Christiane Torloni e Miguel Przewodowski são os autores do documentário "Amazónia, o Despertar da Florestania", que esta terça-feira é apresentado em Seia, no CineEco. Os diretores artísticos estiveram à conversa com a TSF e explicaram porque esta obra tem o mundo por destinatário.
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Foram quase cinco anos, uma pequena vida que brotou de várias outras. Durante o licenciamento dos arquivos, em 2016, quando Dilma Rousseff sofreu impeachment, várias instituições brasileiras passaram momentos conturbados e tornaram-se inoperantes, inclusivamente bancos de dados que continham informação de que a atriz brasileira Christiane Torloni e o diretor Miguel Przewodowski necessitavam.
Para obter licenças, passou-se quase um ano, mas, durante o processo, os dois diretores de "Amazónia, o Despertar da Florestania" compreenderam que o curso da história não parava, continuava a fluir.
"Quando foi que nós nos esquecemos de que o Brasil tem o nome de uma árvore? Que o que corre nas nossas veias não é sangue, é seiva?" O documentário que os amigos de três décadas ofereceram ao mundo é um louvor aos heróis da floresta, uma história de amor em que as pedras são a base da construção e não o obstáculo. Por isso, os protagonistas não são os antagonistas que as notícias salientam, mas as lutas anónimas de quem dedica a própria existência à defesa do valor da vida.
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O que corre nas veias de Christiane Torloni e Miguel Przewodowski é seiva. O diretor brasileiro está em Seia, porque a obra que nasceu num momento de agitação política mas que não veio ao mundo para apontar dedos integra a Competição Longas Língua Portuguesa do CineEco, cujos vencedores serão conhecidos a 19 de outubro.
O Festival CineEco inclui, nesta sua edição comemorativa dos 25 anos, uma seleção oficial de 80 filmes, de 20 países, em que a urgência ambiental e climática serviu de inspiração à arte. E foi sobre arte, política e ativismo e o momento que o Brasil atravessa que Christiane Torloni e Miguel Przewodowski falaram à TSF.
Quando e de que forma lhe surgiu este alerta em relação ao estado da Amazónia? E como nasceu a ideia para este documentário?
(C.T.) A minha história na Amazónia começa há trinta anos, ainda na época da abertura política, em 1982, através da arte, através de visitas à floresta e da reinauguração do Teatro Amazonas.
Uma vez tocado pela Amazónia, uma vez despertado para a florestania. Aquando da gravação da minissérie "Amazónia, de Galvez à Chico Mendes" (2006), durante os workshops de preparação do trabalho, tive a oportunidade de conhecer criaturas memoráveis da floresta.
Tornei-me guardiã de um milhão de assinaturas, e o documentário é uma resposta a esta grande responsabilidade a mim outorgada.
Já durante as gravações no Acre, fomos confrontados com a estação da seca e das queimadas, e, aí sim, tivemos um encontro definitivo, indelével, com o massacre da nossa floresta. A partir daí, surgiu o manifesto "Amazónia para Sempre" (2007/2008), através do qual colhemos mais de um milhão de assinaturas contra a devastação da floresta amazónica.
A partir desse momento, tornei-me guardiã de um milhão de assinaturas, e o documentário é uma resposta a esta grande responsabilidade a mim outorgada.
A construção do documentário é longa e anterior à sua própria produção. Já durante as viagens para a recolha das assinaturas do "Amazónia para Sempre" fui registando encontros e imagens.
Ao mostrá-los, em 2012, ao meu querido amigo e diretor Miguel Przewodowski, fui surpreendida com a pergunta: 'Você está fazendo um filme?' A partir desse momento, o projeto ganhou forma. Talvez o maior desafio tenha sido obter imagens de arquivo de mais de cem anos. Sempre tive um grande apreço pelos documentaristas. Hoje tenho um imenso respeito e gratidão. São os heróis do nosso passado.
(M.P.) O gatilho para esta ideia deu-se, de facto, quando a Christiane, em 2014, chegou a minha casa com algumas imagens que ela havia recolhido durante a campanha do abaixo-assinado "Amazónia para Sempre", que foi encabeçado por ela, pelo Juca de Oliveira e Victor Fasano.
Não é possível continuar a achar que que as coisas acontecem isoladamente e que não há elos nos eventos que acontecem em todo o mundo.
Isto foi feito numa época muito menos digital, e a Christiane conseguiu angariar um milhão e 200 mil assinaturas. O abaixo-assinado foi entregue ao Presidente Inácio Lula da Silva, mas, para o conseguir, a Christiane teve de fazer várias viagens pelo país e foi gravando algumas imagens. Essas imagens, que ela me mostrou, eram muito contundentes. Mostravam como funcionava a liderança indígena. Eu achei bastante interessante, e disse-lhe: 'Você começou a fazer um filme.' Ela respondeu: 'Comecei? Que filme é esse? Você quer fazer comigo?'
É um filme com muito material de arquivo, por isso tivemos de procurar e recuperar muita informação.
Este é um documentário sobre a Amazónia, mas não é apenas sobre a floresta, mesmo sendo esta tão vital, pois não? Qual a dimensão deste problema? É uma causa de todos?
(M.P.) Quando olhamos para as causas da desflorestação, temos de falar da exportação de produtos que são consumidos por todo o mundo, como a madeira ilegal, o ouro, que é altamente poluente e que tem afetado os rios junto a aldeias indígenas...
O filme acaba por tratar também da questão política do consumidor. O que é que o consumidor opta por comprar? Não é possível continuar a achar que que as coisas acontecem isoladamente e que não há elos nos eventos que acontecem em todo o mundo. É importante convocar toda a gente para compreender esta importância dos elos.
Nesse sentido, é um filme bastante político. Mas não apenas sobre este momento. Trata-se de criar um olhar consciente em relação a tudo isto.
(C.T.) Quem responde muito bem a esta pergunta é o papa Francisco. Na imprescindível encíclica "Laudato Si", o papa convoca-nos a uma "conversão ecológica" pela defesa de nossa casa comum: o planeta Terra. Neste documento, o papa cita a Amazónia três vezes, evidenciando a urgência de todos nós nos dedicarmos a esta causa.
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Toda a manifestação artística é política. Não há como divorciar a arte da cidadania.
Existe, de facto, uma responsabilidade do lado dos artistas ou é a mesma que qualquer cidadão neste mundo conturbado tem? A Christiane afirmou que não pretendia que este filme se tornasse político... Mas é possível não o ser?
(C.T.) Sou aquilo a que se chama "filha da arte". Sou filha de Geraldo Mateus e Monah Delaci, atores da primeira turma da primeira escola de arte dramática no Brasil, fundada nos anos 40.
Com eles, aprendi que toda a manifestação artística é política. Não dá para divorciar a arte da cidadania. E, por consequência, também da florestania. A causa da preservação da floresta amazónica exige de todos nós um desapego essencial de partidos ou interesses particulares. A causa amazónica é uma questão de soberania. Principalmente do planeta Terra.
(M.P.) Eu acompanho o caminho ambientalista da Christiane há mais de uma década, e a minha primeira formação foi biologia marinha, por isso esse interesse nunca se afastou da minha vida. No entanto, a Christiane tem uma atividade mais clara, é uma ativista realmente.
Este não é um filme de denúncia, é um filme de amor. É um filme de amor pela floresta.
É impossível pensar a arte dissociada das questões políticas. Mesmo que fizéssemos uma arte alienada, esta quereria dizer algo do ponto de vista político. Qualquer perspetiva, qualquer olhar, qualquer escolha temática é uma questão política. E a questão ambiental é a mais premente, a que mais facilmente vemos no horizonte deste século.
A arte da Christiane sempre esteve ligada a atividades políticas, e eu, enquanto realizador, também tenho vindo a trabalhar temáticas que sempre tocaram lugares de reflexão do ser humano.
Eu e a Christiane combinámos desde o início, depois de assistir a diversos documentários sobre a Amazónia com a tónica na denúncia, que não faríamos um filme com esse tom. Este não é um filme de denúncia, é um filme de amor. É um filme de amor pela floresta e por este património, e conta os percursos de pessoas que deram as suas vidas pelo meio ambiente.
No final do filme, é habitual as pessoas emocionarem-se e sentirem-se impelidas a sair das suas casas, dos seus confortos vários na vida para abraçar a causa ambiental. Não queríamos que fosse uma convocatória ou um manifesto chato, mas um filme para envolver as pessoas neste universo afetivo que a floresta desperta. Fizemos um documentário de legado que transmite o que queremos deixar aos que vierem depois de nós.
Fernanda Montenegro é a resposta em si.
Como classificaria este momento que o Brasil atravessa? Qual é a esperança para o futuro?
(C.T.) Acredito que o momento atual é o resultado de anos de má gestão e de falta de patriotismo. Infelizmente grandes e profundas promessas feitas no movimento das "Diretas Já" foram traídas por alguns dos seus protagonistas, e o resultado é este que se vê.
Mas somos um país em construção, e creio que, unidos, principalmente pela causa comum da Amazónia, recuperaremos a nossa identidade e o nosso futuro. Afinal de contas, Brasil é o nome de uma árvore, e temos a obrigação de não nos esquecermos disso.
(M.P.) A luta ambiental já fez muitos mártires. No nosso filme, contamos a história de Chico Mendes, uma pessoa emblemática na luta ambiental e uma referência para todos os ambientalistas, mas esta é uma história que ainda se repete, e cada vez mais.
No nosso documentário, podem ver vários casos de pessoas ameaçadas.
O que pensa da capa da caça às bruxas na revista literária Quatro Cinco Um, protagonizada por Fernanda Montenegro? Há mais valores em risco, para além dos ambientais, depois da tomada de posse deste Governo?
(C.T.) Fernanda Montenegro é uma das grandes damas do teatro brasileiro. A sua biografia é a inequívoca resposta a qualquer provocação ou ataque de qualquer natureza. Fernanda Montenegro é a resposta em si.
Ao mostrá-los, em 2012, ao querido amigo e diretor Miguel Przewodowski, fui surpreendida com a pergunta: 'Você está fazendo um filme?'
Pode contar-me um pouco sobre este processo que lhe levou anos de construir este documentário? O que sentiu e o que foi mais revelador nesta incursão pela Amazónia?
(C.T.) Durante esta jornada, tive a oportunidade de conhecer a Fundação Amazonas Sustentável - FAS -, e o seu trabalho, com inauguração de seis mini-universidades na floresta, no estado do Amazonas, sendo esta uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento sustentável das suas comunidades, RDS - Reservas de Desenvolvimento Sustentável. É um projeto lindo, que merece ser visitado.
(M.P.) Passei a conhecer a Amazónia de uma forma muito mais profunda. Eu conhecia a Amazónia boliviana e pequenas extensões pelo Brasil. O impacto da floresta é ao mesmo tempo imediato e residual, porque começamos a carregar dentro de nós essa dimensão e a perceção de que o mundo é muito maior do que aquilo que sempre imaginámos, de que existe complexidade e de que tudo está muito conectado.
É difícil traduzir em palavras toda a floresta e não só a floresta, mas também a cultura inerente, como a cultura indígena, que está muito presente no Brasil, embora as pessoas, por vezes, não tenham essa consciência.
Tínhamos quatro a cinco milhões de índios. Hoje temos 20% dessa população. Nós temos uma mistura com muita potência muito saudável para o Brasil, embora tenha sido conseguida à custa de muito sangue, de muita luta. O índio brasileiro, exceto em situações pontuais e históricas, sempre foi muito recetivo a outras culturas. Mas os índios necessitam de sentir o seu ambiente preservado. Os índios são os grandes guardiães da floresta. Eles não olham para a floresta como nós: como um manancial de recursos dos quais podemos usufruir.
O que fica de fora deste documentário que ainda valha nota?
(C.T.) Talvez o mais difícil tenha sido transformar cinco horas num documentário de 111 minutos.
(M.P.) Nós nunca sabemos o que vai acontecer do outro lado, quanto à recetividade do público. Mas porque acreditamos, fazemos.