O embaixador português, que foi Ministro dos Negócios Estrangeiros e negociou a paz em Angola e a independência de Timor-Leste, está preocupado com a falta de vontade dos países em respeitar o sistema das Nações Unidas. E diz que o direito de veto "distorce", se for um previlégio de um só país
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Na sua carreira já viu passar muitas guerras. Esta escalada no presente, no Médio Oriente a envolver Israel e o Irão, e a guerra na Ucrânia, acha que estamos perante aquilo que pode ser o início de uma nova ordem mundial?
Eu não sei se estamos no início de uma ordem mundial e creio bem que não, por enquanto. O início de uma nova ordem mundial é aquele que, por exemplo, foi desenhado neste Pacto para o Futuro das Nações Unidas. É certo, e é verdade, que as grandes mudanças da ordem mundial se sucedem às grandes tragédias. Foi o caso, com o Congresso de Viena depois das Guerras Napoleónicas. Foi o caso da Primeira Guerra Mundial, a que se seguiu a criação da Sociedade das Nações. Também depois da Segunda Guerra Mundial, em que ainda vivemos. Mas não creio que neste momento e nesta altura, o mundo esteja preparado e nós globalmente preparados para criar uma nova ordem mundial. Pelo contrário, penso que aquilo que é indispensável na ordem Internacional é o sistema das Nações Unidas, que é esse que é universal, é o único que engloba todos os países do mundo. E apesar das deficiências que tem - e tem muitas, sobretudo de eficiência de atuação em setores fundamentais como a questão da segurança tradicional - mas as Nações Unidas, e mesmo o Conselho de Segurança, continuam a ser um elemento indispensável. Não só é o único palco global de negociação e muitas vezes até de troca de opiniões, de aberturas que não se encontram noutro noutro ponto. É expoente máximo do multilateralismo. Não temos outro sistema que abarque todos os países do mundo, como acontece com as Nações Unidas, e por isso elas ainda são indispensáveis, na minha opinião. Apesar de todos os problemas que enfrentamos, sobretudo ao nível de guerras efetivas e perigosas. É ainda com as Nações Unidas, que devemos trabalhar. Pensando numa ordem mundial que será sempre um aperfeiçoamento do que estamos a viver agora.
Mas que eficácia é que tem verificado na atuação das Nações Unidas nestes recentes conflitos?
Penso que se está a referir às guerras na Ucrânia, e no Médio Oriente. Como os outros conflitos no passado, não são, nem têm possibilidade de ser, geríveis (pelas Nações Unidas) porque, no fundo, estão envolvidos os estados-membros. As Nações Unidas são uma organização intergovernamental. Quem manda nas Nações Unidas, quem encontra soluções são os membros. Se eles não querem e sobretudo no Conselho de Segurança, um órgão aristocrático herdado da Segunda Guerra, há quem bloqueie qualquer tentativa de se discutir de uma maneira leal e de uma maneira franca, porque quem tem o veto, está sempre a negociar com a ameaça de o usar. Enquanto isso for estiver neste pé, nós não teremos as garantias que são necessárias para que o Conselho de Segurança seja efetivamente o promotor da paz.
Nós até podemos dizer aqui “longa vida às Nações Unidas”, mas depois, se o mecanismo em si não se tornar eficaz e continuar a não ser eficaz conflito após conflito ou outro tipo de problema que venha a surgir, como é que nós ultrapassamos isso? Como é que o mundo ultrapassa isso?
Tem toda a razão nessa observação, mas qual é a contrapartida deste mundo em que vivemos? É que não há outra. Eu lembro que em 1986 estava-se num ponto crítico das Nações Unidas. Eu estava nessa altura como número 2 da nossa missão nas Nações Unidas e estávamos a discutir a crise provocada pelo facto dos americanos detestarem as Nações Unidas...
É cíclico, não é? Os Estados Unidos, de vez em quando, dizem que não gostam das Nações Unidas...
A embaixadora Jeane Kirkpatrick tinha dito que se fosse necessário, iria ao porto de Nova Iorque “com lencinho branco despedir-se das Nações Unidas, que vão para Moscovo”. Eu estava no cocktail, na véspera da Assembleia Geral e de chegar o Ministro dos Negócios Estrangeiros Pedro Pires Miranda. Uma jornalista do The New York Times, perguntou-me “o senhor estava aí a falar, e deu uma conferência em que estava com grande entusiasmo pelas Nações Unidas, mas as Nações Unidas estão paralisadas e não fazem nada. Os americanos estão a boicotar e isto é dominado pelos comunistas e pelos não alinhados...” E eu disse-lhe: “olhe, mesmo assim, as Nações Unidas são essenciais, devíamos preservá-las e podíamos tentar melhorar este território real." E ela insistiu: “diga-me uma boa razão para se manter as Nações Unidas?” Disse-lhe: “Olhe, porque o mundo precisa de terapia de grupo e as Nações Unidas são a terapia de grupo”. O que é que eu queria dizer? Passados estes anos todos, vê-se, apesar de todas as fraquezas das Nações Unidas, apesar daqueles que estão contra, o que é certo é que todos os países vão às Nações Unidas, e procuram explicar, têm um palco onde falar e onde se exprimir que de outra maneira, não poderiam ter. E sobretudo os mais fracos, porque apesar de não terem poder nenhum no Conselho de Segurança, têm o poder da maioria na Assembleia Geral. Pelo menos o poder moral de confrontar os outros com a opinião de maiorias e isso leva a que o diálogo mundial se mantenha.
Mas deve haver uma reforma?
Isso, sim! Há muitos anos que nos batemos por isso.
Ainda agora, nesta última Assembleia Geral, o Primeiro-Ministro Luís Montenegro referiu que está desatualizada a composição do Conselho de Segurança, e que é preciso abrir a outras regiões? Ele falou no Brasil, por exemplo, e. Brasil e na Índia. O que é que lhe parece destas pretensões?
Eu penso que Brasil, Índia e África, têm de ser representados. África tem de ter um papel até pelo futuro que a África representa para a humanidade.
Com países ou com blocos regionais? Como falou em África e é um conceito interessante.
É interessante porque não têm um candidato óbvio. É um problema que tem de ser decidido. Há muito tempo que lido com isto - há 40 anos - e, portanto, sempre nesta com esta perspetiva em vista de reformar as Nações Unidas.
Porque em África, temos a África do Sul, a Nigéria ou o Egipto, como grandes países...
... e ainda outros com ambições também. Mas esses são os 3 principais candidatos à decisão sobre quem e como representa África. E a decisão tem de ser deles: se é para votação, se é por uma decisão deles eterna, mas a reforma do Conselho de Segurança terá de prever não apenas o alargamento - e eu penso que é aí que nós temos de insistir sempre - mas é também no modo de funcionamento do Conselho de Segurança.
Tem de acabar o veto?
O veto distorce tudo aquilo que pode ser um atitude mais firme e mais eficaz do conselho de segurança. E isso só é possível quando nós retirarmos a possibilidade de pelo menos apenas um país, poder bloquear toda uma ação.
Bloquear o mundo!
Sim, o mundo. Portanto, a questão do veto, eu duvido muito por enquanto, que os 5 membros permanentes, queiram agora renunciar ao papel que têm no Conselho de Segurança. O caso da Rússia com a Ucrânia: (a Rússia) faz uma coisa impensável que é um membro permanente com todas as responsabilidades que tem agride flagrantemente, desrespeitando a Carta das Nações Unidas e continua ele próprio a poder votar e a exprimir a sua opinião e a sua vontade quando o Conselho de Segurança é confrontado com problemas para os quais ele não tem qualquer autoridade. Mas isso é um exemplo. Outros podiam ser dados. O funcionamento, a questão do veto, a questão de como é que as votações são feitas - por exemplo, eu sempre defendi que não se devem criar membros permanentes sem direito a veto, porque isso é criar uma terceira categoria que não vale a pena - mas tem de se retirar a possibilidade de um poder bloquear todo o sistema, e é preciso que 2 ou 3 países votem contra para que seja considerado um veto.
É mais democrático.
É mais democrático e é útil. E outras que têm que ser pensadas pela própria organização e que eu creio que fazem parte desta tentativa de multilateralismo eficaz que está a ser promovida no Pacto que este ano foi aprovado e que, no fundo parece ser um caminho de boas vontades, mas que eu espero que tenham alguma ressonância no futuro quando tivermos de repensar o aperfeiçoamento multilateralismo em que vivemos agora.
Ainda em relação ao discurso de Luís Montenegro na Assembleia Geral das Nações Unidas. Pareceu-me mais duro do que em discursos anteriores e há uma ideia de que a diplomacia portuguesa está razoavelmente alinhada internamente, que a generalidade das forças políticas estão alinhadas sobre qual deve ser o caminho. Em termos diplomáticos, este é o caminho certo, aquilo que foi traçado por Luís Montenegro na Assembleia Geral das Nações Unidas, falando das regiões que não estão representadas, defendendo a entrada do Brasil e da Índia no Conselho de Segurança.
É o caminho correto e corresponde, no fundo, a uma das principais vantagens da nossa política externa não apenas da nossa diplomacia, mas de toda a política externa. Fui testemunha da continuidade, dos galões que vamos ganhando na cena internacional e que, aliás, se traduz em termos gente a ocupar postos internacionais de grande relevo, quando somos um pequeno país de 10 milhões de habitantes e muitas vezes, que as pessoas olhavam para nós como marginal. Eu nunca penso isso. Não somos marginais e às vezes, isso era uma desculpa para não trabalhar bem.
Mas sentiu-se desvalorizado em alguns dos momentos, por ser um diplomata português, nomeadamente quando estava a presidir as reuniões do Conselho de Segurança?
A primeira coisa que me sentia era valorizado, por estar naquela posição. Aquele facto de ter o martelinho que ainda tenho...
Ficou com o martelo?
Claro, todos ficamos. Sendo presidente do Conselho de Segurança fica-se com o martelo e eu tenho um martelo, mas fui presidente em duas ocasiões (1997 e 1998). E aí, tem-se uma sensação de estar na elite do mundo, de estar onde tudo passa também. E, ao mesmo tempo, deu-me também a ideia clara da fragilidade de quem não tem o apoio fortíssimo dos membros permanentes. Eu lembro-me, por essa altura, por exemplo, de uma questão marginal que não teve grande divulgação, mas foi quase no final do meu segundo mandato. Surgiu a questão nuclear entre a Índia e o Paquistão e eu era amigo dos embaixadores do Paquistão e da Índia. Passava o meu tempo a receber um e outro que pediam exatamente o contrário. E eu queria reunir o Conselho de Segurança e não encontrava maneira, porque claro que um e outro tinham forças juntos dos 5 membros permanentes que diziam “não!”. O embaixador interino americano dizia que era melhor não termos consenso. E eu pensava: se o Conselho de Segurança não ser serve para discutir este caso de proliferação de armas nucleares, então, o que o para que é que estamos aqui a fazer? E, mesmo com a posição relativa dos de membros permanentes, convoquei uma reunião do Conselho de Segurança. Claro que não serviu para muito. Mas serviu para os dois verem a preocupação que havia no mundo pela proliferação armas nucleares e o que isso poderia significar no futuro. E lá estamos confrontados novamente com isso na medida em que haja arsenais nucleares não declarados ou não fiscalizados.
Portugal é candidato a um dos dois lugares para a Europa Ocidental de membro não permanente do Conselho de Segurança para o biénio 2027/2020. Os outros candidatos por esta região são a Alemanha e a Áustria.
Outra vez a Alemanha.
Que aliados é que Portugal pode procurar que não façam concorrência com estes dois países que são aqui da União Europeia.
Eu acho que a nossa atitude deve ser sempre de pedir a todos os países que votem em nós. Porque temos tido nas Nações Unidas – e não apenas, mas sobretudo nas Nações Unidas que estamos agora a falar - uma atitude extremamente positiva, na minha opinião, e que tem beneficiado do facto de haver uma continuidade na nossa política externa que muitos outros países não têm. E nós temos muito pouca diferença. Aliás, eu disse isso quando fui quando fui ministro: a nossa política externa é uma política consistente porque não tem marcas muito fortes de tentativa de influência de posições diferentes por parte dos outros partidos políticos que estão na oposição. Normalmente há uma espécie de composição, tirando naturalmente as divergências que possa haver pontuais, mas naqueles pontos principais da nossa política externa – a nossa posição na Europa, a nossa atitude como membro da NATO, a nossa ligação muito especial a África - em todos esses vetores, nós somos sempre um país aberto ao diálogo. E é essa voz que nós temos em todos os assuntos e que é uma voz conciliadora e que normalmente procura compreender também os argumentos do outro lado, é isso que nos tem dado grande vantagem porque as Nações Unidas são isso mesmo.
Mas faz sentido estar a ser um país que quer estar de bem com todos?
Não é estar bem com todos. É respeitar os princípios que nós próprios proclamamos. Não dizemos uma coisa quando estamos cá fora na campanha e depois chegamos lá ao Conselho, fazemos exatamente o contrário. Não fazemos isso por razões utilitárias. A nossa atitude tem sido manter as nossas posições, tanto para as valorizar internamente, como para sermos reconhecidos internacionalmente. Mais do que ter vontade de agradar a todos, o que devemos fazer é sempre estar preparados para ser uma ponte.
A todos, certamente que não vai agradar, até porque o secretário-geral, António Guterres, foi considerado persona non grata por Israel. Acha que quando Portugal aprova resoluções contra Israel, está a procurar aliados nos países árabes para a sua candidatura a membro não permanente?
Não creio que estejamos nesse campo de força política utilitarista em função da nossa candidatura. Em relação ao engenheiro Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, primeiro é desvalorizar um pouco isto de Israel ao declará-lo persona non grata. Mas porquê isso? Normalmente, quando se declara persona non grata, a pessoa sai do país onde está. Já me aconteceu isso duas vezes. Fui expulso duas vezes e depois, passado dois meses, obrigarem-me a voltar.
Quando foi isso?
Em 1975, no Zaire, pelo então presidente Mobutu.
Mas que leitura faz da decisão de Israel?
Esta atitude de Israel, que é um país ferido e tem muito o princípio de quem não está connosco está contra nós, poderá também refletir um outro problemas das Nações Unidas. É que muitas vezes os princípios estão lá, as pessoas tentam obedecer, mas quando se chega a um ponto em que o interesse nacional ou aquilo que se pensa ser o interesse nacional entra em contraposição nas próprias Nações Unidas, a tendência é para esquecer que estamos à procura de um bem coletivo. Temos um exemplo disso que foi a nossa política ultramarina. Nós é que tínhamos razão e o mundo não tinha.
Acha que Israel não tem razão?
Acho. Acho que enfraquece, não ganha nada com isto. Claro que eu percebo, em parte. Tentando perceber o porquê, o outro lado, que está como um animal ferido e está a reagir, utilizando as armas que são as suas. Mas também não vimos que haja uma grande euforia dos outros defendendo o Secretário-Geral. Eles próprios devem ter achado esta atitude um desabafo.
Portugal tem mais a ganhar ou mais a perder em manter um bom relacionamento com Israel, tendo em conta todo o histórico que há, por exemplo, da cooperação a nível de Segurança e Defesa, por exemplo?
Temos interesse em manter com Israel uma relação sólida e aberta. Não andamos à guerra com Israel, nunca andámos. Quando estive nas Nações Unidas pela segunda vez, tive muitas vezes problemas entre Israel e a Palestina e os países árabes, sobretudo com o Estado da Palestina, que não era ainda considerado um Estado. Muitas vezes acontecia fazer campanha a favor de Israel para que Israel pudesse entrar no que se chama o grupo ocidental. Portugal foi um dos países que se bateu para que Israel fosse integrado. Lembro-me que nessa altura, muitas vezes o representante da Palestina, que era um familiar de Yasser Arafat, convidar-me para uma sessão restrita em sua casa com Arafat, que era da família muito simpática. Eu fui e falámos.
Esteve com Yasser Arafat?
Sim.
Acha que faz falta um Yasser Arafat hoje em dia?
Faz. E faz falta essa época, que era uma época ainda de as pessoas começarem a ter esperança. As pessoas falavam e falavam nas Nações Unidas. Portugal sempre defendeu que a Palestina devia ter estatuto de pleno membro e não ser apenas um observador. Mas, ao mesmo tempo, combatemos para que Israel também tivesse o seu papel e a sua possibilidade de ser eleito para as Nações Unidas. Não é tentar agradar a gregos e troianos. É tentar seguir os princípios que regem as Nações Unidas, que é um órgão universal que seria, potencialmente, democrático se não fosse a estrutura do Conselho de Segurança.
Devemos reconhecer a Palestina, tal como já fizeram vários países da União Europeia?
Nós reconhecemos a Palestina. Até temos lá uma embaixada em Ramallah. Sempre defendemos a solução de dois Estados. É aquilo que as Nações Unidas determinaram em 1947. Portanto, temos de voltar à raiz daquilo que foi o acordo. Adaptado, claro, às circunstâncias, da mesma maneira que isso nos levava não a ser anti-Israel, mas a condenar os colonatos.
Estava a falar de um reconhecimento, como foi feito recentemente pela Espanha e pela Irlanda...
Sim. Temos sempre dito que a Palestina devia estar nas Nações Unidas como membro de pleno direito e não como observador. Neste caso, o Irão tem tido uma atitude absolutamente belicosa e é perigosa para o mundo. Na questão dos dois Estados, como é que os podemos discutir quando aqueles que queremos reconhecer não se reconhecem entre si, quando eles próprios nunca falam de Israel, mas sim num Estado sionista? Como é que nós podemos, com este ambiente, esperar que haja um diálogo mais efetivo? Claro que não há. Há, de facto, o contínuo apelo à força e à violência. E não sabemos como vai acabar.
Deixe-me voltar a António Guterres. Tem sido um secretário-geral equilibrado, representando o mundo ou só uma parte do mundo?
Creio que ele tem representado o mundo. Tem representado até uma tentativa de aliviar os males que estão no mundo. Tem tido, e de facto, uns mandatos muito, muito difíceis.
O mundo não está a ajudar?
Não está. Lembro-me de há uns anos ter apresentado na Gulbenkian um livro do Amin Maalouf, chamado “O Mundo sem Regras”. Sempre achei que na política não era assim. Não temos um mundo sem regras. Temos é um mundo que desrespeita as regras que existem. Se respeitássemos a Carta das Nações Unidas, não vivíamos neste ambiente de violência, com as perspetivas negativas que temos à nossa frente. Creio que Guterres tem tentado conduzir as Nações Unidas por esse caminho da conciliação e não do confronto permanente. A eficácia é que é muito relativa, evidentemente, como seria para qualquer um.
Se as coisas não mudarem, isso vai marcar a análise que vamos fazer dos mandatos de António Guterres?
Desde que o interesse individual dos países, sobretudo dos membros permanentes, prevaleça sobre toda a organização, o secretário-geral não tem possibilidade. Os secretários gerais são completamente inócuos. O Kofi Annan era uma rockstar no seu primeiro mandato por causa do Iraque e do Kosovo. Virou o inimigo público número um. É um caso típico do secretário-geral que atingiu o auge da atuação. Um secretário-geral têm um papel fundamental, de conciliador. Agora não se pode esperar é que ele seja, por si só, capaz de fazer mudar a política e os interesses nacionais com que muitas vezes países entram no multilateralismo, apenas para impor os seus interesses.
Tendo em conta toda a sua experiência de vida, este é o pior mundo que já viu, está pessimista?
É pior. Nunca esperei chegar aos 80 anos e, nesta fase da minha vida, ter o mundo no estado em que está. Todos nós acreditávamos que aquilo que está escrito na Carta das Nações Unidas era para que nunca mais se repetisse o flagelo da guerra. A guerra global. Estamos agora obrigados a considerar que isso pode ser uma perspetiva e que temos de atuar em relação a isso. Continuo a pensar que o bom senso da humanidade prevalecerá. Mas há dúvidas.
Houve alguma tensão recente entre Portugal e Israel por causa da demora excessiva em relação ao agreement para o novo embaixador, além do voo dos Estados Unidos para Telavive não ter sido autorizado a reabastecer nas Lajes. Como é que olha para isto? Qual é o engulho aqui?
É capaz de ter sido uma questão burocrática qualquer. Não acompanhei.
Não há segundas leituras? Também houve a questão do navio com a bandeira portuguesa...
Às vezes é uma indicação que se dá, de facto, de algum mal-estar por qualquer motivo. São pontos para ser considerados, mas não são pontos que interfiram de maneira nenhuma no relacionamento geral dos dois países.
Acha possível que a máquina diplomática de funcionários do Ministério esteja a contrariar a política do governo?
Não. Nem acredito que isso tenha acontecido. Não vejo que haja qualquer vantagem em politizar a nossa carreira diplomática. Tivemos uma grande vantagem no 25 de Abril, que foi a carreira praticamente ficar intacta. E continuou porque o Dr. (Mário) Soares percebeu que precisava de instituições funcionassem e continuassem. Defendeu muito a carreira, com adaptações, melhoramentos, com aquilo que era ter como objetivo a defesa do Ultramar e passar a ter como principal objetivo a adesão à Europa. Deu-nos um objetivo nacional e não tocou muito na carreira, ao contrário, por exemplo, de países como a Espanha, ou a própria França.
Acha que não é possível estar politizada?
Não deve estar politizada? Não deve deixar-se politizar. E os diplomatas também não. Não vão agora eles enveredar por esse caminho. Não quer dizer que o diplomata não tenha a sua ideia, todos pensamos mais ao centro, mais à esquerda, mais à direita. Agora não é aplicar as nossas orientações naquilo que é a política externa portuguesa e essa temos de ver os vetores fundamentais e segui-los com determinação e eficácia. Politizar a carreira é um perigo porque diminuirá aquilo que a carreira diplomática pode hoje em dia dar a qualquer Governo e que é uma melhor preparação das decisões.
O facto de o ministro Paulo Rangel ter mantido todos os diretores gerais que tinham sido nomeados pelo anterior Governo, não pode constituir um risco de qualquer tentativa de bloqueio de políticas do governo?
Eu era diretor-geral e política externa do governo de Durão Barroso e o ministro Jaime Gama manteve-me em funções. É normal. Era política externa. Eu próprio fui várias vezes chamado à Assembleia da República onde me colocaram perguntas sobre política externa. E eu respondi naturalmente. Depois, sempre de acordo com isto, quando fui para as Nações Unidas, fui nomeado para lá e com total liberdade. Nunca tive pressão nenhuma, nem da parte do Presidente da República, Jorge Sampaio, nem da parte do primeiro-ministro Guterres, nem da parte do ministro dos Negócios Estrangeiros. Pelo contrário. Como eu há muitos exemplos na carreira. É um posto fulcral para nós. Tem sido de diferentes aproximações políticas ao cores políticas. A política externa tem-se mantido com a coerência, que é isso que nos dá força. Porque se andamos a saltar e a mudar, se tivermos essa visão apenas utilitarista da política externa... temos de ter alguma pitada disso, mas se tivermos apenas a realpolitik em consideração, perdemos muitas das vantagens que nos dá essa capacidade de diálogo, que temos de ser a voz, de podermos ser a voz de muitos que não têm voz. Isto é, nas Nações Unidas temos de dizer que no Conselho de Segurança vamos dar voz a quem não a tem.
As críticas acabam por vir dos extremos, a polarizar o mundo...
Repare que, mesmo com as diferenças que temos e até muitas vezes na visão de política externa, quando chega aos pontos fundamentais daquilo que credibiliza o país na cena internacional, temos uma certa tranquilidade que poucos países têm na política externa.
Para que serve a CPLP (Comunidade de Países da Língua Oficial Portuguesa)?
Para já, para uma coisa que é fundamental: existe. É ótima porque existe. O primeiro mérito da CPLP é existir. Quando as pessoas me dizem não funciona, digo que existe e é fundamental. Por que é que é fundamental no mundo atual? Falávamos há pouco de confrontos. Nós precisamos de encontrar as zonas de aconchego e de concertação. Que melhor concertação que podemos ter que não seja a língua? A língua é a base do nosso relacionamento na CPLP. É um exemplo tão flagrante de uma cooperação muito especial que não tem os problemas que tem a Françafrique, ou a Commonwealth, que estão sempre em dúvidas se muda ou não muda, se tem mais influência aqui ou ali. Nós não. Os portugueses aconchegam-se nesta organização cuja base é a língua. Por isso é que é de expressão portuguesa. A expressão portuguesa é a língua que é a base. E isso dá-nos até grande vantagem junto dos outros, que ficam às vezes muito admirados do aspeto íntimo com que nós podemos e conseguimos trabalhar, sobretudo, e é flagrante no nosso caso, com países africanos. Mas depois também a maneira como lutámos por Timor. Não era por interesses, não era uma política utilitarista. Era o contrário de utilitarista.
Era uma causa.
Era uma causa, exatamente. Nós temos também uma política de causas e a CPLP, na minha opinião, também deve ser uma causa. Devemos cultivar a CPLP, não exigir que seja feito de um dia para o outro tudo aquilo que se deve fazer, mas olhar com atenção para a CPLP, dar-lhe força.
Quem é que gosta mais da CPLP? São os PALOP? É Portugal? É o Brasil?
A grande campanha da CPLP, a grande campanha para criar esta organização foi levada até pelo Brasil, pelo embaixador José Aparecido, pelo presidente Itamar Franco, e nós próprios em Portugal. Ao contrário dos outros, que eram modelos impostos pela potência colonial, neste caso não: era uma ex-colónia que propunha um modelo que nós, claro, aceitávamos. Mas não éramos nós a impor nada disso, como não fomos. Portanto, a nossa relação com a CPLP foi muito baseada numa cooperação que já tínhamos.
O Brasil dá outra dimensão à CPLP?
Claro que deu a outra dimensão. Pensamos que o Brasil até podia ser, de facto, um dos motores, e espero que continue a sê-lo, da defesa da língua portuguesa, porque a língua portuguesa é falada no Brasil, como é falada em Angola, como é falada em Moçambique, São Tomé...
Como não é falada nas Nações Unidas… Devia?
É evidente que devia, pela força que a nossa língua tem hoje em dia na cena internacional. Mas nós, cada vez que vamos às Nações Unidas, falamos em português. Aliás, lembro-me de casos até em que aconteceu que nós íamos falar em inglês e depois Angola, por exemplo, que era o primeiro a falar, falava em português e lá ia tudo também para falar português, porque esse é o intuito que nós queríamos ter. E a CPLP nesse aspeto é extremamente válida. Devemos insistir nesta ligação com o Brasil e também com a maneira como isso nos dá força em zonas do globo da qual precisamos de ter, de ter esteios, como, por exemplo, com o sudeste asiático, com a China, com toda essa zona que é a zona do futuro forte. Aí a CPLP dá-nos vantagens nítidas. E por isso eu acho que a CPLP deve ser acarinhada. Os nossos representantes devem ser verdadeiros embaixadores dentro da CPLP e a CPLP tem de ter alguma força. E também lembrarmo-nos de que quem defende o português não é apenas Portugal, porque o português é defendido por aqueles que falam português. Como o Adriano Moreira dizia, nós também falamos português.
