"As milícias do deserto violam mulheres, estão ao telefone com as famílias a pedir mais dinheiro"
O livro "Lampedusa, Ir e Não Chegar", da jornalista do Expresso Ana França, é um retrato pungente das dimensões de sacrifício, dor, sofrimento e morte, por que passam aqueles que atravessam o Mediterrâneo central rumo ao sonho europeu. É apresentado em Lisboa, na Livraria da Travessa, no dia 13 de março
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Ana França é jornalista da editoria Internacional do Expresso, mas antes passou pelo Observador e viveu no Reino Unido, onde colaborou com a Monocle Radio e com o Daily Telegraph. É licenciada em jornalismo pela Universidade de Coimbra e acaba de lançar o livro Lampedusa, Ir e Não Chegar, pela Tinta da China.
Por que é que um livro que fala de vidas começa com uma detalhada descrição dos efeitos da morte num corpo humano, por exemplo, num corpo humano submerso?
Começa assim porque o livro é sobre um desastre que se passou no mar mediterrâneo. Foram tantos mortos (366) que não foi possível trazê-los todos no mesmo dia para Lampedusa, onde o desastre aconteceu. E o efeito da água nos corpos humanos, passadas 30 horas... alguns ficaram menos, outros mais, e é muito complicado, porque as pessoas têm de identificar esses corpos e as pessoas, às vezes, não conseguem. Neste momento, só cerca de 60 dos 366 mortos estão identificados.
E esse acidente já foi há 10/11 anos. O que é que viste em Lampedusa?
Lampedusa é uma ilha muito pequenina, com 20 quilómetros quadrados, e é o sítio na Europa onde mais chegam migrantes.
É um sítio muito bonito?
É um sítio muito bonito, com uma ilha chamada Praia dos Coelhos de uma forma informal. Há uma montanha que quase se junta à outra montanha, que é, de facto, Lampedusa. Cria-se uma espécie de uma correnteza de águas turquesa, inacreditáveis. É possível caminhar dentro da água até muito longe, com um ambiente tropical, ou quase tropical, porque é muito mais perto de África do que é do continente europeu. Também a localização geográfica torna Lampedusa tão importante para o tema das migrações.
E o sítio onde mais se morre no Mediterrâneo?
O Mediterrâneo Central, que é onde Lampedusa se insere, é a rota de migração mais mortífera do mundo. Não há sequer capacidade para nós conseguirmos contar as pessoas que morrem, porque há muitos barcos que nunca são encontrados. Por muito que existam ONGs que têm pequenos aviões que sobrevoam aquela área e conseguem identificar a maioria dos barcos, nunca é possível identificar todos. Portanto, os números, que já são horríveis, são, provavelmente, muito maiores do que o que é contabilizado pela Organização Internacional das Migrações.
E vê-se facilmente os desembarques destes barcos com refugiados?
Não. Em Lampedusa quase toda a gente vive do turismo. Não diria toda, mas muita gentE... Lampedusa teve de se proteger da chegada destas pessoas, porque podemos fazer os juízes morais que quisermos fazer, mas, para que o turismo resulte, não é possível uma ilha estar permanentemente em estado de emergência com dezenas ou centenas de pessoas por semana a desembarcarem na ilha e a pedir auxílio, em situações desesperadas, muitas delas feridas, mulheres grávidas, pessoas que não tomam banho há semanas, estão em centros onde são torturados na Líbia e depois vão para dentro de barcos onde passam dias. Portanto, a chegada destas pessoas é, de alguma forma, escondida pelas autoridades para preservar esta indústria do turismo. Até 2019, era possível ver algumas pessoas na rua. A primeira vez que estive em Lampedusa foi em 2019 e falámos com alguns migrantes que saíam do antigo hotspot, que é o sítio para onde são levados os migrantes.
Um centro de acolhimento...
Um primeiro centro de processamento de impressões digitais, quem é que eles são, de onde é que vêm. Na altura, a rede era fácil de cortar, então havia um famoso buraco na rede por onde eles saíam e depois voltavam a entrar para dormir. Durante o dia iam à praia, sentavam-se nas rochas. A forma como Itália teve de apaziguar as queixas dos Lampedusanos sobre isso foi construir um centro que é, basicamente, uma prisão, porque não dá para sair de lá. Com muros muito altos, com uma espécie de grades daquelas mesmo que estão à volta dos estádios e não se vê lá para dentro. As pessoas ficam lá agora muito menos tempo do que ficavam antes, porque são levadas para outras zonas de Itália, onde depois há outros centros de acolhimento maiores e há prédios públicos e outros sítios onde eles ficam. Essa é a grande vitória dos Lampedusanos nos últimos anos. Não que eles sejam anti-imigração, eu acho que essa fase, se existiu, já passou. Mas as pessoas queixam-se, de facto, de que não conseguem acolher aquela gente, eles têm de ser levados para a Itália. Não é possível ficarem lá.
Ou seja, não é que recebam mal, mas o passar do tempo e os números acabam por pesar muito nesta equação...
Sim, eles não recebem mal. Há imensas histórias de Lampedusa. Aliás, Lampedusa foi nomeada para o Prémio Nobel da Paz dois anos seguidos precisamente porque, sempre que chegam pessoas, alguns restaurantes fecham, em época alta - que lá dura até quase ao fim de outubro -, para cozinhar coisas que não estão no menu, grandes tachadas de massa, coisas de sustento, não são aquelas porções individuais que um cliente pede, como um peixinho. Isso ainda acontece. As padarias começam a fazer pão para os refugiados poderem levar para dentro do hotspot, ou para o ferry que os leva para a Itália, isso ainda acontece. Chegou a haver lampeduzandos a ficar com migrantes em casa. No 3 de outubro, que é a grande data deste livro, do grande desastre, muitos ficaram em casa de lampeduzandos.
Como é, para muitos que tentam chegar à Europa, a travessia do deserto?
A travessia do deserto é uma coisa que nem toda a gente que se mete nela sabe o quão horrível vai ser, pelo menos é o que dizem algumas pessoas que chegam. Há muita ignorância sobre o que se passa nas rotas migratórias. É vendido pelos contrabandistas, como o Eldorado Europeu, e é só atravessar o deserto. No fundo, dizem "está muito calor, leva água contigo", mas não é isso. No deserto do Saara há dezenas de milícias de todo o tipo. Os contrabandistas não são um serviço como os passadores quando em Portugal precisávamos de fugir. Também já tivemos essa fase de saltar a fronteira na nossa História. É um guia. Essas pessoas não te fazem mal, mas as milícias do deserto sim, porque tentam extorquir dinheiro aos migrantes em cima daquele que os migrantes já pagaram aos traficantes. Essas milícias raptam pessoas e torturam-nas. Muitas vezes ao telefone com as famílias, enquanto violam mulheres e enquanto deixam cair óleo quente nas solas dos pés de mulheres e homens. Recentemente o Human Rights Watch, ou a amnistia, não quero estar a dizer uma coisa errada, tiveram acesso a um vídeo em que uma mulher está a ser agredida com paus e está presa pelos dois braços em cima da cabeça. Este vídeo existe porque os traficantes gravaram esse vídeo para enviar à família dessa mulher para que eles transfiram dinheiro e aí as pessoas são libertadas e continuam a viagem. Mas podem não ter esse dinheiro.
A dado ponto escreves: "Uma mulher grávida num barco ou duas ou três é também uma espécie de proteção extra contra a indiferença das autoridades. As viagens em barcos onde há mulheres grávidas são mais caras para toda a gente porque há mais probabilidade que os europeus se compadeçam e ordenem o resgate". Ou seja, os crimes sexuais as violações não apenas usadas como armas de guerra, isso é uma tendência dos conflitos nos últimos 30 anos, se quisermos, mas também quase como moeda de troca para a viagem poder ter um desfecho melhor...
Sim, porque uma mulher grávida é sempre uma mulher grávida. Na Europa isso é utilizado para que o barco todo seja salvo. Se houver uma porcentagem razoável Logo há mais probabilidade da violação poder acontecer. Claro, porque se elas são usadas como uma mais-valia estando grávidas, todo o barco vai beneficiar e, eventualmente, não se pode dizer que seja assim, mas é assim quando as ONGs estão a tentar denunciar estes casos. Todos os dias há alertas de pessoas no mar perdidas e todos os dias há um apelo. Dizem "estão quatro crianças, estão duas mulheres grávidas, está uma mulher quase em trabalho de parto", mas não é por mal, é porque realmente são as pessoas mais frágeis desse barco. O que acontece é que não vão deixar os cento e cinquenta homens no barco e tirar quatro grávidas não é? Portanto, normalmente as pessoas todas são resgatadas.
É também um livro de heróis, como o padre da Eritreia?
O padre da Eritreia, o padre Moussi é um herói mesmo. É um homem que já está afastado dessa vida, porque não tinha vida. O número de telefone dele era eritreu, como todas as pessoas que estavam neste barco. Ele vive em Itália e deixou o número dele a amigos, para "se precisarem de alguma coisa, se conseguirem chegar a Itália digam-me, eu estou a trabalhar com refugiados estou numa igreja onde ajudamos os refugiados, digam-me". O número dele tornou-se uma espécie de ambulância pública, que todos os refugiados usavam. Agora é a Alarm Phone é que faz esse trabalho. Ligavam-lhe em pânico a dizer que iam ser torturados se não houvesse dinheiro. Então, durante muito tempo, o padre tentava reunir dinheiro para impedir que essas pessoas fossem torturadas, depois obviamente isso tornou-se impossível e então começava a ligar para todas as televisões, para todas as rádios, para todo lado a alertar que estavam pessoas no mar e que era preciso salvar, ou nestes centros que era preciso denunciar.
Ele não podia fazer muito em relação aos centros, porque são milícias muito poderosas, mas nos barcos conseguiu que muita gente fosse resgatada. Ele pressionava nas televisões os políticos, chamava mesmo os políticos pelo nome: "Tem de ir, tem que ir tem de ir buscar estas pessoas." O Vito Fiorino é outro herói, que salva nessa noite, 3 de outubro, 47 pessoas no seu barco que estava registado para oito pessoas. Nessa noite eram oito amigos que o Vito lá tinha e trouxe mais 47 refugiados para a terra. Ele é outro herói, que em Itália fala em escolas e em todo lado. O Vito Fiorino é mesmo o herói de Lampedusa desse 3 de Outubro, mas há muitos heróis que nem são mencionados.
Pietro Bártolo é outro herói...
O médico de Lampedusa. Acho que durante 30 anos foi o único médico de Lampedusa. É obstetra, nasceu e cresceu em Lampedusa. O irmão dele tem uma deficiência grave devido à falta de obstetras em Lampedusa, que ainda hoje existe os serviços para a população são reduzidos, muito reduzidos e o irmão dele ficou o parto correu mal, não havia médicos na ilha e o irmão esteve basicamente internado desde criança e ele basicamente ficou com essa obrigação de se tornar obstetra, tornou-se obstetra e voltou para a ilha. Depois tornou-se eurodeputado, mas ele é outro dos heróis durante 30 anos.
O livro tem como centro da narrativa um naufragem que morreram uns 366 pessoas foi na altura 2013 dos maiores. E como é que se foram apurando as responsabilidades das autoridades costeiras?
Sim, é difícil apurar autoridades. Ninguém foi condenado das autoridades italianas, apenas o comandante tunisino do barco foi condenado a 18 anos. Depois também uma segunda pessoa que veio num barco, passado quatro ou cinco dias, e quando chegou a Lampedusa ainda lá estavam os sobreviventes e eles reconheceram-no como um violador, como um autêntico torturador, um carrasco mesmo. Ele veio num barco também para continuar a sua vida na Europa, mas quando chegou a Lampedusa as pessoas que ainda estavam lá do naufrágio de 3 de outubro reconheceram-no, portanto essas duas pessoas estão presas, mas as autoridades italianas ninguém foi condenado. É muito difícil perceber se foi negação de auxílio. Há muitos relatos de luzes a circundar o barco ou seja, alguém viu o barco e segundo as descrições dos barcos em si feitas pelos sobreviventes são barcos da guarda costeira italiana portanto, eles sabiam deste barco só que o barco durante muito tempo esteve estável, o motor falhou, mas o barco não estava a afundar.
Mas isso também não é impossível de verificar se de facto havia naquela noite outras urgências se chegaram outros barcos ou não?
Sim, isso foi verificado, as chamadas existem e chegara. Havia outros barcos. Agora o que é estranho, e que o Vito até hoje diz, é a negação de auxílio. Eles fizeram a chamada do barco do Vito quando viram aquelas pessoas todas fizeram a chamada às sete da manhã. Isso também está aprovado uma vez que há um registo de chamada na capitania do porto de Lampedusa e o auxílio começa. O auxílio começa a ser enviado muito tempo depois, porque obviamente aquelas pessoas já tinham estado na água três horas porque foi durante a noite. Quando o Vito acende as luzes do barco e os vê, eles já estão há 02h40min a tentar safarem-se, portanto, quando liga para a capitania e eles só vêm meia hora depois quando estão a um quilómetro da costa de Lampedusa, ou um quilómetro e meio, passaram quatro horas.
Dois dos personagens reais e centrais no teu livro acabam por ir parar à Suécia sobreviveram e foram parar à Suécia e foste visitá-los?
Sim, o Adal não esteve no barco.
O Adal é o primeiro a chegar a Lampedusa para procurar o irmão, o irmão, sim, estava no barco e o Adal vê a notícia logo às seis da manhã quando se levanta e pensa: "Eu acho que isto era o barco do meu irmão." As pessoas nunca têm a certeza de quando é que vão embarcar, por causa das tempestades ou porque o traficante lembrou-se de pôr outras pessoas à frente que pagaram mais trezentas razões. O Adal sabia que o irmão ia embarcar, porque o Adal pagou o bilhete ao irmão. Ele sabia que ia fazer esta travessia horrível. O Solomon, de facto, estava no barco e foi um dos sobreviventes do barco eles vivem os dois na Suécia. A Suécia tem uma comunidade grande e aceitou os sobreviventes que quisessem ir para lá depois deste desastre. A maioria está lá, há alguns na Noruega, também outros na Dinamarca.
O Adal agora vivem bem, tem cinco filhos, creio eu, uma menina nos Estados Unidos e quatro com ele na Eritreia. Solomon tem dois mais pequeninos, o Solomon é mais novo e vivem bem, estão integrados e eu estive em casa do Adal estive lá mesmo a dormir com eles e a comer com eles. Estava a olhar para aquelas crianças e a pensar que têm um aspecto super exótico. Os olhos muito grandes, a pele escura e depois falam tingrinha, inglês sueco.
Mas é uma história de sucesso que é necessariamente acompanhada de muitas e muitas outras que acabam mal e o livro termina com outro naufrágio...
O livro termina com outro naufrágio que se passou oito dias depois deste 3 de Outubro.
O 3 de Outubro quase mudou a Europa, acho eu, durante um ano porque o 3 de Outubro é a razão por se ter lançado o Mare Nostrum, que foi uma operação com todos os países europeus a tentar que as pessoas não morressem o 3 de Outubro. Durão Barroso, na altura Presidente da Comissão Europeia, esteve lá. Realmente aquilo foi muito chocante, porque os corpos foram trazidos para a terra, isso não existia desde a 2ª Guerra Mundial, essa quantidade de pessoas a morrr no mar não se vê. Depois disso tudo, passados oito dias, há a mesma exata negação de auxílio em que os telefones estão a ser trocados entre a guarda costeira italiana e a guarda costeira maltesa e durante cinco horas as pessoas estão a ligar consecutivamente do barco e morrem 60 crianças nesse naufrágio é conhecido como Naufrágio das Crianças e passou-se ao 11 de Outubro de 2023. Há um horrível a 3 e outro igualmente horrível a 11. Não é que não se tenha aprendido nada, tento não pensar que a negação de auxílio é intencional ou é por maldade, mas há toda uma burocracia a ver quem é que fica com os refugiados, porque depois politicamente é complicado quando se vê desembarques de duzentas pessoas e, então, houve ali aquela coisa de quem é que malta recebe ou é a Itália que recebe e depois ninguém, quando de facto foi enviado auxílio o barco estava debaixo do mar.