Cacique Dadá em Portugal: "A nossa mãe Terra grita por justiça"
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É nas terras indígenas de Maró, no município de Santarém, no oeste do Pará, em plena Amazónia brasileira, que o cacique Odair Borari, conhecido como chefe "Dadá", vive e trabalha em defesa da "grande biodiversidade" da maior floresta tropical do mundo. Borari está pela primeira vez em Portugal, esta quarta-feira, para participar no Digital with Purpose Global Summit, na Altice Arena, uma iniciativa que pretende debater a sustentabilidade dos ecossistemas do mundo. Em entrevista à TSF, antes de subir ao palco para falar na abertura do evento, cacique "Dadá" alerta para os problemas ambientais e climáticos da Amazónia: a desflorestação, a seca e as alterações climáticas, que podem colocar em causa as gerações futuras.
Maró é um território onde vivem "duas etnias" (além dos indígenas, também os quilombolas, que são descendentes de escravos africanos que fugiram das fazendas e formaram os quilombos) e é composto por três aldeias: Novo Lugar, Cachoeira do Maró e São José III. Nestas terras, a comunidade procura "defender a floresta" que está "comprometida", trabalhando em três vertentes: a educação, a prevenção e a monitorização. "Nós fazemos a monitorização da área e trabalhamos em defesa da grande biodiversidade que existe na Amazónia", afirma o cacique.
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A luta de Maró contra a desflorestação, "o grande empreendimento" e o "sistema capitalista"
Um dos maiores problemas que assola a Amazónia é a desflorestação, algo que a comunidade indígena quer "zerar". "Não pode existir desflorestação", alerta.
Desafiado a fazer um retrato entre o antes e o depois do governo de Bolsonaro, o cacique confessa que "nem gosta de relembrar" o que aconteceu há quatro anos. "Foi tanta negatividade, que, para nós, não deu fruto nenhum. Muito pelo contrário, só trouxe mais preocupação, mais perturbação, mais doenças. Agora deu para a gente dar uma respirada, mas não dá para ficarmos de braços cruzados e acharmos que as coisas estão resolvidas. Agora temos de estar mais unidos", reconhece.
A Humanidade deveria respeitar a Amazónia, não tirar nem mais uma árvore, mas sim tê-la como espelho, como o pulmão do mundo
A desflorestação na Amazónia tem vindo a diminuir: no início de setembro, a ministra brasileira do Ambiente, Marina Silva, adiantou que caiu 66,3% em comparação com o período homólogo de 2022. Estes dados deixam "Dadá" e a comunidade de Maró "muito felizes", mas ainda não chega.
Por isso, "parte dos territórios tem que fazer esse confronto contra o grande empreendimento", defende o chefe "Dadá". "Há um olhar do sistema capitalista para aquela região de achar que o desenvolvimento da Amazónia só deverá ser feito se houver desflorestação. E a gente diz que não é necessário fazer isso", atira.
"Este confronto surgiu há quatro anos [quando Bolsonaro estava no poder], mas agora há que dar continuidade àquilo que [ainda] não conseguimos alcançar", sublinha.
Considerando que é urgente agir contra a desflorestação nesta floresta tropical, algo que tem impacto não só para o Brasil, mas também para o mundo, o cacique afirma que "todos os governos que têm os seus bancos de valores deveriam financiar a Amazónia para fazer a reflorestação das árvores que foram tiradas da região".
Se você tirar todas as árvores primárias que estão ali e substituir essas árvores por soja, milho, arroz, não é o suficiente. Tem que se devolver as árvores, árvores medicinais, árvores frutíferas
"Enquanto não se reflorestar aquilo que se tirou, torna-se muito difícil. Se você tirar todas as árvores primárias que estão ali e substituir essas árvores por soja, milho, arroz, não é o suficiente. Tem de se devolver as árvores, árvores medicinais, árvores frutíferas", explica.
Para o cacique, a responsabilidade de cuidar da floresta "é de quem mora na Amazónia, mas também de todos os países que moram em volta da Amazónia, porque o resultado de toda a destruição que ocorre hoje e que vem ocorrendo ao longo dos tempos também está nos países que estão próximos", como é o caso do aquecimento global. Por isso, reconhece, "pedimos o apoio e a compreensão de todos os países para ajudar o Brasil".
Os perigos da seca e das alterações climáticas na Amazónia
Também a seca e as alterações climáticas são uma preocupação para a comunidade de Maró. Citando o papa Francisco, o cacique defende que "deveremos cuidar da nossa casa comum".
"As mudanças climáticas, para nós, significam a diminuição da subsistência das crianças do futuro, nós não queremos que essas crianças nasçam com problemas de saúde e isso é uma situação gravíssima, estamos muito preocupados com isso", lamenta.
O tempo está cada vez mais a mudar, a diferença de inverno para verão está a mudar. Porquê? Pela teimosia do Homem
Além de problemas para as gerações futuras, também as populações que residem atualmente na Amazónia sofrem com os impactos das alterações climáticas e da desflorestação, nomeadamente com a falta de água.
"A desflorestação contribui para que a seca continue cada vez mais, ou seja, aquela vegetação, a floresta que estava ali, deixa de existir, então ela não consegue segurar aquela água", assinala, frisando que "o tempo está cada vez mais a mudar, a diferença de inverno para verão está a mudar. Porquê? Pela teimosia do Homem".
Em 2019, o cacique "Dadá" foi convidado pelo Vaticano para participar no documentário "A Carta", onde denuncia os problemas climáticos na Amazónia. "Um grande privilégio", diz.
Antes de o Governo fazer um acordo, ele deverá pensar que existe um povo que precisa de viver com dignidade
"Com isso, a nossa luta na Amazónia passou a ser vista no mundo, ou seja, fora do nosso país. O mundo todo ficou a saber através do filme e isso contribuiu para que a gente pudesse dar um certo freio na questão da desflorestação da Amazónia", refere.
Por outro lado, veio a "perseguição". Uns querem conversas "pelo [lado] bom", mas outros querem retirar o cacique "de rota", uma vez que o líder da comunidade de Maró "fala que o desenvolvimento que está a ser feito na Amazónia é um problema para o país".
"Eles só olham para o [elemento] financeiro e não olham para a vida", acusa "Dadá".
A urgência de respeitar e proteger a Amazónia, "o pulmão do mundo"
"Nós temos [de] olhar para a vida e não para o financeiro. Cuidar da casa comum, que é uma casa de todos, é onde estão todos os seres vivos, seres humanos, seres invisíveis. A nossa mãe Terra não deixa de ser um ser e hoje ela grita por clamor de justiça, porque ela não aguenta mais, está a ficar pelada e isso não é legal", argumenta.
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Do ponto de vista do cacique, cuidar da Amazónia "inclui todas as formas de responsabilidade e compromisso". "A Humanidade deveria respeitar a Amazónia, não tirar nem mais uma árvore, mas sim tê-la como espelho, como o pulmão do mundo", considera.
O respeito pela Amazónia inclui também a proteção das comunidades indígenas, refere. "Se não existisse comunidades indígenas e quilombolas, que são duas etnias diferentes, a Amazónia já era quase 90% desflorestada", acredita.
Hoje, a tecnologia poderá ser uma das aliadas na proteção da vida na Amazónia. No entanto, essa tem sido "uma grande dificuldade", porque grande parte dos avanços tecnológicos chegam às empresas multinacionais, mas "quem protege e quem cuida da floresta não tem essa tecnologia na mão".
A nossa mãe Terra não deixa de ser um ser e hoje ela clama, ela grita por clamor de justiça, porque ela não aguenta mais, está a ficar pelada
"Hoje as coisas estão a mudar, a tecnologia começa a chegar à Amazónia, às aldeias e aos territórios. Eu acredito que a gente vai conseguir dar uma freada na grande desflorestação, porque vamos estar a mostrar em tempo real o que está a acontecer", afirma.
Mas a tecnologia não deverá atuar sozinha. Também a consciencialização nas escolas e nas universidades tem um papel importante no cumprimento dos objetivos da comunidade de Maró.
"Enquanto não fizermos isso e não tivermos essa ideia de consciencialização, por mais que a gente tenha a tecnologia, não vamos avançar. Temos de trabalhar essas duas coisas", refere, não esquecendo o papel do Governo brasileiro: "Antes de chegar qualquer empreendimento até mim, ele tem uma aceitação do Governo. Então antes de o Governo fazer um acordo, ele deverá pensar que existe um povo que precisa de viver com dignidade e não do jeito que estamos a viver."
