Atentados de 11 de Março em Madrid fazem 20 anos: “Fui votar com as cinzas da minha irmã debaixo do braço”
O atentado islamista provocou 192 mortos e cerca de 2000 feridos a três dias das eleições legislativas. Durante anos a autoria da massacre foi objeto das mais variadas teorias da conspiração.
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Eram 07h37 daquela quinta-feira 11 de março de 2004 quando três bombas explodiram num comboio estacionado na estação de Atocha. Um minuto depois, três explosões mais: uma na estação de Santa Eugénia e duas na estação de El Pozo. Às 07h39, outras quatro bombas explodiram num comboio a 500 metros de Atocha: 192 pessoas morreram, quase 2000 ficaram feridas e Espanha ficou em choque. Foi o maior atentado de sempre em território europeu.
Adeniria Moreira, brasileira que vive em Madrid há mais de 20 anos, ia no comboio que explodiu na estação de El Pozo. Como todas as manhãs, tinha saído de casa para trabalhar. Costumava apanhar o comboio das 7.30 mas, naquele dia, atrasou-se e apanhou o que passava dez minutos depois. “Entrei na estação a correr. Ia entrar na terceira carruagem mas estava cheia e entrei na da frente”, conta. Essa decisão, fruto do acaso, pode ter-lhe salvado a vida: uma das bombas explodiu na terceira carruagem a que estava no vagão onde Adeniria viajava não rebentou.
“Quando o comboio começou a andar explodiu. Ao abrir a porta vi toda a gente... perna para um lado, cabeça para o outro... a gente corria... as pessoas do meu vagão a passavam por cima das que estavam no chão... e eu corri também, saí da estação, estavam os muros caídos, tudo destruído”, recorda. “Lembro-me do fumo, do cheiro de fumaça que saia dos corpos, as pessoas queimadas, sem roupa... foi horrível... horrível”.
Adeniria fala devagar. Às vezes tem lapsos de memória e para. Pergunta onde ia, volta atrás, refaz o discurso. “Fiquei com stress pós-traumático e um quadro de ansiedade que ainda hoje me obriga a estar medicada”. Naquele 11 de Março, Adeniria tinha 35 anos e estava grávida de quatro meses mas perdeu o bebé no atentado. “Eu tinha uma vida e a partir desse dia mudou tudo, é outra coisa”.
É a mesma sensação que tem David Abad, 43 anos, que perdeu a irmã, Eva, nos atentados. “Não há um só aspeto da vida, nem do dia a dia, pelo menos no meu caso e no da minha família, que não esteja atravessado por isto”.
Aquele 11 de Março “começou como qualquer outro dia”. “Vivíamos em casa dos meus pais, como era habitual ela saiu antes para ir trabalhar e eu saí uns vinte minutos depois”. Quando chegou ao trabalho e já com a notícia dos atentados, a angustia disparou-se. “Ligou-me a minha mãe a dizer que não conseguiam falar com a minha irmã”.
Um colega de trabalho levou-o à Estação de Comboios de Chamartin, onde Eva trabalhava numa administração da lotaria. “Estava fechada e ninguém na estação tinha visto a minha irmã”. Começou então a peregrinação pelos hospitais, a busca do nome de Eva nas listas de feridos. Nada.
“Acabámos por ir para o IFEMA, para onde estavam a levar os cadáveres. Havia muita confusão, muita gente e só um dia depois, na sexta-feira, nos dizem que há uma pessoa que coincide com a descrição da Eva. Fomos fazer o reconhecimento do corpo e efetivamente era ela que estava ali”.
Eva tinha 30 anos quando morreu na explosão do comboio que estava a entrar na estação de Atocha. “Tenho poucas memórias desses dias. Parece que ficou tudo numa espécie de nebulosa. Lembro-me de ter ficado o dia todo de sábado a velar o corpo da minha irmã, do crematório ao fim do dia e de termos ido recolher as cinzas no dia seguinte, domingo”.
Teoria da conspiração
Domingo, 14 de Março de 2004, Espanha vivia uma jornada eleitoral marcada pelo terrorismo e pelas mentiras sobre a autoria dos atentados. Durante todo o dia 11, o Governo compareceu várias vezes para garantir que o grupo terrorista basco ETA estava por trás dos atentados. Ao longo do dia, as provas apontavam cada vez mais para uma origem islamistas, mas a versão oficial do Governo continuava a garantir que tinha sido a ETA.
Ainda durante essa jornada negra, Arnaldo Otegi, líder da esquerda abertzale no País Basco, do já ilegalizado Herri Batasuna, braço político da ETA, veio a público garantir que o atentado não tinha sido provocado pela ETA. “Nem os objetivos, nem o modus operandi permitem concluir que a ETA tenha tido alguma responsabilidade nos atentados”.
A confusão instalava-se. A campanha eleitoral suspendeu-se e foi convocada uma manifestação multitudinária à qual assistiram mais de dois milhões de pessoas e todos os partidos, mas o PSOE começava a exigir responsabilidades ao atual governo. “Os espanhóis merecem um governo que não lhes minta e que sempre lhes diga a verdade”, disse Pérez Rubalcaba, o ministro do Interior que havia de selar o fim da ETA anos mais tarde, numa conferencia de imprensa.
Nessa noite, convocadas por uma mensagem de texto nos seus telemóveis, milhares de pessoas se concentram junto à sede do PP em Madrid a um só grito “Quem foi?”. Exigem saber a verdade. As provas que surgem nos dias seguintes – uma carrinha com detonadores com uma gravação de versos do Alcorão, a reivindicação do atentado por parte da AlQaeda e a detenção de dois cidadãos indianos e três marroquinos – fazem cair a tese da ETA.
Nessas eleições a participação foi de 75%, a quinta maior de sempre. “Fomos votar com as cinzas da minha irmã debaixo do braço. Estavam a acontecer coisas demasiado duras para deixar que outros decidissem por nós. Não”, lembra David Abad. As legislativas, que estavam ganhas pelo PP, dão uma reviravolta e José
Luís Rodríguez Zapatero ascende ao poder com 42,59% dos votos. E essa reviravolta marca o início de uma teoria da conspiração que dura até hoje.
“Surge a tese, sem qualquer evidencia, de que a responsabilidade dos atentados do 11 de Março é da ETA. O grave é que a tese surge do Governo, que espalha a desinformação nos primeiros dias e depois é apoiado durante anos por órgãos de comunicação muito relevantes, que se dedicam a alimentar esta teoria”, explica Victor Sampedro, catedrático em comunicação política e autor do livro “Vozes do 11M. Vítimas da Mentira”.
O livro entrevista três vítimas do atentado e três jornalistas que sofreram represálias por não aceitarem difundir essa verdade alternativa nos meios de comunicação onde trabalhavam. Durante anos, o jornal El Mundo e a rádio Cope difundiram informações que pretendiam vincular a ETA ao atentando de 11 de Março. E ainda hoje, muitos afirmam que a verdade ainda não se conhece. “Não existia nessa altura, nem existiu depois, uma só evidência, um só testemunho, investigados judicialmente e aceites pelos tribunais, que questionem a sentença”, diz Sampedro.
A sentença condenou Jamal Zougam, Otman el Gnaoui y José Emilio Trashorras como principais responsáveis dos atentados, com penas de entre 34.715 e 42.924 anos, apesar da pena máxima em Espanha ser de 40 anos. Ano após ano, cada 11 de Março Zougam dá uma entrevista na qual diz ser inocente. E ano após ano, as vítimas se indignam com o tema.
“É incrível que tenham chegado até aqui. Que 20 anos depois esta gente continue a dizer as mesmas coisas, que nunca se tenham desculpado, que continuem a ganhar a vida assim. É indignante e doloroso”, diz David Abad. “Quando te arrancam um ser querido desta forma a tua cabeça está preparada para poder ver a cara dos assassinos e lutar judicialmente contra ela, mas para o que não estamos preparados é para se inventem estas teorias e nos lixem a vida com elas. Não consigo perceber que problema há em aceitar que foi um atentado islamista e deixar de remexer isto. A justiça foi muito clara”, lembra.
Polarização
A partir de certa altura as acusações iam de um espectro ao outro da política. A esquerda acusava o PP de mentir para salvar as eleições, o PP insinuava que o PSOE estava por detrás do encobrimento da verdadeira responsabilidade da ETA. “O PP acusa o PSOE da pior notícia falsa da história, o pior que se pode lançar contra um adversário político, a acusação de que ganhou uma eleições com um atentado contra o eleitorado”, explica Sampedro.
“A partir daí criou-se s retórica de que o PSOE ganhou as eleições de forma ilegítima, diziam que Zapatero chegou em comboio suburbano à Moncloa e todo o negacionismo eleitoral da direita, do Trumpismo, que teve em Espanha um precedente há 20 anos”, continua.
Tanto é assim, que o catedrático considera que a actual polarizaçãoo da sociedade espanhola começou naquele 11 de Março. “A sociedade dividiu-se entre os que acreditavam nas provas demonstradas em Tribunal e nos que acreditavam na teoria da conspiração. Ainda hoje, um de cada três eleitores pensa que a ETA teve alguma coisa a ver com os atentados de 11 de Março”, indica.
“Instalou-se a mentira na esfera pública espanhola, como arma de debate político e de combate eleitoral para criminalizar o inimigo. Atualmente temos dois blocos ideológicos em Espanha que não admitem a legitimidade do outro nem sequer para coexistir. A esquerda diz às direita que tem origem fascista e no franquismo e negam-lhe a legitimidade democrática, e a direita diz que a esquerda tem um projecto de desintegração territorial e mudança do regime, ou seja, quer um República. E não há qualquer capacidade de acordo ou consenso mínimo”, conclui.
E por isso, esta data, que devia ser de união e lembrança pelas vítimas, politizou-se. E entre as dúvidas sobre a autoria e as homenagens que se espalham pelas diversas organizações, e pelos diversos partidos, sem nunca unirem a sociedade, acabam por deixar as vítimas em segundo plano. “É um processo de revitimização. Elas deixam de interessar”, diz Sampedro. “Ano após ano, tenho de ouvir a mesma cantilena, as mesmas mentiras, as mesmas tentativas de enganar as pessoas”, prossegue Abad. “Quando a única coisa que quero é lembrar a minha irmã”
