Augusto Santos Silva: "A responsabilidade primeira, incluindo os mortos em Gaza, é do Hamas"
A guerra em Gaza, a UE e Aristides Sousa Mendes. Entrevista ao programa O Estado do Sítio da TSF, após as 13h, a propósito do livro "Ligar: uma reflexão sobre a política externa portuguesa de 2015 a 2022".
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Fala de Aristides de Sousa Mendes como elemento inspirador para a diplomacia portuguesa. Porque é que diz que não foi feita a reintegração plena de Aristides de Sousa Mendes? A Há muitas forças retrógradas e antidemocráticas ainda no Palácio das Necessidades?
Não, não. Eu aí tenho uma pequena vaidade pessoal. Como sabe, o título de um livro é uma das coisas mais difíceis de encontrar e o livro, em alguns momentos, teve no título a palavra Aristides. Porquê o Aristides de Sousa Mendes? É um caso muito interessante. É um diplomata conservador de uma família conservadora que em 1940 se defronta, ele próprio, com um enorme problema de consciência pessoal. Ele tinha tido um percurso no Ministério dos Negócios Estrangeiros que não tinha sido retilíneo, exemplar, e ele era motivo de críticas pela sua conduta como diplomata e a sua conduta pessoal e familiar também suscitavam reparos no MNE. Portanto, não era um bem amado nas Necessidades. Em 1940, era cônsul geral em Bordéus e defrontou-se com aquela massa de pessoas que vinham fugidas dos nazis e que precisavam de um papel, de um visto, para para salvar a sua vida. E ele distribuiu vistos. Decidiu que razões de humanidade o obrigavam a fazer aquilo e, portanto, a desobedecer a uma ordem expressa de Salazar, então ministro dos Negócios Estrangeiros. Fez isso, pagou um preço por isso, não se sabe bem porquê. Talvez porque, justamente, pertencia a um meio conservador. O seu gesto valeu-lhe o despedimento, a expulsão da carreira e um desterro: acabou miserável. O seu gesto foi pouco conhecido e pouco apreciado, mesmo nos meios de oposição ao Estado Novo. De maneira que ele chega ao 25 de Abril num grande esquecimento. Logo a seguir ao 25 de Abril, primeiro o Melo Antunes, depois Medeiros Ferreira, depois Jaime Gama, procuraram reabilitá-lo e fizeram isso. Jaime Gama não como MNE, mas aqui, como deputado, conseguiu propor a sua reintegração na carreira. O Mário Soares, como Presidente da República, dálhe postumamente a Ordem da Liberdade e um programa de televisão faz conhecer ao país aquela história tão tocante e maravilhosa e faz de Aristides Sousa Mendes um exemplo moral, um dos maiores exemplos morais do século XX português. O que é que nesta descrição está a faltar? Está a faltar a instituição: o Ministério dos Estrangeiros. Estranhamente, um pouco perturbadoramente, neste cortejo de homenagens mais que merecidas, faltava à data de novembro de 2015, uma da própria casa, do MNE e, portanto, durante alguns anos eu procurei convencer a essa casa que muito prezo e que consegui convencer, depois de algum tempo, que isso (essa ausência de uma homenagem) era uma coisa que nos diminuía a nós, os do Palácio das Necessidades e não a ele, Aristides de Sousa Mendes. E era preciso fazer qualquer coisa que significasse o regresso pleno e efetivo de Aristides à sua casa. E devíamos fazer isso de uma forma que Aristides gostasse: de uma forma sóbria, uma forma contida, não pomposa. E acabámos por decidir que podíamos fazer isso pondo uma oliveira que é uma árvore de paz e uma lápide, recordando todos os diplomatas portugueses que tinham contribuído com a sua ação para salvar pessoas da barbárie nazi. E às vezes, nessa conversa eu tive que usar argumentos um bocadinho fortes. O mais forte que eu usava era este, que é um argumento verdadeiro e que me fez, aliás, dizer 'eu não posso sair daqui sem resolver este problema': eu fui, salvo erro, duas vezes a Israel como MNE. E sempre que eu ia à sede do Ministério dos Estrangeiros israelita, o meu colega, a primeira coisa que fazia era levar-me à parede onde estava escrito, entre outros, o nome de Aristides de Sousa Mendes. E eu dizia aos meus amigos diplomatas e aos meus colegas e aos funcionários com que trabalhei: 'Isto é impossível'.
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Isto não pode estar lá sem estar cá...
Claro, é intolerável. Então os israelitas têm o Aristides numa parede em que o lembram e nós não temos nada que possamos mostrar? Quando o ministro israelita vem cá e eu não lhe posso mostrar nada, temos que resolver isso. E resolveu-se. E por isso é que nós, como sabe, eu também quando é preciso fazer as coisas e dar lhe uma densidade simbólica, também sei como é que devo fazer. E, portanto, escolhemos o dia 10 de dezembro, Dia Mundial dos Direitos Humanos, para fazer essa cerimónia no Ministério dos Estrangeiros e deixar uma Oliveira que está lá, num sítio por onde toda a gente passa e que lembra Aristides Sousa Mendes para que Aristides regressasse plenamente ao ministério que sempre foi o seu.
Ter tido um Aristides de Sousa Mendes não dá atualmente ao país, muito menos eternamente, um atestado de isenção de práticas antissemitas. Preocupa-o aumento de atos antissemitas atualmente em Portugal e na Europa?
Muitíssimo. Mas devo dizer que Portugal é dos países com menos problemas de antissemitismo. Também aí damos cartas.
Preocupa-o tanto quanto a islamofobia?
Claro. Todas as conceções e atitudes que negam a dignidade humana, seja a quem for, são condenáveis, seja a homofobia, seja por razões de natureza étnica, religiosa, ligadas ao sexo ou à orientação sexo, ligadas à idade. Nós não podemos negar a dignidade humana a nenhum ser humano. E devemos revoltar-nos sempre que isso acontece. O que é que eu fiz nesse campo? Portugal não pertencia ainda à Aliança Internacional para a Memória do Holocausto e comigo passou a pertencer. E nós aproveitámos justamente o octogésimo aniversário do gesto de Aristides, em 2020, para lançar um grande programa a que chamámos "Nunca Esquecer", justamente de memória do Holocausto, combate às formas de antissemitismo e ao antissemitismo e a todas as formas de racismo. E é isso que temos feito. Aliás, a comissária desse programa, que é a doutora Marta Santos Pais, é uma personalidade de elevadíssimo gabarito nacional e internacional. É, aliás, a primeira pessoa portuguesa a fazer parte do Comité Internacional Contra a Pena de Morte. Porque é que eu estou a dizer isto hoje, tentar meter aqui a pena de morte? Para dizer que uma das coisas que caracteriza os países que têm esta capacidade que eu chamo intersticial ou mercurial, é a sua capacidade de escolher bandeiras e de se bater por bandeiras.
Quais?
Já falei aqui de duas: uma são os oceanos onde nós temos, de facto, uma posição de liderança internacional. A outra é a luta contra a pena de morte. Nós somos, aliás, o país de referência, o país líder dos países da União Europeia dentro do Conselho da Europa. Outro é o tratamento das questões de toxicodependência como questões de saúde e não propriamente questões penais. E há várias outras bandeiras que nos caracterizam. Portanto, ao contrário do que às vezes se diz, quando um português ou uma portuguesa se encontra com meios estrangeiros, não é verdade que a primeira e única coisa que nos digam é Cristiano Ronaldo. Dizem nos Cristiano Ronaldo e isso é uma das nossas forças. Mas também nos dizem ah, os tipos que foram dos primeiros a acabar com a pena de morte, os sujeitos da agenda global para os oceanos, há o António Guterres, o António Vitorino, que teve também um mandato muito bom à frente da OIM e assim sucessivamente. E têm-nos como país capaz de falar com todo., país moderado, país com opções claras, mas também capaz de compreender os outros, designadamente um país da Europa com excelentes relações com a África subsariana, com o Magrebe, também com a América Latina e com o Sudeste Asiático. Um país desenvolvido - porque nós somos um país desenvolvido -, que compreende bem as agendas do desenvolvimento e do desempenho sustentável e sabe que o desenvolvimento é uma questão de nós todos e não apenas de ajudar os pobrezinhos a serem menos pobrezinhos. E por isso é que eu digo que a um português, a uma portuguesa não basta aquela distinção que há em muitos congressos de relações internacionais entre os que são de Marte e os que são de Vénus. Se conhece essa conversa, a Europa seria de Vénus, os Estados Unidos seriam de Marte. E uns tinham que estar por Marte e outros tinham que estar por Vénus. Não. Nós temos uma especial afinidade com Vénus porque, segundo o nosso Luís de Camões, foi ela que permitiu que a gente chegasse por via marítima à Índia. Temos também clareza quanto a Marte. Nós somos da Aliança Atlântica. Nenhum, em nenhum momento o esquecemos. Mas acrescentamos um outro Deus que na mitologia latina se chama Mercúrio e na grega se chama Hermes. Porque é que eu estou a usar os dois nomes? Porque de Hermes vem a hermenêutica, que é a capacidade de compreender, de interpretar, de, a partir do nosso sentido, conseguir compreender o sentido do outro, o que significa também colocar-se no lugar do outro. E é Mercúrio o deus da comunicação, o deus do comércio. Eu gosto muito de citar um verso do Camões, dos Lusíada, O Vasco da Gama está a falar com o rei de Melinde e diz que 'quem não quer comércio faz guerra'. O que quer dizer? Que quem quer comércio não faz guerra. E nós somos mais pelo lado do comércio. Qual é o deus do comércio? O nosso Mercúrio.
Este é um livro em que em que se percebe o seu otimismo. Há pouco falava do Índice de Desenvolvimento Humano e dos Índices de Desenvolvimento Humano Há uma dada altura em que escreve sobre a posição de Portugal nos países da União Europeia e diz que Portugal é o 21º mais bem classificado. Não diz que é o sétimo pior classificado da União Europeia...
Sim. Em primeiro lugar, porque uma coisa decorre da outra. Em segundo lugar, porque eu sou otimista por três razões fundamentais. A primeira razão é porque não gosto de estar deprimido. Portanto, aquela gente que diz sempre 'Ah, eu saltei três 3,70 metros no salto à vara podia, ter saltado 3,75. Eu gosto mais de pensar 'eh pá, olha, já saltei mais de 3,65 metros. Segundo, por uma razão de ideológica, como eu tentei explicar num livrinho que se chama Os valores da Esquerda Democrática, eu acho mesmo que a antropologia da esquerda democrática é otimista. Nós acreditamos no progresso. Os progressistas acreditam nisso, progredir e melhorar. E, em terceiro lugar, porque também não consigo perceber que quem está envolvido em ação política como eu estou desde os meus 15, 16 anos, seja pessimista. Está no ofício errado. Se a gente faz ação política é porque pensa que, do que nós fazemos, há de resultar alguma coisa.
E esse otimismo serve-lhe para estar confiante de que este cessar fogo de quatro dias na Palestina possa aguentar-se e, eventualmente, até possa ser prolongado?
Não, o otimismo não me garante isso. Também não me esqueço da grande frase do do Gramsci: o pessimismo da razão, o otimismo da vontade. Portanto, ser otimista não quer dizer também desconhecer a realidade das coisas e a situação na Faixa de Gaza é muito difícil. Sabe que eu tenho uma posição muito própria neste domínio. Eu acho mesmo que a responsabilidade primeira por tudo o que está a suceder é de uma organização terrorista chamada Hamas, incluindo os mortos em Gaza pelos bombardeamentos israelitas também devem ser colocados na fatura que devemos passar ao Hamas porque o Hamas desencadeou o ataque de 7 de outubro, porque o Hamas luta contra a própria existência de Israel, porque o Hamas oprime a população civil de Gaza, porque o Hamas não protege os os seus, as suas gentes, porque o Hamas usa as instalações civis de Gaza para fins militares.
Tudo isso não poderia ser diferente se não houvesse uma ocupação?
Claro. Mas vou citar António Guterres. Esse facto em nada justifica o terrorismo. Agora, a responsabilidade do que se passa ali não é exclusivamente do Hamas, embora seja predominantemente do Hamas. Porquê? Porque Israel está sujeito às leis, incluindo as leis da guerra e, em particular, ao direito internacional humanitário. E, portanto, sim, é verdade que o inimigo usa pessoas como escudo humano, mas isso não significa carta branca para nós matarmos as pessoas que estão a ser usadas como escudos humanos. Eu estou a dizer isto apenas para entender que há uma grande dificuldade nisto. E por isso é que é tão importante que pelo menos esta trégua dos quatro dias tenha sido conseguida. E por isso, mais uma vez, se me permite, para puxar a brasa à sardinha portuguesa, por isso é que Portugal faz bem, entre outras coisas, não só em lidar com Israel e com a Palestina, como também em cultivar laços com países árabes que estão na mesma lógica nossa de tentar conter, tentar moderar, tentar intermediar.
Aliás, o seu sucessor, João Gomes Cravinho, vai estar este sábado na Jordânia e no Egito.
Exatamente. Seja Países tão próximos de nós como são a Jordânia ou o Egito, seja países um pouco menos próximos de nós, como o Qatar. Mas, mais uma vez, nós não podemos cortar as pontes só na base de 'Ah, aquele é uma ditadura, este faz jogo duplo, o outro não é da nossa cor'. Isso não serve. E é muito importante que haja países no mundo e diplomacias no mundo como a nossa, que sabem que essa lógica de preto e branco, de amigo ou inimigo, por nós ou contra nós, é uma lógica que não serve. Não serve na maioria das situações e, especialmente, não serve nas relações internacionais.
Esta visita do ministro português, juntamente com o ministro dos Negócios Estrangeiros, aconteceu um dia depois da visita de Pedro Sánchez, quando a Espanha assume nesta altura a presidência do Conselho da União Europeia. Pensa que é um momento em que a UE tenta demonstrar que tem mais peso político numa região onde tem tido pouco e tem servido sobretudo para pagar a reconstrução?
Eu devo dizer que nós também devemos saber avaliar as circunstâncias. O conflito israelo-palestiniano é uma das áreas em que a UE como tal, tem menos capacidade de agir. Porquê? Porque é uma das áreas das questões internacionais em que a União Europeia está internamente mais dividida. E isso retira força. Como sabe, a maneira como a Alemanha ou a Áustria olham para estas questões, por razões muito compreensíveis, é muito diferente da maneira como Portugal, a França, a Espanha ou a Irlanda, ou o Luxemburgo, a Bélgica ou a Itália olham para estas questões. E isso retira, evidentemente, força à UE e obriga a UE a, não digo acantonar se, mas a privilegiar mais as áreas de intervenção onde a nossa unidade existe, designadamente a área de intervenção humanitária e também de apoio à reconstrução, de apoio ao desenvolvimento. Isso, em parte, nós devemos compreender e não devemos pedir à UE coisas que manifestamente estão hoje para além do seu alcance. Dito isto, é muito importante que, por exemplo, o Pedro Sánchez tenha estado acompanhado do Alexander De Croo, portanto, estão a atual Presidência e a próxima presidência da UE. E isso dá muita força e é muito importante que Portugal e a Eslovénia estejam e muitos outros ministros estrangeiros estejam a visitar e tentando influenciar e contribuindo para melhorar a situação agora. Nenhum de nós tenha a mínima dúvida sobre isto. Nós não conseguimos resolver o conflito sem o resolver politicamente.