Para os nove migrantes resgatados, Roldán é um herói. Para a justiça italiana, o bombeiro é um potencial cúmplice de tráfico humano. Para Roldán, é a burocracia a maior culpada por se ter perdido metade das vidas.
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Tudo começou em alto-mar. Em junho de 2017, as águas eram ainda mais turbulentas para os imigrantes que avistavam, ao longe, a costa do Mediterrâneo. Miguel Roldán, 32 anos, tinha dispensado 20 dias das férias de verão para se aventurar, a bordo do barco convertido pela organização não-governamental (ONG) alemã Judend Rettet, o Iuventa, no resgate de pessoas.
Roldán, com experiência prévia em salvamentos no mar Egeu, junto à ilha de Lesbos, encontrou no Mediterrâneo desafios novos. A equipa que integrou já estava longe de La Valeta, Malta, de onde partiu, e navegava as águas internacionais a 27 quilómetros da Líbia. Em três semanas, o grupo resgatou 5.000 pessoas. Depois, de volta a Sevilha, as missões sucederam-se no Mediterrâneo central, onde se somaram, segundo o El País, 9000 pessoas resgatadas. Mas as métricas das missões de sucesso não chegam para contar a história.
Foi em junho de 2017 que uma chamada de alerta interrompeu a calma da noite. Passava das 22h00 e a luz não chegava para denunciar os destroços do naufrágio de um barco a 200 metros do Iuventa. Miguel Roldán e outros dois colegas partiram, com os motores do barco desligados, guiados apenas pelos pedidos de auxílio gritados a indicar o caminho.
O relógio contou 10 minutos até os navegantes das duas embarcações se encontrarem, mas o centro de controlo de busca e resgate, em Roma, não permitiu o salvamento. O sufoco passou apenas 15 minutos depois, com a permissão da Líbia para finalizar a missão. Todavia, o tempo em alto-mar, em condições de escuridão total, é vivido com ansiedade. " [Depois do tempo de espera], já só poderíamos resgatar apenas metade da tripulação. Muitas pessoas se afogaram", recorda o bombeiro mergulhador da Câmara Municipal de Sevilha.
O ato de solidariedade pode valer uma sentença de até 20 anos por alegada cooperação com crimes de tráfico humano. Para além de Roldán, também nove membros da tripulação do navio naufragado foram acusados: sete alemães, uma menina escocesa e um menino escocês. A justiça italiana chamou-lhes luventa10, por alegadamente terem infringido as regras. "É inacreditável. Respeitamos as regras de tal forma que vimos pessoas morrerem por causa da burocracia. A acusação é um jarro de água fria", salientou o bombeiro.
Também para Sascha Girke, um dos fundadores da Jugend Rettet e chefe das operações em que Roldán participou, a situação é injusta, já que, explica, o objetivo era pôr a salvo os migrantes que se encontravam a 250 e 300 quilómetros de Lampedusa e Malta. Segundo o chefe da missão, as pessoas foram, mais tarde, colocadas ao abrigo dos Médicos Sem Fronteiras e da Save the Children. Sascha Girke insistiu ainda que houve sempre "cooperação direta e completa com as autoridades italianas".
Miguel Roldán, que o alemão descreve como "uma pessoa de bom coração, comprometida, séria e experiente", não é o único em perigo depois dos perigos enfrentados no mar. Outros três bombeiros de Sevilha, da ONG Proem-aid, também enfrentaram acusações. No caso dos membros da Proem-aid, no entanto, foi a justiça grega a responsável pelo indiciamento. O presidente da ONG, Onio Reina, sublinhou, que os três bombeiros, já absolvidos, foram acusados por um "país que tem uma política de assédio e demolição das organizações não-governamentais, especialmente desde que Matteo Salvini chegou ao poder como ministro do interior".
A investigação começou a 2 de agosto, quando o navio em que Roldán embarcou, foi imobilizado. O bombeiro de Málaga diz-se, no entanto, confiante, porque "apenas um minuto na prisão por salvar vidas seria demais". E já 3.116 vidas se perderam na travessia do Mediterrâneo, 2.832 das quais na rota em que Miguel Roldán navegava, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações.