Sem alinhar em discursos apocalípticos, Vera Silva defende um debate “inteligente” e bem informado e critica algumas reações “precipitadas” sobre o apagão ibérico
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A engenheira portuguesa Vera Silva, diretora de estratégia tecnológica da General Electric, considera que o apagão que atingiu a Península Ibérica é um alerta para as fragilidades do sistema elétrico europeu. Para a antiga investigadora do Instituto Superior de Engenharia do Porto, o incidente levanta várias questões, nomeadamente sobre a flexibilidade da rede, para acomodar uma elevada penetração de renováveis.
“Será que nós temos tido a capacidade de fazer este tipo de estudos e compreender a evolução do sistema e o que muda?”, questiona Vera Silva. “Enquanto académica, a minha primeira questão foi: como é que nós poderíamos ter antecipado melhor o que parece ser uma fragilidade a que o sistema estava exposto no momento em que uma sequência de eventos, que são normais no sistema elétrico, aconteceu”, afirma.
Em entrevista ao programa da TSF Fontes Europeias, Vera Silva destaca que, apesar de fenómenos como este estarem previstos, o sistema não está “desenhado” para as condições específicas do dia do apagão. “É um fenómeno que é previsto numa rede elétrica. No entanto, dadas as condições no dia específico, eu julgo que se poderia ter preparado melhor o sistema para operar nas condições com energias renováveis que estavam presentes (...). Portanto, eu julgo que poderá ser evitável no futuro”, refere.
No entanto, admite que “nenhum sistema é dimensionado para uma perda do tamanho” da que atingiu a Península Ibérica, “que levou rapidamente à queda de 15% da capacidade total”, e na sequência disso, ao apagão total.
“Os sistemas de resposta de emergência, ou não funcionaram, ou funcionaram tarde demais. Ou seja, no fundo, nós começamos uma cascata, [como a] queda de dominós, e nada a conseguiu parar”, enfatiza. Num tom analítico, Vera Silva afirma que o sistema europeu está a mudar mais rapidamente do que a infraestrutura foi pensada para suportar e considera essencial que os estudos técnicos acompanhem essa transformação.
Interligações
A especialista da General Electrics frisa que “a situação não teria sido diferente” caso um número de interligações da Península Ibérica à rede europeia fosse maior, porque, nesse caso, “a Península Ibérica estaria apenas a exportar ainda mais energia”.
Por outro lado, salienta que as interligações são hoje essenciais para a segurança energética europeia e para a valorização do potencial renovável da Península. E “foi, em parte, graças a estas interligações que o País Basco recuperou a energia em 15 minutos: a minha equipa em Bilbau praticamente não sentiu o apagão”, adianta, referindo ainda os novos projetos que estão em curso, nomeadamente no Golfo da Biscaia.
Metas climáticas
Ao longo da entrevista, Vera Silva destaca a mudança de prioridades que tem marcado o debate energético europeu: “A ordem de prioridades é competitividade e custo para o cidadão, segurança energética e depois transição energética para baixo carbono.”
Apontando para as conclusões do relatório Draghi, destaca que, mesmo que a Europa seguisse uma trajetória de neutralidade carbónica total até 2050, o impacto global nas emissões seria limitado, uma vez que “teríamos apenas um impacto em cerca de 6% das emissões de óxido de carbono mundiais”. Por essa razão, defende que a estratégia deve ser ajustada com foco na competitividade e na eficiência.
Cibersegurança
Sobre a segurança das infraestruturas energéticas, a especialista reconhece avanços, mas sublinha a complexidade crescente dos riscos. “Nunca há um sistema ou uma solução que vai ficar rígida, porque os ataques estão sempre a tornar-se mais sofisticados.”
Vera Silva destaca a importância de preparar os sistemas elétricos não apenas para resistirem, mas para se reerguerem rapidamente. “Nós sabemos que na Flórida vai sempre haver um furacão que vai causar danos na rede elétrica. O que nós fazemos são imensas soluções para os gestores da rede [...] para conseguirem recomeçar e re-energizar a rede muito mais rápido”, afirmou.
Autonomia
Em matéria de autonomia energética europeia, Vera Silva mostra-se prudente, referindo que “nenhum continente, nenhum país é uma ilha”, afirmou. “A energia é mais vasta do que a eletricidade”, salienta, alertando para as dependências em áreas críticas como chips, eletrónica de potência ou metais essenciais. Sublinha ainda a necessidade de diversificação e reindustrialização.
Quanto à energia nuclear, considera-a uma opção viável para alguns Estados-membros, mas difícil de justificar na Península Ibérica, nomeadamente em Portugal, onde há abundância de fontes alternativas.
Futuro
Sem alinhar em discursos apocalípticos, Vera Silva defende um debate “inteligente” e bem informado e não hesita em criticar algumas reações imediatas ao apagão, que classifica como precipitadas: “Foi efetivamente colocar imediatamente a questão da segurança energética ou da dependência de Espanha, o que não era o caso.”
No atual contexto, defende que “Portugal deve fazer valer o seu mix de energia de baixo carbono, que é valorizado ainda por várias empresas, nomeadamente, por exemplo, para desenvolver centros de dados e que nós chamamos as fábricas de inteligência artificial”.
Vera Silva considera que a previsibilidade do investimento na rede elétrica e a modernização da infraestrutura energética deveriam estar no topo da lista de prioridades políticas da próxima legislatura, uma vez que se “estamos a trazer novos consumos para a rede elétrica, temos de modernizar a rede”.
Esta engenheira portuguesa, que lidera uma equipa de 5000 engenheiros na General Electrics, a empresa fundada em 1892 por Thomas Edison - o norte-americano que aperfeiçoou a lâmpada e a tornou viável para a utilização doméstica -, afirma-se “extremamente otimista” quanto ao futuro, “principalmente depois da cimeira em Londres, em que os diferentes chefes de Estado partilharam uma visão que continua a ter os valores da Europa no coração dos nossos objetivos climáticos”.