Ar de punk envelhecido. Peixe extinto levanta dúvidas sobre perda de espécies no mar
O último peixe-mão liso provavelmente morreu décadas antes de a espécie ser declarada extinta, o que levanta a questão: outros peixes marinhos foram extintos sem que a comunidade científica se apercebesse?
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O peixe-mão liso, um estranho e espinhoso morador do fundo dos oceanos, fez história ao tornar-se o primeiro peixe ósseo marinho extinto dos tempos modernos. O que resta do animal é apenas um exemplar descolorido pelos conservantes, exposto no Museu de História Natural de Paris.
Em 1802, quando o naturalista francês François Péron colocou um pequeno e robusto peixe australiano num frasco de conservante, não suspeitou de este seria o único elemento da espécie conhecido pela ciência. O peixe-mão liso (Sympterichthys unipennis) foi declarado extinto pela Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza no início de 2020, conta o jornal The Guardian. Os cientistas questionam agora quantos depois deste desapareceram sem que se tenha dado conta.
Apanhado ao largo da costa sudeste da Tasmânia, o animal de François Péron pertencia a uma das 14 espécies de peixe-mão que tinham nas águas da Austrália o seu habitat natural. Os parentes do peixe-mão liso são uma família colorida que rasteja pelo fundo do mar com barbatanas adaptadas. Parecem punks envelhecidos e mal-humorados, ostentam uma barbatana dorsal sobre a cabeça, tal como um moicano, e têm olhos esbugalhados e uma expressão rabugenta.
Desde a colonização, a atividade humana espoletou uma diminuição abrupta do número de animais. Sete espécies não são vistas há mais de 20 anos e três espécies da Tasmânia - o pintalgado, o vermelho e o mão de Ziebell - estão listadas como criticamente ameaçadas.
Sem exemplares para estudar, os biólogos tiveram de se restringir aos registos que Péron deixou, mas tudo indica que o peixe-mão liso teria sido comum, dado ter sido um dos mais encontrados no continente em determinado momento.
Mas, se os peixes-mão lisos eram tão abundantes, porque desapareceram? Esta pergunta tem intrigado os investigadores, que apontam a dragagem para vieiras e ostras, o escoamento de sedimentos por parte da indústria e as alterações climáticas como as causas mais prováveis da extinção. Os ecossistemas locais foram dramaticamente alterados devido a estes fatores. Perto de 40% das espécies de recifes no sul da Tasmânia estão em rápido declínio populacional, e todo o sistema marinho do sudeste mudou substancialmente nos últimos cem anos.
A temperatura das águas criou uma "armadilha climática" para a vida marinha costeira. À medida que a água quente se move para o sul, as espécies que necessitam de águas frias para sobreviverem perdem o seu habitat. A perda do peixe-mão liso faz parte de um problema muito maior, já que um grande número de outras espécies tem populações cada vez menores e estão a caminhar para a extinção nesta região.
Se é verdade que as extinções são muitas vezes resultado cumulativo de muitos fatores, alguns biólogos acreditam que peixe-mão liso desapareceu devido à destruição dos recifes, outrora dominantes nos mares do sudeste da Tasmânia. Esses recifes foram destruídos por uma operação de dragagem de ostras e vieiras no início do século XX.
A acentuada perda de biodiversidade testemunhada nesta região foi revelada pela comparação de amostras recolhidas nesses locais de dragagem. Amostras de sedimentos de 1890 mostram uma média de 21 espécies de bivalves, enquanto as amostras de 1990 contêm uma média de sete. A indústria de moluscos entrou em colapso numa questão de décadas, mas a capacidade de recuperação dos recifes foi também prejudicada pela estrela do mar do Pacífico Norte (Asterias amurensis) - uma espécie voraz e predadora, introduzida por navios nas águas do sul. Este era o habitat em que os peixes-mão se desenvolviam.
Embora o peixe-mão liso não seja avistado há mais de 200 anos, os investigadores dedicaram décadas à procura obstinada pela diversidade marinha do sul da Austrália antes que estivessem seguros, sem qualquer dúvida razoável, de que estava extinto. Até ao início deste ano, resistiu sempre uma leve esperança de que pudesse haver uma população remanescente ou indivíduos a lutar pela sobrevivência. Se o peixe-mão liso fosse um mamífero, ave, réptil ou planta, teria sido listado como extinto há anos, mas, por ser uma espécie marinha, sempre existiu um elemento de dúvida.
O último peixe-mão liso provavelmente morreu décadas antes de a espécie ser declarada extinta, o que levanta a questão: outros peixes marinhos foram extintos sem que a comunidade científica se apercebesse? "É quase certo", diz o investigador e biólogo Edgar Lynch, em declarações ao jornal The Guardian. "A probabilidade de que [as espécies] não tenham chegado a ser conhecidas pela ciência ocidental antes de se extinguirem é bastante alta." Isso ocorre porque a biodiversidade marinha é muito vasta e fazer o levantamento no mar é uma tarefa mais difícil. Também as plantas marinhas e os invertebrados podem estar em situações mais agudas do que sugerem os registos como a Lista Vermelha.