O Brexit está longe de ser um assunto encerrado. O processo de saída do Reino Unido da União deu um passo significativo, mas deixa um Governo em erosão, um partido dividido e uma nação partida.
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Oitocentos e setenta e três dias depois do referendo que ditou a saída do Reino Unido da União Europeia foi alcançado um acordo entre os dois lados. O texto, aprovado pelas equipas de negociadores e contra algumas expectativas, conseguiu luz verde do Governo liderado por Theresa May.
Apesar do que, à primeira vista, parece um sucesso - e até certo ponto, é -, o acordo, um texto com 585 páginas, tem alguns pontos que dificilmente serão aceites por aqueles que defendem de forma mais veemente a saída da União Europeia.
A situação mais complicada sempre foi a da fronteira entre as duas Irlandas e, no texto divulgado pelo Guardian, é garantido que as duas partes se comprometem a fazer todos os esforços para celebrar um acordo comercial futuro, que deverá estar concluído seis meses antes do final do período de transição, em dezembro de 2020. Se esse acordo secundário não for possível, a União Europeia e o Reino Unido podem prolongar em conjunto o período de transição por um prazo não especificado.
Se, mesmo com esse prolongamento, não for possível um entendimento, vai ser preciso acionar a solução de recurso para evitar uma fronteira física terrestre entre as duas Irlandas. E qual é ela? Um único território aduaneiro entre a União e o Reino Unido, que poderá existir a partir do final do período de transição - e com o controlo na Irlanda do Norte a ser feito no mar. Este território aduaneiro único abrangeria todos os bens, exceto os produtos da pesca.
Uma solução que não agrada ao partido Unionista Democrático, que se opõe consistentemente a qualquer tipo de tratamento diferenciado para a Irlanda do Norte - sobretudo porque tal criaria controlos adicionais não alfandegários em alguns tipos de mercadorias que circulam entre este território e o resto do Reino Unido.
Já o prolongamento do período de transição não agrada aos brexiters (defensores da saída), que querem a Grã-Bretanha toda em simultâneo fora da união alfandegária para avançarem novos acordos de livre comércio com o resto do mundo.
A questão das pescas também não é passiva. A União Europeia afirmou repetidamente que só vai permitir aos exportadores britânicos acesso livre de quotas aos mercados dos 27 em troca de um acordo recíproco de que as frotas de pesca da União possam continuar a operar em águas britânicas. O acordo diz apenas que a União aplicará tarifas sobre os peixes até que seja estabelecido um acordo separado sobre o acesso à pesca nas águas do Reino Unido.
O que falta, afinal?
Conseguido este entendimento, os 28 vão reunir-se numa reunião extraordinária ainda este mês. Na cimeira, os Estados-membros deverão aprovar o texto que passará então para os parlamentos nacionais. Já se sabe que, pelo menos no britânico, vai ser difícil conseguir os votos necessários para uma aprovação.
Há muito se sabe que a realidade política em Londres é o maior problema que Theresa May enfrenta. Todo o processo pode ser travado quando os deputados do Parlamento mostrarem à primeira-ministra exatamente o que pensam do acordo.
No ano passado, o Parlamento ganhou o direito de votar o projeto de acordo, algo que o governo queria evitar. Desde as eleições do ano passado os conservadores perderam a maioria e a aritmética parlamentar ficou mais difícil para May.
Os problemas começam na própria bancada conservadora onde muitos criticam o texto de entendimento e estão dispostos a votar contra ele. Depois há o Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte que, com 10 deputados, apoia o governo. Este partido tem-se mostrado inflexível desde o primeiro dia, dizendo que qualquer acordo que prejudique o lugar da Irlanda do Norte como parte do Reino Unido não será aceite.
Já os trabalhistas, principal partido da oposição, têm como prioridade derrubar o governo e forçar uma eleição, de modo que o voto contra o acordo está praticamente decidido.
Theresa May joga tudo neste acordo de saída e, se for derrotada, acabará por deixar o Governo e a liderança do Partido Conservador. Há muito tempo que sustenta que, ou o acordo dela é aceite, ou não há acordo, mas Londres ainda pode fazer um apelo a Bruxelas e tentar obter novas condições. Um trunfo que May poderá jogar se, e quando, estiver politicamente encurralada.
Em teoria, o Governo - liderado por Theresa May ou por qualquer outra pessoa - pode apresentar um acordo revisto à Câmara dos Comuns e tentar outra solução.
Mas, se ela ganhar essa votação, este Acordo terá obrigatoriamente de ser traduzido para as leis do Reino Unido. Normalmente, os deputados podem alterar legislação como esta e dificultar a vida ao Governo. Como o Brexit é um acordo entre o Governo do Reino Unido e a União Europeia, e não vai ser votado no Parlamento, será difícil os deputados poderem influenciá-lo.
Nesta fase, no entanto, podem não ter acabado os problemas para o executivo britânico. Ainda falta entrar em ação a Lei de Reforma Constitucional e de Governação de 2010, que exige que o Governo apresente ao Parlamento qualquer mudança nos tratados internacionais. Por tudo isto, o Parlamento poderá ser sempre um forte entrave à tarefa do Governo.
Se o acordo sobreviver até esta fase, o processo final fica nas mãos do Parlamento Europeu, que terá de o ratificar. Tendo já sido aprovado pelo Conselho Europeu e pelo Parlamento britânico, dificilmente os eurodeputados irão contrariar a decisão até porque a maioria quer ver este processo ultrapassado para se poder concentrar nas eleições europeias em meados do próximo ano.
A Grã Bretanha abandona a União a 29 de março de 2019. Mas é melhor esperarmos sentados.