Verdade, liberdade e democracia. Foram as palavras mais repetidas por Bolsonaro no discurso de vitória que teve de tudo um pouco, mas acrescentou também muito pouco. Para já, das palavras do novo Presidente do Brasil dá para encontrar contradições, ler mensagens nas entrelinhas e ficar com muitas dúvidas.
Corpo do artigo
Quem não tivesse acompanhado nada da campanha brasileira nos últimos meses e ouvisse Jair Bolsonaro no seu discurso de vitória, não diria que estava perante um político xenófobo, homofóbico e racista. Não diria, seguramente, que defende a tortura, a violência e, muito menos, que ataca as minorias. Quem ouviu o discurso do novo Presidente do Brasil, ouviu um conjunto de frases feitas, de promessas genéricas e de ideias contraditórias com o que defendeu até agora.
"A verdade vos libertará"
A citação bíblica que serviu de arranque ao discurso de vitória de Bolsonaro é, provavelmente, das maiores ironias da noite eleitoral brasileira. Até porque não é preciso um grande exercício de memória, para encontrar as inverdades - ou as mentiras - que o candidato, agora eleito Presidente do Brasil, foi disparando ao longo da campanha eleitoral.
Um dos exemplos mais recentes, aconteceu durante a entrevista ao Jornal Nacional da Globo. Bolsonaro decidiu, primeiro, criticar a existência de um seminário LGBT infantil que, afinal, nunca existiu. Para logo a seguir, mostrar um livro que faria, supostamente, parte do "kit gay" distribuído pelo Ministério da Educação. Acontece que o livro em causa, "Aparelho Sexual e Cia", nunca foi nem adquirido nem distribuído pelo Ministério da Educação (MEC).
"Este Governo será um defensor da Constituição, da democracia e da liberdade"
Defender a Constituição. Um dos chavões que Jair Bolsonaro mais repetiu durante a campanha eleitoral, voltou a servir-lhe de mote para o discurso de vitória. Mas o respeito e a defesa da Lei Fundamental que o novo Presidente do Brasil apregoa, não o impede de querer, ainda assim, moldá-la. Exemplo disso é a promessa de retirar da Constituição brasileira qualquer relativização da propriedade privada.
Bolsonaro promete ainda um Governo que defenderá a democracia e a liberdade, o que, vindo de um político cuja principal marca é a xenofobia, o racismo e as declarações homofóbicas, não deixa de ser estranho. Alguém que defende a tortura, o fuzilamento dos corruptos, que ameaça com violência os homossexuais, seguramente não está a defender os valores democráticos e da liberdade, ou tem um conceito de liberdade muito próprio.
"Colocar o Brasil acima de tudo. A liberdade vai transformar-nos numa grande nação"
Liberdade. Foi das palavras mais repetidas por Bolsonaro no discurso de vitória. Se na economia o novo presidente se assume como um liberal - ou ultraliberal - esta palavra, no contexto de quem diz querer transformar o Brasil numa grande nação, funciona como uma espécie de presságio sobre o modelo económico que aí vem. Um modelo assente nas privatizações, no Estado mínimo e numa economia mais aberta.
Isto num Brasil conhecido por ser um país protecionista, onde nem todo o investimento estrangeiro consegue entrar com facilidade - algumas empresas portuguesas que o digam - a frase "colocar o Brasil acima de tudo" indica-nos alguma coisa sobre o que vai na cabeça do novo Presidente. Ele que, no programa eleitoral, assume que fará acordos bilaterais apenas com países que tenham a capacidade de acrescentar valor aos produtos brasileiros, voltou a essa ideia no discurso de vitória.
O que isso significa de mudança na política externa do Brasil, permanece uma incógnita.
"Fazer um Governo decente comprometido com o país e com o nosso povo"
Prometeu anunciar os nomes que farão parte do novo Governo, nos 30 dias após as eleições. Entre eles, de acordo com a imprensa brasileira, deverão constar generais na reserva e ex-colegas do candidato na Câmara. Gustavo Bebianno - presidente interino do PSL - foi, até agora, uma espécie de secretário pessoal e assessor de Bolsonaro e é um dos nomes que deverá constar do futuro executivo.
Outro nome apontado como ministeriável é o general Augusto Ribeiro que tem preparado os vários estudos na área da defesa e da segurança pública. A ele junta-se o general Osvaldo Ferreira, o economista Paulo Guedes - já apontado por Bolsonaro como ministro da Fazenda, Planeamento e Indústria - e Luiz Garcia, apontado para a pasta da agricultura. Para a saúde, Henrique Prata e Luiz Mandetta são os nomes mais bem posicionados.
Jair Bolsonaro, que prometeu um Governo mais pequeno, promete "reduzir a estrutura e os privilégios".
"Liberdade de ir e vir, andar nas ruas, em todos os lugares deste país"
A segurança foi o tema que mais marcou a campanha de Jair Bolsonaro e terá sido, porventura, um dos principais motivos para que tantos brasileiros tenham votado nele. O candidato que prometeu mão de ferro para os criminosos e que chegou a dizer que prefere ver as cadeias cheias do que os cemitérios, voltou, no discurso de vitória, a sublinhar a importância da segurança no Brasil.
E esta é uma das principais perguntas que ficam à aguardar resposta depois desta vitória: até onde está Bolsonaro disposto a ir, no uso da força, para combater a criminalidade no Brasil? Que eficácia e que consequências terão as ações do novo Presidente?
Bolsonaro prometeu, "como defensor da liberdade", guiar um Governo que "defenda e proteja os direitos dos cidadãos", onde "as leis são para todos." O que isso significa na prática, o tempo o dirá.
Liberdade política e religiosa. Um Brasil de diversas opiniões, cores ou orientações
É outra das ironias do discurso de vitória de Bolsonaro. O homem que mais atacou as minorias, não só na campanha, mas ao longo de toda a carreira política, chega agora à presidência do Brasil com um discurso de aparente tolerância.
Se no caso da liberdade religiosa, a explicação está não só na fé do próprio Bolsonaro, como no facto de ter grande parte das igrejas com ele, no caso da liberdade política ainda está por confirmar até onde ela será possível. Uma coisa é certa, Bolsonaro vai enfrentar um Senado profundamente espartilhado e terá que ter uma enorme capacidade de negociação para poder governar.
"Recuperaremos o respeito internacional pelo nosso Brasil"
É provavelmente uma das mensagens mais importantes do discurso de vitória. Se aos casos de corrupção, transversais a quase toda a política brasileira, juntarmos as sucessivas crises políticas, um impeachment que retirou do poder uma Presidente da República democraticamente eleita, mais a prisão de Lula da Silva, nos últimos anos o Brasil perdeu, de facto, muito do respeito internacional.
E a campanha presidencial deste ano, não só não ajudou, como tornou ainda mais difícil a situação. Bolsonaro terá noção disso. Só não é claro que tenha consciência do contributo que também ele deu para essa perda de respeito internacional.
"Neste projeto cabem todos aqueles que tenham o mesmo objetivo que nós"
Ao contrário do que é habitual num discurso de vitória, o novo Presidente do Brasil não se assumiu o Presidente de todos os brasileiros. Antes, fez questão de lembrar que "neste projeto" - o dele - cabem apenas aqueles que partilham do mesmo objetivo.
A mensagem não é inócua. Bem pelo contrário. Pode ser o sintoma de que a política brasileira vai continuar a dividir-se e a extremar-se cada vez mais.
Não será assim se Bolsonaro for coerente com a frase com que rematou o discurso de vitória: "O Brasil acima de tudo."