Dez anos após o ataque, o desenhador Wozniak recorda o impacto profundo na liberdade de expressão em França. Leia e ouça a entrevista completa.
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França assinalou esta terça-feira a passagem dos dez anos desde o atentado ao Charlie Hebdo, o jornal satírico, que a 7 de janeiro foi alvo de um ataque por dois militantes da Alqaeda.
A TSF conversou, em Paris, com o desenhador Wozniak, amigo de longa data do desenhador Jean Maurice Cabut, figura incontornável na cultura francesa, multifacetado na forma de se expressar através do desenho. “Cabu” marcou várias gerações. Morreu a 7 de janeiro de 2015, durante o ataque.
Wozniak, desenhador e amigo de Cabu assume que passados 10 anos ainda lhe custa acreditar nesta perda, num acontecimento que deixa cicatrizes profundas na liberdade de expressão em França. São detalhes que pode ler agora na entrevista com o desenhador.
Que reflexão faz sobre os acontecimentos que tiveram lugar aqui na antiga redação do Charlie Hebdo, há 10 anos.
Como toda a gente triste, tinha um amigo aqui que morreu, um companheiro e um amigo. Por isso, como poderei dizer, é algo pessoal, foi algo muito pessoal. Bem, então tudo mudou, mudou tudo, há um antes do Charlie Hebdo e um depois. Tudo mudou depois, no sentido negativo também. Os desenhadores começaram a desenhar de forma diferente, passámos a ter cuidado com tudo, e assim por diante.
Então, nota que houve consequências, mudanças em matéria de liberdade de expressão, nestes 10 anos.
Claro, claro, apesar de termos tido quatro milhões de pessoas a protestar, que estiveram na rua, hoje fala-se de liberdade de expressão. Li recentemente que, ainda assim, a frase "liberdade de expressão, sim! Mas...” ganhou destaque. Que é como quem diz: liberdade de expressão, sim, mas é preciso ter cuidado para não incomodar as pessoas.
Então, é como se nos dias de hoje houvesse uma liberdade de expressão declarada, mas em simultâneo um tipo e autocensura?
Sim, sim. A cem por cento, realmente, de repente percebeu-se o impacto de poder dizer o que quisermos aqui. No entanto, tudo começou a ser visto com cuidado, como quem diz "sim, mas". Sim, há liberdade de expressão, mas é preciso atenção, porque há as outras pessoas, há religiões, e assim por diante. Sem dúvida, isso venceu. Foi, na verdade, um processo gradual, pessoas a lutar pela liberdade de expressão e, depois, a autocensura instalou-se. Autocensura em todos os níveis.
Quando diz a todos os níveis, há uma autocensura, um cuidado para não dizer?
Desde a base. Desde os ilustradores, os jornalistas que se ajustam aos chefes de redação, aos teatros, isso aumentou. Há sempre um mas...
Então, não ficou restrita à liberdade de Expressão dos caricaturistas, mas também dos escritores, imprensa... os criadores.
Toda a gente, sim, toda a gente. Depois, é preciso demonstrar que isso é genial. Diz-se muitas coisas em França, - não sei como é em Portugal, mas em todo o caso mais do que noutros países, não há dúvida. No entanto, há sempre o "mas". "Mas não devemos incomodar sem razão. Porquê provocar? Porquê?"
Essa consequência também deve estar presente na forma como faz hoje o seu trabalho de desenhador, depois de ter perdido o seu amigo de longa data, Jean Maurice Cabut, no ataque, aqui nestas instalações onde funcionava a redação do Charlie Hebdo...
Ele era, alguém próximo de mim, na altura, eu não estava em França, recebi um telefonema a informar-me de que ele morreu.
Alguém que lhe telefonou a si.
Telefonaram-me para dizer: "Sabes o que aconteceu? E, eu: Está tudo bem? Não, em Paris, ...os atentados”. Foi assim que soube. Como não o tinha visto dois meses antes, e costumávamos encontrar-nos todas as semanas, ou duas vezes por semana, isso tornou a sua morte um pouco estranha. Não estava aqui, por isso não senti a sua morte. Foi como se, numa reunião de amigos, eu vi a grande falta dele e percebi, enfim, que há um problema.
Lembra-se como se tornaram amigos?
Trabalhámos no mesmo jornal, não no Charlie Hebdo, mas no mesmo jornal. Conhecemo-nos há vinte e cinco, vinte e seis anos. Éramos muito próximos, fizemos várias coisas juntos, livros. Tivemos uma convivência magnífica. Ainda mantenho contacto com a mulher dele.
Trabalhavam juntos em que jornal?
No Canard Enchaîné, porque o Cabu trabalhava para o Charlie Hebdo, mas também para o Canard Enchaîné, que é um jornal satírico. Fundámos também um site na internet juntos. Fizemos três ou quatro livros em conjunto. Em alguns, desenhámos juntos, noutros, eu colori os desenhos dele, e assim por diante. Éramos muito próximos. Tinha um amigo, não tinha muitos amigos, talvez dois, e o Cabu era um deles. Quando ele se foi, foi como se não houvesse ninguém, então, venho [aqui onde tudo aconteceu] para estar um pouco com ele.
Ele era uma pessoa muito acarinhada pelos franceses.
O Cabu era muito conhecido aqui, era muito amado, por várias razões. Era uma figura muito abrangente, trabalhava com crianças, jovens, idosos, com toda a gente. Era alguém realmente popular, conhecido na rua. As pessoas reconheciam-no.
Era acarinhado por toda a cidade...
Por todo o lado em Paris, porque o rosto dele era conhecido através da televisão. Participava num programa muito conhecido entre as crianças. Muitas pessoas cresceram com o Cabu. Muitas vezes, na rua, as pessoas diziam: "Eu via o seu programa quando era pequeno", e assim ... Ele era simpático com todos. Era alguém que podia passar horas a desenhar, a oferecer desenhos para casamentos, para quem pedisse. Era uma pessoa extremamente gentil.
Ou seja, não apenas alguém popular e uma figura pública?
Geralmente, alguém que é muito popular nem sempre tem qualidade, mas no caso dele, havia qualidade e popularidade juntas. Ele misturava tudo, tocava toda a gente, desde as crianças pequenas até aos idosos. Os fãs do Cabu eram realmente intensos. Era alguém especial na forma como tratava as pessoas, trabalhava muito, tocava as pessoas. Era apaixonado por jazz, por isso também havia essa ligação ao jazz, às crianças, à música clássica. Era uma personalidade magnífica.
Dez anos depois, o Wozniac parece manter uma cumplicidade que é visível no trabalho que fizeram juntos e que está publicado, em livro e online.
Não sei como chegar à conclusão de que ele morreu, porque, na verdade, eu sei que ele morreu, mas onde, como… Mas, em que sentido, "em que local", algo ficou suspenso. Acho que, se estivesse em Paris, teria percebido imediatamente, mas até hoje ainda me custa aceitar. Eu seu. Eu li. Sei que há as obras póstumas dele, há isto e aquilo, mas o facto de não o ter visto dois meses antes da morte... eu soube pelo telefone, Isso prolongou o facto de que ainda não admiti totalmente a morte dele. Ainda não consegui aceitar.