificou na segunda-feira a ONU do "cancelamento" do seu acordo com a agência, que remonta a 1967, ano em que Israel começou a ocupar os territórios palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, bem como Jerusalém Oriental, onde a UNRWA prestou, durante décadas, ajuda essencial aos refugiados palestinianos: educação, saúde, serviços sociais, ajuda alimentar, entre outros.
"Hoje [esta quarta-feira], apelo aos Estados-membros para que tomem medidas para defender os refugiados palestinianos e a UNRWA", insistiu Philippe Lazzarini.
Embora a agência tenha sido criada por uma resolução da Assembleia-Geral da ONU em 1949, "as alterações ao mandato da UNRWA são da competência da Assembleia-Geral e não de um único Estado-membro", sublinhou.
"Desde o início da guerra em Gaza, as autoridades israelitas têm apontado o desmantelamento da UNRWA como um objetivo da guerra. A lei do Knesset serve esse objetivo, mas a sua intenção vai além de desacreditar a UNRWA e as Nações Unidas: pretende pôr fim ao direito dos palestinianos à autodeterminação e à sua aspiração a uma solução política justa", declarou.
Num encontro com a comunicação social a 30 de outubro, o ministro dos Assuntos da Diáspora israelita, Amichai Chikli (que pertence à ala dura do Likud, o partido do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu), tentou defender a legislação acabada de aprovar pelo Knesset, afirmando que "a UNRWA é parte do problema, não da solução" e que o Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) pode substituí-la.
No seu discurso, Chikli insistiu que a ONU já tem uma agência encarregada de prestar assistência aos refugiados em todo o mundo (o ACNUR) e que o estatuto único dos refugiados palestinianos, que se aplica àqueles que perderam as suas casas e empregos após a criação do Estado de Israel, em 1948, e aos seus descendentes, impede que o conflito seja resolvido, uma vez que o número de pessoas sob a sua alçada não para de aumentar.
A sua posição reflete o que pensa grande parte da sociedade israelita, o que ajuda a explicar o apoio de todos os grupos com assento parlamentar - com exceção da esquerda e dos árabes, ambos em minoria num parlamento que costuma estar extremamente dividido - para proibir as atividades da UNRWA em Israel e para impedir que os organismos públicos israelitas tenham contacto com os seus funcionários.
Na base desta posição, encontram-se as acusações de parcialidade e de conivência com as milícias palestinianas que as autoridades israelitas constantemente dirigem à UNRWA, nomeadamente na sequência do ataque do movimento islamita palestiniano Hamas a território israelita, a 7 de outubro de 2023, que se saldou em cerca de 1.200 mortos, na maioria civis, e 251 sequestrados, 97 dos quais ainda em cativeiro (embora desses, 34 tenham sido, entretanto, declarados mortos pelo Exército israelita), e desencadeou a guerra de retaliação de Israel em Gaza, ainda em curso, mais de um ano depois.
Num documento elaborado pelo gabinete de Chikli, as autoridades israelitas identificam, por nome e apelido, 12 funcionários da UNRWA alegadamente ligados ao Hamas, embora o país afirme que mais de 1.000 trabalhadores em Gaza têm ligações ao grupo.
A agência da ONU, que tem cerca de 30.000 empregados em todo o mundo, despediu dez dos 12 trabalhadores inicialmente identificados por Israel em janeiro (dois já estavam mortos) por alegada participação nos ataques de 7 de outubro. Posteriormente, Israel acusou sete outros funcionários de terem participado nos ataques.
Após uma investigação interna, a ONU concluiu que nove dos 19 funcionários assinalados poderiam ter estado envolvidos nos ataques, mas esclareceu que o gabinete de investigação não estava em condições de verificar de forma independente a maior parte das informações apresentadas por Israel.
Além disso, a agência foi submetida a um processo independente de revisão dos seus mecanismos de neutralidade, liderado pela ex-ministra dos Negócios Estrangeiros francesa Catherine Colonna, que concluiu que a UNRWA possui um dos sistemas mais desenvolvidos de entre as agências da ONU para manter a sua neutralidade, mas fez uma série de recomendações para o reforçar.
Por seu lado, Israel matou pelo menos 233 funcionários da UNRWA durante a sua guerra na Faixa de Gaza.
As explicações não serviram de nada e a posição oficial de Israel continua a ser a de que "a UNRWA é o Hamas", como declarou recentemente um porta-voz do Governo israelita, citado pela agência de notícias espanhola EFE.
No mesmo sentido, Chikli defendeu, na sua intervenção, que a agência "é parte do ADN [código genético] palestiniano que nunca aceitou a legitimidade de um Estado judaico".
As autoridades norte-americanas apelaram a Israel para que suspendesse a aplicação das leis contra a UNRWA, mas, na prática, só Washington se recusou a retomar o seu financiamento da agência, depois de os outros países que o retiraram na sequência das acusações de Israel terem decidido reverter essa decisão, perante a ausência de provas - e porque a UNRWA é responsável pela distribuição da pouca ajuda humanitária que ainda consegue entrar na Faixa de Gaza, território devastado onde a população enfrenta a pior crise de segurança alimentar já identificada pela ONU no mundo.
Para já, as contribuições dos Estados Unidos, o principal doador da UNRWA, estão suspensas por lei até 2025.
Até agora, o único Presidente norte-americano que tinha cancelado as contribuições para esta agência tinha sido, em 2018, Donald Trump.
