As medusas de Gaza
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Só estive uma vez na cidade de Gaza, há uns 20 anos, por altura do que se chamou a Segunda Intifada, a Intifada de Al Aqsa (só pelo nome não é difícil perceber o gatilho das revoltas palestinianas).
A fronteira de Erez, no norte, era um imenso terreiro árido, com blocos gigantes de betão que davam as únicas sombras. (Deram jeito no regresso para proteger da troca de tiros).
Só se entrava a pé, depois do apertado controlo das forças israelitas. Mas ultrapassado o parque de betão, em Gaza propriamente dita, só se avançava com autorização prévia dos que lá mandavam. E ainda não era o Hamas.
O Hamas lá estava, já bem armado e bem organizado nas obras de assistência aos mais pobres, que já eram todos, mas ainda só sonhava controlar o território (não demorou muito).
Entrar em Gaza era entrar na Idade Média. Carroças puxadas por burros famélicos carregadas de famílias inteiras. Pó, muito pó quente. Buracos no chão de tamanho de casas. Ar viciado.
Como hoje, os corpos e os feridos eram retirados em braços das ambulâncias do Crescente Vermelho e de carros particulares para as mãos de médicos que faziam sabe-se lá o quê para salvar tanta gente, com quase nada, todos os dias.
Achávamos que nunca mais iríamos esquecer a criança que o pai carregava nos braços e arrepio ao ver como usava o corpo ferido para abrir caminho pelo hospital. Só que a seguir vinha outra e outra e outra.
O único momento de leveza foi junto à costa, onde um grupo de mulheres flutuava como papoilas negras dentro das abayas. As saias insufladas pareciam para-quedas marinhos, medusas pretas lustrosas, a boiar no Mediterrâneo.
Brincavam e riam como as crianças, sem defesas, sem pudores, livres. É a imagem que nunca quero esquecer, para não me esquecer que é possível.
