A criação da República Islâmica do Irão foi um dos acontecimentos marcantes da segunda metade do século XX. Um ano antes, já o descontentamento tinha saído às ruas, mas o Xá foi incapaz de perceber os sinais e travar a revolução.
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A 17 de janeiro de 1979 o Xá da Pérsia deixou Teerão para umas férias prolongadas e nunca mais voltou. Mohammad Reza Pahlavi deixou Shahpur Bakhtiar como primeiro-ministro, mas este não conseguiu chegar a um entendimento com Khomeini e com os partidos que estavam na origem dos protestos populares. As ruas da capital iraniana enchiam-se diariamente com milhares de manifestantes (chegaram a ser mais de um milhão). No dia 1 de fevereiro, o Ayatollah Khomeini regressou ao Irão após 14 anos de exílio. O líder religioso foi recebido por milhões de iranianos que o tinham elevado quase à figura de Deus. Quando lhe perguntaram o que sentia por estar de regresso a casa, a resposta foi breve: "nada". Dez dias depois, o Governo caiu e o país ficou, de facto, nas mãos de Khomeini.
Este foi o culminar de anos de descontentamento popular, que subiu de tom a partir de 1978. Na década de 70 do século passado, as receitas do petróleo continuavam a ser uma importante fonte de financiamento do país. No entanto, a instabilidade monetária internacional e as flutuações no consumo do ouro negro por parte do ocidente afetaram seriamente a economia. Tudo isso, somado aos gastos governamentais exagerados e a uma corrupção crescente, fez aumentar a taxa de inflação enquanto o poder de compra e o padrão de vida dos iranianos caía.
Para além dos problemas económicos também a repressão do regime sobre os cidadãos aumentou. Diversos partidos da oposição foram marginalizados ou banidos. Qualquer protesto era recebido com detenções arbitrárias, a tortura passou a ser prática comum. Com este cenário, os intelectuais seculares decidiram deixar cair a exigência de reduzir o poder dos religiosos e juntaram-se a eles, defendendo que o Xá podia ser derrubado.
Em Paris, Khomeini continuava a pregar contra o regime de Pahlavi. O Xá era acusado de não ser religioso, de apoiar Israel e de ser subserviente às potências estrangeiras, principalmente aos Estados Unidos. Os discursos do Ayatollah começaram a ser contrabandeados para o Irão e respondiam aos anseios de um número crescente de iranianos desempregados e pobres.
No exterior, tudo parecia diferente. A economia iraniana tinha tido uma rápida expansão e o país estava a ser modernizado. Em pouco mais de uma geração, o Irão tinha passado de uma sociedade tradicional, conservadora e rural, para uma sociedade industrializada, moderna e urbana. Havia, no entanto, entre os iranianos a sensação de que o governo, por corrupção ou incompetência, não tinha cumprido o que prometera. A riqueza estava apenas nas mãos de uma minoria e os cargos políticos tinham sido entregues a familiares ou amigos da família reinante.
Em janeiro de 1978, revoltados com o que um jornal de Teerão tinha escrito sobre o Ayatollah Khomeini, milhares de jovens estudantes das madrassas (escolas religiosas) começaram a manifestar-se. A eles juntaram-se milhares de outros jovens, na maioria desempregados, cansados dos excessos do regime. O Xá, enfraquecido por um cancro e surpreendido pela dimensão dos protestos, vacilou entre ceder a algumas das reivindicações ou reprimir a oposição. O governante optou pela repressão e algumas dezenas de pessoas foram mortas, o que fez aumentar os protestos. Os funerais das vitimas foram marcados por manifestações e a intervenção policial causou mais mortes. Passou a ser um ciclo vicioso.
Quando a noticia de que o Xá tinha deixado o país se espalhou, as ruas voltaram a encher-se mas desta vez para manifestações de alegria. Numa tentativa de evitar a queda do regime, o primeiro-ministro Shahpur Bakhtiar libertou todos os prisioneiros políticos, ordenou ao exército que não atacasse os manifestantes, prometeu eleições livres e propôs aos revolucionários um governo de unidade nacional.
No dia em que regressou ao Irão, o Ayatollah Khomeini deixou claro que não aceitava a proposta do executivo de unidade. A 5 de fevereiro de 1979 anunciou a criação de um governo revolucionário provisório e escolheu o líder da oposição Mehdi Bazargan como primeiro-ministro. Khomeini ordenou aos iranianos que obedecessem a Bazargan como dever religioso.
A 1 de abril, depois de um referendo nacional, o Ayatollah declarou que o Irão passava a ser uma Republica Islâmica. De imediato os elementos islamistas mobilizaram-se para excluir os aliados - como partidos de esquerda, nacionalistas e intelectuais - de qualquer cargo de poder. O governo ordenou o retorno aos valores sociais conservadores. A lei de proteção à família, que tinha dado às mulheres mais direitos no casamento, foi declarada nula. Grupos revolucionários formados nas mesquitas começaram a patrulhar as ruas, reforçando os códigos islâmicos de vestuário e comportamento.
Durante a maior parte de 1979, a Guarda Revolucionária - que era na altura uma milícia religiosa informal, formada por Khomeini para evitar um golpe apoiado pela CIA - começou uma campanha de intimidação e repressão dos grupos políticos que não estavam sob controle do Conselho Revolucionário e do Partido Republicano Islâmico. A violência usada frequentemente excedeu a dos serviços de segurança que tinham estado sob as ordens de Reza Pahlavi.
As milícias e os religiosos fizeram todos os esforços para suprimir a influência cultural do Ocidente e, enfrentando perseguição e violência, muitos dos que faziam parte da elite educada no estrangeiro fugiram do país. O sentimento antiocidental acabou por se manifestar na tomada da embaixada americana.
Em novembro um grupo de manifestantes iranianos fez 66 reféns exigindo a extradição do Xá, que na época estava em tratamento médico nos Estados Unidos. Esta ação, que durou 444 dias, revelou algumas divergências que começavam a existir no interior da revolução. Políticos mais moderados, como o primeiro-ministro provisório Mehdi Bazargan e o primeiro Presidente da República, Abolhasan Bani-Sadr, foram forçados a abandonar os cargos. Os elementos mais conservadores do governo colocaram em causa o zelo revolucionário dos dois.
Quarenta anos depois da revolução, muitos perguntam o que resta dos ideais dos que nas ruas pediam mudança. Nos protestos contra o Xá os iranianos exigiam principalmente mais liberdade e justiça social. Não conseguiram qualquer um dos objetivos.
O Ayatollah prometeu que a riqueza do país seria redistribuída em beneficio de toda a população, mas ainda hoje se mantém nas mãos de uma minoria de pessoas que estão no poder ou subordinadas ao regime. Também a corrupção que os islamitas prometeram combater continua a ser um problema para o país. A diferença entre ricos e pobres, que já era um problema nos anos 1970, nunca foi tão grande. A classe média devia ser a espinha dorsal do novo regime, mas perdeu muito poder de compra por causa das crises económicas e inflação alta. Esta situação foi agravada nos últimos anos pelas sanções dos Estados Unidos.
A nova Constituição da República Islâmica e as mudanças nos Códigos Civis e criminais fizeram com que as mulheres perdessem muitos dos direitos que tinham conquistado nas décadas anteriores. Em vez de liberdade, a revolução trouxe repressão ,com milhares de presos políticos. Khomeini tinha dito que a Revolução passava pela realização de eleições livres dentro de um sistema que defendia vários princípios islâmicos mas também esse projeto falhou.
Atualmente cerca de 70% da população iraniana nasceu depois de 1979 e, por isso, durante toda a vida viu o país em ruínas e governado por leis medievais.
O ultimo Xá da Pérsia
Mohammad Reza Pahlavi nasceu em 1919, em Teerão. Era o segundo filho, o primeiro varão, de Reza Pahlavi e da segunda esposa. Como o pai só se tornou Xá em 1925, ele e os irmãos não nasceram como membros da realeza. Descrito como uma criança fraca e doente, Mohammad foi criado em quase total isolamento até aos seis anos de idade, convivendo apenas com a mãe, irmãos, empregados e velhos oficiais militares.
Quando foi investido como príncipe herdeiro, o pai decidiu que o futuro monarca deveria ter uma educação diferente e separou-o da mãe e das irmãs. Foi criado por uma governanta francesa e estudou numa escola criada especialmente para ele e com colegas cuidadosamente selecionados entre os rapazes da elite.
Quando Mohammad Reza completou 11 anos, o pai decidiu enviá-lo para um colégio na Suíça, onde permaneceu durante 4 anos. Quando regressou ao Irão, em 1936, entrou na academia militar e graduou-se como segundo tenente de Infantaria. Pouco depois, foi nomeado inspetor das Forças Armadas Imperiais do Irão.
Em 1939, o futuro rei da Pérsia casou com Fawzia bint Fuad, filha mais velha do sultão Fuad I do Egito e do Sudão. Em 41 ascendeu ao trono depois de uma invasão anglo-soviética ter forçado o pai a abdicar. Os britânicos e soviéticos temiam que o excelente relacionamento entre o Irão e a Alemanha levasse Reza Shah a apoiar os nazis. O governante já tinha, no entanto, anunciado que o país se manteria neutro perante o conflito mundial.
Com Fawzia bint Fuad teve uma filha, mas como o Xá queria um filho que lhe sucedesse acabou por se divorciar. Em 1951 casou com Soraya Esfandiary-Bakhtiari, filha de um nobre do sul da Pérsia. O casamento acabou em 1958 quando não conseguiram ter filhos. O Xá ainda propôs tomar uma segunda esposa que lhe desse filhos varões, mas Soraya fugiu para a Alemanha onde os pais viviam. Um conselho de assessores reuniu-se com o Reza Pahlavi para discutir a situação do casamento conturbado e a falta de um herdeiro e foi decidido avançar para o divórcio. A rainha emitiu um comunicado em que dizia: "Vou com o meu mais profundo pesar, no interesse do futuro do Estado e do bem-estar do povo, em conformidade com o desejo de Sua Majestade o Imperador, sacrificar minha própria felicidade e declarar o meu consentimento com a separação de Sua Majestade Imperial."
Logo a seguir o Xá anunciou a intenção de se voltar a casar, o que aconteceu no ano seguinte depois de conhecer Farah Diba, a primeira "Imperatriz do Irão" a ser coroada nos tempos modernos e também a última. O casal teve quatro filhos. O primeiro, Reza Pahlavi, nasceu em 1960 e vive exilado nos Estados Unidos.
Mohammad Reza Pahlavi era conhecido como um homem arrogante, mas indeciso. Em 1953, quando se preparava um golpe apoiado pela CIA para afastar o primeiro-ministro liberal Mohammad Mossadegh, foi a irmã gémea, a princesa Ashraf, que o convenceu a apoiar a ação. Quando nos primeiros momentos o golpe parecia ter falhado, o Xá fugiu para Bagdade e depois para Itália. Os protestos contra o chefe do governo levaram, no entanto, à sua demissão, e o monarca regressou ao país.
Com uma corte aberta ao mundo, por várias vezes o monarca deu entrevistas à imprensa estrangeira e ficaram na memória as declarações que fez sobre as mulheres. Em 1973, entrevistado pela italiana Oriana Fallaci, confessou que nunca tinha sido influenciado por ninguém e muito menos por uma mulher. "Na vida de um homem uma mulher só é relevante se for bonita e graciosa e se se mantiver feminina. Quanto aos direitos iguais, vocês podem ser iguais perante a lei mas não o são em relação às competências", acrescentou.
Em 1977, foi a vez da americana Barbara Walters ir a Teerão entrevistar o Xá. Curiosa com a entrevista a Oriana Fallaci, Walters falou da questão das mulheres e Reza Pahlavi voltou a dizer que as mulheres e os homens eram iguais perante a lei mas não ao nível da inteligência, apesar de admitir que existiam exceções. "E a sua mulher é uma dessas exceções?", perguntou Walters. Com Farah Diba ao lado, o Xá preferiu não responder.
Depois de deposto em 1979, o Xá viu o antigo aliado, Estados Unidos da América, recusar-lhe asilo politico. Só foi autorizado a viajar para aquele país para fazer tratamentos ao cancro de que sofria. Acabou por morrer no Cairo em 1980.
O Ayatollah Khomeini
Ruhollah Musavi Khomeini nasceu no Irão em 1903. O pai foi assassinado quando ele tinha apenas cinco meses e por isso foi criado pela mãe e pela tia. Aos seis anos começou a estudar o Alcorão e a língua persa. Ao longo da infância continuou a educação religiosa, auxiliado por parentes, incluindo um primo e um tio. A família da mãe dizia descender de Maomé.
A mãe e a tia morreram de cólera no final da primeira guerra mundial. Depois disso, com 16 anos, decidiu entrar no seminário em Qom. Khomeini casou, em 1929, com Khadijeh Safaqi, filha de um respeitado clérigo iraniano. Juntos tiveram cinco filhos.
Até 1962, Khomeini dedicou-se aos estudos. A Lei islâmica, a ética e filosofia espiritual eram alguns dos temas que debatia com frequência. Apesar de, neste período, não ter tido qualquer atuação politica, já defendia que os religiosos deviam ser influentes também nesse campo.
A segunda fase da vida de Khomeini, de 1962 a 1979, foi marcada pelo ativismo político que foi grandemente influenciada pela interpretação estrita e religiosa que fazia do Islão xiita. Lançou a luta contra o regime do Xá em 1962, o que levou ao começo de uma rebelião política e religiosa em 5 de junho de 1963. Esta data é considerada pela revolucionários como o ponto de viragem na história do movimento islâmico no Irão. O banho de sangue com que as forças de Xá esmagaram a revolta fez com que Khomeini fugisse do país, primeiro para o Iraque, depois para França.
No exílio, as ideias religiosas e políticas de Khomeini tornaram-se mais extremas. Com a morte dos dois principais lideres religiosos iranianos, Khomeini ficou com caminho aberto para a liderança. Foi declarado Ayatollah (perito em religião) nos anos de 1950.
Quando o Xá fugiu, o Ayatollah Khomeini foi recebido como um herói. No aeroporto de Teerão, cinco milhões de pessoas esperavam-no para o aclamar. Para os iranianos ele era um Profeta, um Deus.
Uma das primeiras medidas do novo líder do Irão foi a redução da idade do casamento das mulheres para os nove anos. Elas foram também obrigadas a cobrir os cabelos e a vestir-se modestamente. As bebidas alcoólicas, filmes ocidentais, convívio entre homens e mulheres e músicas que não fossem militares ou religiosas, tudo foi proibido.
A liderança de Khomeini ficou marcada pela guerra de oito anos com o Iraque. O conflito terminou em 1988, após uma mediação das Nações Unidas, com a estimativa de 150 mil a meio milhão de vítimas mortais dos dois lados da batalha. Durante a guerra, o Irão usou milhares de crianças que avançavam no terreno para fazerem explodir as minas, e só depois avançavam os soldados.
Terminado o conflito, Khomeini emitiu uma ordem para julgar todos os presos políticos iranianos e executar os que fossem ou apóstatas do Islão ou que travassem guerra contra Alá. Milhares de pessoas foram executadas. O ayatollah Hussein Ali Montazeri, que chegou a ser designado como sucessor de Khomeini, protestou contra estas execuções, uma posição que lhe valeu ser afastado e posto em prisão domiciliária.
Outro dos casos polémicos foi a fatwa ordenada contra Salmon Rushdie. Em 1989, Khomeini considerou que o livro "Os Versículos Satânicos" era uma blasfémia contra o Islão e ordenou o assassinato de Rushdie por qualquer muçulmano no mundo que o conseguisse. Rushdie ainda está vivo mas um tradutor do livro foi assassinado e outros dois foram alvo de atentados.
Esta foi uma das ultimas medidas do Ayatollah, que morreu em 1989, com 86 anos.
No dia seguinte, o corpo de Khomeini foi levado de helicóptero para ser enterrado, mas as autoridades iranianas tiveram de adiar o primeiro funeral porque uma enorme multidão invadiu o cortejo fúnebre. Os iranianos destruíram o caixão de madeira para verem, por uma ultima vez, o Ayatollah. Na confusão, o corpo caiu no chão e a multidão arrancou pedaços da mortalha, para os guardar como relíquias sagradas. Os soldados recuperaram o corpo e voltaram a pô-lo no helicóptero. Como resultado deste caos, pelo menos oito pessoas foram espezinhadas até a morte e mais de 400 ficaram gravemente feridas.
O segundo funeral foi realizado com segurança muito mais rigorosa. Desta vez, o caixão de Khomeini era feito de aço.