Entende que o Conselho de Segurança está numa paralisia "horrível" e que a ONU não aguenta isso muito tempo. Elogia as capacidades e mandatos do amigo secretário-geral. Augusto Santos Silva em entrevista à TSF.
Corpo do artigo
Entrevistado no programa O Estado do Sítio, aqui com áudio em versão integral, a propósito da publicação do livro "Ligar: uma reflexão sobre a política externa portuguesa de 2015 a 2022", nesta última parte da entrevista o ex-chefe da diplomacia portuguesa e atual presidente da Assembleia da República, fala sobre as capacidades da política externa do país, dos mandatos de António Guterres, da urgência da ação climática.
Porque é que um país que tem uma dimensão geográfica pequena pode ser considerado, como diz no livro, e reconhecido como tal, um construtor de pontes, um fazedor de pontes na diplomacia?
Exatamente porque o mundo precisa de duas coisas ao mesmo tempo. Não tenho sobre isso nenhuma ilusão. Precisa do que antigamente se chamava a balança do poder, grandes países ou grandes blocos - Os EUA, a UE, a Rússia, a China, a Índia, o Brasil, o antigamente grupo dos não Alinhados. Portanto, podem ser países individuais ou blocos que têm relações que são, ao mesmo tempo, de tensão e de comunicação entre si. E, portanto, essa balança de poder existe. E mais uma vez, a grande vantagem de Portugal é que tem uma posição inteiramente clara quanto a essa balança de poder. Nós pertencemos à União Europeia e pertencemos à Aliança Atlântica. Portanto, nós pertencemos ao Ocidente. Mas, ao mesmo tempo, o mundo precisa de outra coisa. Precisa de quem, no meio disto, percorra os interstícios disto, seja capaz de comunicar, seja capaz de, sendo em Bruxelas reconhecido como membro da UE, não tenha nenhuma dificuldade quando está em Buenos Aires, de falar com o interlocutor local, quando está em Montevideu de saber quais são os laços de ligação que existem entre Portugal e o Uruguai. E o mesmo na Índia ou mesmo na no Sudeste Asiático, o mesmo na Ásia Central e por aí fora. E, portanto, Portugal, que não é uma grande potência, é um país médio da UE, parte desse grande bloco normativo e económico e de segurança também, que é a UE. É, ao mesmo tempo, um país europeu que foi treinado historicamente nos percursos intersticiais. Portanto, nessa viagem por várias culturas, várias tradições, várias histórias. Vou contar-lhe uma coisa. Eu dava-me extraordinariamente bem com o meu colega francês em 2016 e brincávamos muito um com o outro. A propósito da final do Campeonato da Europa, que foi em Paris e Portugal ganhou à França, ele reconhecia quando eu lhe dizia 'bom, vês que em Lisboa as pessoas estavam por Portugal. Em Paris as pessoas estavam pela França mas também havia muitas que estavam por Portugal. Mas em Luanda as pessoas estavam por Portugal. E em Argel? E ríamos os dois. Porque há uma maior proximidade de Portugal...
TSF\audio\2023\11\noticias\25\25_novembro_2023_o_estado_do_sitio_emissao_
Nem todos os países têm as mesmas relações com os ex-povos colonizados que Portugal tem...
Claro. Outro exemplo: como sabe, porque isso é público, quando foi a candidatura do engenheiro António Guterres a secretário -geral das Nações Unidas, entre os membros permanentes o primeiro que apoiou desde o início e fez muita campanha pelo Guterres, foi a França. O segundo a definir com clareza a sua posição foi a China. E quando nós às vezes perguntávamos aos interlocutores chineses depois, porque é que foi tão rápido? Uma das respostas que tínhamos era esta: 'porque nós conhecemo- nos há 500 anos; há 500 anos que nós conhecemos os portugueses. Claro que depois acrescentavam: e o António Guterres era primeiro-ministro quando foi a transição de Macau e nós sabemos os compromissos que ele assumiu e a forma como os cumpriu. Portanto, quando na presidência portuguesa da União Europeia, nós falámos com o presidente do Conselho Europeu para saber que realização de política externa devia marcar a nossa presidência, e acertámos que era a Índia, nós sabíamos e ele sabia que era mais fácil sermos nós a fazer isto; como foi, porque nós conhecemo-nos, nós temos relações, nós temos uma presença. A presença patrimonial portuguesa nalguns Estados da Índia é relevante. E, em geral, as pessoas reconhecem-nos duas coisas. Em primeiro lugar, esta grande capacidade a que alguns chamam universalista. Eu não vou tão longe. Esta capacidade de estarmos à vontade em diferentes contextos históricos, culturais e geopolíticos do mundo; isso em primeiro lugar. E depois, a nossa moderação, Porque como nós somos um país sem poderio nem económico, nem demográfico, nem militar, a nossa capacidade vem da nossa habilidade em usar o soft power. Como o livro começa com um capítulo que procura responder à pergunta: quais são os recursos principais da nossa influência no mundo? E a resposta é sempre elementos do chamado soft power: a diáspora, a língua, a constância da nossa política externa, o à vontade em que estamos nas relações internacionais e o facto de nós não cultivarmos a hostilidade, mas cultivarmos o a moderação, a comunicação, a mediação. Por isso é que somos bons construtores de pontes.
Já falou aqui de António Guterres . Feito agora algum balanço, mesmo tendo em conta que Guterres acabou por levar com a eleição de Trump, a pandemia de duas guerras, o que pensa dos mandatos dele. Poderia ter feito melhor?
Eu tenho um certo viés, sou suspeito porque eu fui ministro do António Guterres, antes, trabalhei com ele nos Estados Gerais e no PS e admiro-o muito pelas suas qualidades humanas, políticas e intelectuais. Digo sempre que os os despachos mais difíceis que eu tive ao longo de 15 anos no governo foram os que eu tinha com o António Guterres quando era ministro da Cultura, tal era a vastidão dos conhecimentos dele sobre a cultura portuguesa e o território português que eu às vezes me via um pouco atrapalhado para responder a tantas solicitações que ele era capaz de fazer espontaneamente. Feito este disclaimer, como agora se diz, eu acho que o mandato do António Guterres, quer o primeiro, quer este segundo, são mandatos excelentes. Porquê? Primeiro, por causa das circunstâncias. De facto, a eleição de António Guterres fazia-se num contexto em que nada fazia prever que não fossem os democratas a ganhar as eleições nos EUA e, portanto, nós sabíamos que ele iria ter uma belíssima relação com Hillary Clinton. Mas a Hillary Clinton não ganhou. E a primeira grande prova de fogo do António Guterres em que ele teve que empenhar todas as suas enormes qualidades políticas e diplomáticas. foi justamente a sua colaboração, a coexistência com o presidente Donald Trump. Depois, como disse, apanhou a pandemia. Apanhou sobretudo uma paralisação do Conselho de Segurança, que é horrível. O Conselho de Segurança das Nações Unidas está, na prática, paralisado há vários anos por efeito dos vetos cruzados. E o Conselho de Segurança é o órgão principal no que diz respeito à dimensão da paz e segurança, que, por sua vez, é a missão principal da ONU do ponto de vista mais público.
As Nações Unidas aguentam isso muito tempo? Sobrevivem a isso durante muito tempo?
Nós achamos que não. E por isso é que achamos que as Nações Unidas devem deixar de ser dirigidas por um órgão que cristalizou em 1946, porque o Conselho de Segurança são os quatro vencedores da Segunda Guerra Mundial, mais a China. E hoje em dia a ao mundo é mais do que isso, e portanto, é preciso um país africano. um país latino-americano, um país da Ásia do Sul, pelo menos como membros permanentes do Conselho de Segurança. E, ao mesmo tempo, os membros permanentes do Conselho devem deixar de ter este poder absoluto de vetar, em qualquer circunstância e em função dos seus próprios interesses estritamente nacionais ou de um bloco. Agora, o que eu digo é que o António Guterres, na minha opinião, vai ser recordado por duas grandes marcas essenciais que deixará: primeiro, a clareza com que definiu a sobrevivência da humanidade, o fim de, como ele diz, da guerra da humanidade com a natureza como o seu objetivo principal. Ele é o - não digo o profeta, porque, embora às vezes parece clamar no deserto, mas é o advogado, é aquele que não está sempre e, se me permite a expressão, é o chato que está sempre a dizer-nos: Atenção, se nós não resolvemos o problema climático, nós corremos o risco de desaparecer.
E faz declarações cada vez mais graves de cada vez que se pronuncia sobre isso...
como referência essencial os valores das Nações Unidas. Aquela coisa que nós gostamos muito de invocar, mas muitas vezes nos esquecemos de aplicar. E, portanto, a maneira clara e assertiva, sem nenhuma espécie de ambiguidade e também sem nenhuma espécie de temor com que ele tem apelado ao cessar fogo no no atual conflito israelo-palestiniano. Tem dito: 'atenção, nós temos de compreender bem as motivações dos dois lados, nós temos que perceber que a solução para o conflito passa pela primeiro pela existência e a segurança de Israel e passa pela dignidade dos palestinianos; que a ocupação é também um dos motivos que leva ao extremar de posições em parte dos palestinianos, que não podemos confundir um povo, o palestiniano, com uma organização, o Hamas, etc. e que lhe tem valido tantas críticas, mas também tantos elogios e uma forma que define claramente o que é que o Secretário-Geral das Nações Unidas faz enquanto Secretário-Geral das Nações Unidas. E eu acho que ele faz o que deve fazer.
Mas havia um - e menciona também isso no livro - consenso político, nomeadamente entre os dois grandes partidos portugueses, sobre a eleição do engenheiro António Guterres. Ate elogiou, creio, quer a posição do do Presidente Cavaco Silva, quer de Pedro Passos Coelho. Mas de repente, após o recente discurso do Secretário-Geral da ONU, depois dos acontecimentos de 7 de Outubro, parece que houve quase que uma divisão em que quem é próximo do Partido Socialista ou dos partidos mais à esquerda compreendeu o discurso de António Guterres e quem está mais à direita, ou, se quisermos, do PSD para a direita, foi muito crítico na utilização, por parte de Guterres, daquela expressão de que o ataque não nasceu num vazio.
O que é natural. A única coisa que é perturbadora, vê-se em Portugal e vê-se em muitos outros países europeus, é ver o centro direita um pouco dividido e parte do centro direita a ir atrás dos argumentos da direita extrema.
É muito interessante para análise, mas fica para os leitores do livro aquilo que nos explica dos índices, dos rankings, nomeadamente tendo em conta instrumentos como o V-Dem ou o da Economist. Mas aquilo que lhe quero perguntar é sobre aquilo que admite serem as falhas quanto ao funcionamento da transparência da administração e ao nível da efetividade de participação social e cívica no país. É responsabilidade de quem? Do Governo de que fez parte? Do antecessor? Do sucessor? Um Presidente da República pode e deve fazer mais sobre essas questões?
Reparou certamente que o plano em que o livro se situa não é o plano desse dia-a-dia, do debate político. Eu acho que é uma responsabilidade de nós todos, é uma responsabilidade da sociedade portuguesa. Porque quando nós olhamos para essas caracterizações ou avaliações, designadamente da qualidade da nossa democracia, reparamos que somos avaliados com os melhores desempenho em competitividade das eleições, transparência eleitoral, liberdade de ação e onde nós somos pior avaliados é na participação eleitoral por causa dos nossos níveis de abstenção e também em alguma opacidade ou alguma menor proximidade da administração aos cidadãos. E isso implica ações do lado da administração, mas também do lado dos cidadãos.
O que é que o MNE e a política externa pôde ou não pôde fazer de 2015 a 2022 para melhorar essas áreas?
Bom, essas áreas são sobretudo internas. O que a política externa pode fazer e a diplomacia tem feito é justamente puxar pelos elementos que nos caracterizam positivamente, porque a diplomacia é também uma política. A ação externa é também uma espécie de ação muito concorrencial por impor a imagem de um e de outro. E essa luta pela imagem o mais positiva possível de um país, é uma obrigação, desde logo, de qualquer diplomata e também daquele ou daquela que os dirige em cada momento.
Professor Augusto Santos Silva, muito obrigado.
Obrigado.