Nos dois discursos no dia da posse, Jair Bolsonaro defendeu algumas das bandeiras de campanha, em palavras mais dirigidas para a sua base de apoio do que para todos os brasileiros.
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Foram dois discursos muito ideológicos a reclamar... contra as ideologias, como se a ideologia política não fizesse parte do jogo democrático. No parlatório, junto ao Palácio do Planalto, o novo chefe de Estado disse que o Brasil se libertava do socialismo, como se o Brasil fosse um país socialista, como se não tivesse havido dois anos e meio de governo Temer, para além de o PT não ter protagonizado propriamente uma governação socialista em muitos aspetos antes disso. Enfim, foi um Bolsonaro que parecia estar a falar na América do Macartismo anticomunista durante a Guerra Fria, e não um estadista de uma democracia do século 21.
Foi um discurso de chefe de claque, mais para quem o elegeu do que para todos os brasileiros, como se pode perceber na frase final já depois do discurso, ao dizer que a bandeira do Brasil é verde e amarela e que "jamais será vermelha" nem que tenha que ser defendida com sangue. Ao contrário do que tinha prometido Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil, foi um discurso nada "pacificador e conciliatório", o que não deixa de ser estranho para quem invoca constantemente Deus e a Deus agradece o facto de estar vivo, além de repetir várias vezes a frase que foi slogan de campanha: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".
Sem maioria parlamentar e com necessidade de juntar apoios para poder avançar com as suas "reformas estruturantes", esperava-se que Jair Messias Bolsonaro estendesse a mão aos congressistas e falasse na necessidade de articular posições e construir alianças. Nada. Convocou, foi o verbo usado - quando não é função presidencial convocar as câmaras do Congresso - os congressistas para o ajudarem a "restaurar e reerguer a pátria", libertando-a do jugo da corrupção e da "submissão ideológica".
Prometeu escolas livres da "ideologia de género", o que antecipa um retrocesso civilizacional no ensino da educação sexual, igualdade de género e liberdade de orientação sexual, preparando "os filhos para o mercado de trabalho e não para a militância política" numa alusão ao que considera ter sido o ensino durante os governos PT, ainda para mais tendo sido Fernando Haddad (seu adversário a 28 de Outubro) um ex-ministro da Educação.
Prometeu um governo que não vai gastar mais do que arrecada, prometeu um mercado livre e concorrência, vangloriou-se por ter formado um governo sem "conchavos ou acordos políticos" e prometeu "restabelecer a ordem" no país, como se o Brasil vivesse no caos, apesar da questão da violência urbana que, como se sabe, provocou 60 mil mortes violentas no último ano. Sendo um lugar comum, obviamente que faz sentido o Presidente eleito prometer fazer do Brasil "um lugar próspero e seguro para todos os brasileiros".
Prometeu retirar "o viés ideológico das relações internacionais" e deixou claro quais vão ser as relações privilegiadas do Brasil, para além da aproximação aos EUA de Donald Trump que se fez representar na posse pelo Secretário de Estado Mike Pompeo. Se dúvidas ainda houvesse do nacionalismo populista de Bolsonaro, a cerimónia que se seguiu ao discurso, a receção aos convidados estrangeiros no palácio do Itamaraty (sede do MNE do Brasil), foi de uma evidência democraticamente preocupante.
Bolsonaro recebeu com cumprimentos vários chefes de Estado, incluindo o português Marcelo Rebelo de Sousa, toda a gente despachada com um seco aperto de mão, (o Presidente português lá beijou a mão de Michelle Bolsonaro), mas já perdeu tempo para tirar fotografias e foi bem mais efusivo quando chegou a vez do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, dois líderes políticos claramente de uma direita nacionalista e conservadora.
A multidão na Esplanada dos Ministérios em Brasília passou o dia a gritar "mito" e "o capitão voltou", como se estivesse num estádio de futebol. O problema é que o capitão agora é comandante supremo e, na primeira vez, que se dirigiu ao país na qualidade de Presidente da República não esteve à altura do cargo. Como ponto positivo, apesar de ter sido uma quebra de protocolo, a declaração inclusiva da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que "falou" em linguagem gestual, enquanto uma tradutora lia as suas palavras. Inclusiva como o marido não soube ser.