Autarca de Belém, Cisjordânia: "Não me posso comparar com as pessoas em Gaza, porque elas não têm nada"
Vice-presidente da Câmara de Belém, a cidade onde nasceu Jesus; cristã palestiniana, Lucy Talgieh é uma das 23 "mulheres construtoras da paz, iniciativa organizada pelo Centro Internacional de Diálogo – KAICIID, que aconteceu esta semana em Lisboa
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Além de ser a número dois no município de Belém, na Cisjordânia, Lucy Talgieh promove a liderança das mulheres na resolução de conflitos em toda a Cisjordânia como chefe de desenvolvimento das mulheres no Wi'am: o Centro Palestiniano de Transformação de Conflitos; é mestre em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Birzeit. Veio participar na iniciativa «Promovendo a Paz Inclusiva: Liderança Feminina na Construção da Paz e no Diálogo», organizada pelo Centro Internacional de Diálogo – KAICIID, em parceria com o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal e a Rede Internacional de Ação da Sociedade Civil (ICAN), que marca o 25.º aniversário da Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre Mulheres, Paz e Segurança. Entrevista na TSF.
Sobre a frota humanitária onde seguiam quatro portugueses, que se dirigia para Gaza e que foi interceptada, como viu esta ação das Forças Armadas israelitas?
Bem, em primeiro lugar, obrigado por me receberem, especialmente esta importante rádio portuguesa, e gostaria de começar, antes de falar da frota, por agradecer ao Governo português pelo reconhecimento da Palestina. E aqui também gostaria de pedir ao governo português, que concretize o seu reconhecimento com ações no terreno. Agora podemos falar sobre a flotilha...
Não pensa que as coisas estão relacionadas? Acha que essas ações no terreno de que fala, devem ser, por exemplo, o governo português declarar ou reconhecer que essas águas são águas palestinianas?
Bem, isso faz parte da soberania. Soberania, pressão sobre o governo israelita com as receitas para os palestinianos, ajuda humanitária, cumprimento de todo o direito internacional, responsabilização pelo genocídio israelita que teve lugar em Gaza nos últimos dois anos. E, na verdade, não é por Gaza, é pelo povo palestiniano desde a declaração do Estado de Israel em 1948.
Em relação à frota, como vê o que realmente aconteceu?
Às pessoas da flotilha digo: obrigado por estarem a apoiar a humanidade. Apesar de saberem que não seriam autorizados a entrar em Gaza. Mesmo assim, assumiram o risco e participaram na flotilha porque acreditam na humanidade. Sabem que à luz do direito internacional, todos os direitos dos palestinianos estão a ser violados. Para mim, sendo palestiniana, vivendo sob ocupação e enfrentando quotidianamente a opressão, suspeitava que Israel não iria autorizar que aquelas pessoas entrassem em Gaza. Mas para nós é altamente simbólica a coragem e os esforços que puseram nisso: navegando, enfrentando todas as situações perigosas, e no fim são rejeitados. Mas para nós, são heróis. Passaram à ação no terreno. Muitos países falam em apoiar a Palestina, mas é apenas cosmética. Pode ser apenas simbólico o que as pessoas da flotilha fizeram, mas moveram a atenção do mundo para esta iniciativa.
A Lucy nasceu e cresceu em Belém, foi criada em Belém. Mora lá. Eu estive lá apenas em 2001, no início da segunda Intifada. Como é a vida lá hoje em dia? As coisas melhoraram ou pioraram? Sei que é uma cidade conhecida por ter laços comuns entre pessoas que tentam viver juntas, cristãos, árabes e judeus...
Bem, a nossa vida.... não é uma vida. Vivemos dia a dia. E não vivemos como seres humanos. Que tipo de vida levamos? Estamos rodeados por colonatos. Estamos rodeados por postos de controlo e portões. Vivemos numa grande prisão desde 2002. Mas agora vivemos numa prisão muito, muito pequena, com os portões que estão a colocar em torno de Belém. Então, se eles fecharem os portões, nenhum de nós poderá entrar em Belém, que é realmente um pedaço muito, muito pequeno de terra sobre o qual temos soberania. Então, isso é apenas uma amostra da nossa vida lá. Outra amostra: de manhã, quando acordo, quero ir trabalhar. Vou à casa de banho, abro a torneira. Infelizmente, não temos água. E quem controla a água? Israel controla a água. Quantos litros de água recebemos? É muito pouco.
Está a dizer que Israel usa o fornecimento de água como uma ferramenta política?
Tudo pertence à política ali. Aumentar o combustível, colocar postos de controlo, eletricidade, exportar e importar mercadorias. Tudo tem sido controlado pelos israelitas. Nós, palestinianos, devemos controlar, de acordo com o Acordo de Oslo, 22% da terra. Sabe, desde Oslo até agora, depois de recebermos 8% da terra, eles confiscaram mais terras. Então, agora temos menos 4%. Recentemente, eles confiscaram 27 quilómetros quadrados do município de Belém.
E como é o seu trabalho com a sociedade civil, em Belém?
Na verdade, eu faço dois trabalhos. Transporto dois chapéus. Tenho duas funções. Uma delas é onde trabalho, no Centro Palestiniano para a Transformação de Conflitos. Sou responsável pelo departamento das mulheres, basicamente o que fazemos é tentar preencher as lacunas da nossa comunidade. De que forma? Trabalhamos pelos direitos das mulheres porque sentimos que os nossos direitos não existem. Isso acontece não apenas por causa da política. Acontece também porque vivemos numa sociedade patriarcal que pensa que a participação das mulheres já é muito grande. Por isso, sensibilizamos para os direitos das mulheres de várias maneiras, trazendo-os para o debate. Estamos a tentar dar voz aos que não têm voz e a elevá-la. Eu sou uma dessas pessoas que tem trabalhado e sensibilizado para a participação política das mulheres porque a participação política das mulheres lá é muito, muito baixa. Então, disse a mim mesma que esta era a minha oportunidade. Em vez de continuar a pregar entre essas mulheres, tinha de passar por um processo eleitoral. Por isso, candidatei-me às eleições de 2017 para a Câmara Municipal de Belém. E ganhei. E também me recandidatei às eleições em 2002, porque senti que não tinha terminado as minhas missões com as quais sonhava para trabalhar. E agora, no município, sou vice-presidente da Câmara Municipal de Belém. Nessa parte, a segunda parte, estamos a trabalhar no bem-estar. Estamos a adotar o direito internacional e a tentar implementá-lo no terreno, como a resolução 1325 que fala sobre a proteção e a participação das mulheres, o que está realmente muito, muito ligado ao trabalho que a ICAN e a Aliança das Mulheres pela Paz estão a fazer, e elas apoiaram todo o nosso trabalho. Além disso, trabalhamos no desenvolvimento económico das mulheres, dotando-as de competências e aumentando também a sua economia, o que reduziu a violência doméstica. Isto são apenas umas luzes do que estamos a fazer. Trabalhamos em mediações, por exemplo. Queremos também trazer mais mulheres para a mesa de negociações através de diferentes técnicas de performance e de competências que estamos a utilizar.
As pessoas emigram muito. E não são só os cristãos, também os muçulmanos, porque vivendo sob ocupação, nem todos os povos acreditam que podem continuar assim. Há muitas doenças que enfrentamos, especialmente pressão alta, ataques cardíacos entre os jovens, porque não há vida. A única presença judaica é perto do nosso escritório. É diretamente, o meu escritório é aqui, o apartheid, tudo está aqui, e a torre de Israel está aqui, assim a poucos metros.Portanto, não há interação entre palestinianos e israelitas dentro da cidade. É apenas...
Nos arredores?
Sim, sim.
Como vê o plano anunciado esta semana pelo presidente Trump?
Isto é uma repetição do que aconteceu em Oslo, puseram o Quarteto de países sob a liderança de Tony Blair e agora é o mesmo. Pessoalmente, creio que é um sacrifício para os palestinianos, aceitem-no ou não. Das duas formas, estamos a perder. Mas pelo menos se aceitarmos, acabamos com este genocídio e as pessoas podem ter alguma comida e medicamentos.
Mas pensa que o Hamas vai aceitar?
Penso que o Hamas vai aceitar, desta vez vai aceitar. Porque ninguém consegue exprimir a situação em Gaza. E apesar de todas as privações que temos no resto dos territórios ocupados, não nos podemos comparar. Não me posso comparar com as pessoas que vivem em Gaza. Porque eles não têm nada. Não há água, não há luz, não há leite, não há medicamentos. As pessoas estão a morrer à fome nas ruas, e isso acontece porque Israel não permite que os bens e a comida entrem Gaza. Isso é contra a lei internacional, mas não há segurança para a comida, para os medicamentos, para nada. Nada!