Charlie Hebdo. "Tudo mudou: desenhamos de forma diferente, passámos a ter cuidado com tudo”
Em Paris, o desenhador Wozniak expressa “dor” pela perda do amigo de Jean Maurice Cabut e lamenta o ataque ao Charlie Hebdo. Dez anos depois, vê limites à liberdade de expressão
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França assinala, esta terça-feira, a passagem dos dez anos desde o atentado ao Charlie Hebdo, o jornal satírico que a 7 de janeiro de 2015 foi alvo de um ataque por dois militantes da Al-Qaeda. A TSF recorda, esta manhã, os três dias de terror em que morreram 12 pessoas, entre as quais cinco desenhadores e um polícia dentro da própria redação.
Em Paris, a TSF conversou com o desenhador Wozniak, amigo de longa data do desenhador Jean Maurice Cabut, figura incontornável na cultura francesa, multifacetado na forma de se expressar através do desenho. “Cabu” marcou várias gerações. Morreu a 7 de janeiro de 2015 durante o ataque.
Wozniak, desenhador e amigo de Cabu, assume que passados dez anos ainda lhe custa acreditar nesta perda, num acontecimento que deixa cicatrizes profundas na liberdade de expressão em França.
“Conhecíamo-nos há vinte e cinco ou vinte e seis anos. Éramos muito próximos”, conta o desenhador, lembrando os tempos que trabalharam juntos no Le Canard Enchaîné, outro jornal satírico, e em múltiplos trabalhos.
“Fizemos várias coisas juntos: livros, três ou quatro livros juntos. Numa parte, desenhávamos juntos, uns dois ou três desenhos e eu coloria. Portanto, éramos muito próximos. Tivemos uma convivência magnífica”, afirma, recordando o dia 7 de janeiro como uma tragédia muito próxima.
“Como toda a gente, estou triste. Perdi um amigo aqui, um colega e um amigo. Então, como posso dizer... é pessoal, era algo muito pessoal”, afirma Wozniak, sem hesitar em dizer que o ataque ao Charlie Hebdo marcou um momento de viragem na forma de fazer crítica satírica em França.
“Tudo mudou. Há um antes dos atentados e um depois. Tudo mudou depois do 7 de janeiro. Tudo, no sentido negativo também. Quero dizer, os desenhadores começaram a desenhar de forma diferente, passámos a ter cuidado com tudo, e por aí fora”, afirma o desenhador, considerando que a liberdade de expressão é agora condicionada por uma auto-censura.
“Toda a gente começou a olhar de outra maneira. Dizem: 'Olha, mas...', 'No entanto, bem eles estavam...' Há sempre um 'mas'. Diz-se: 'Sim, é liberdade de expressão, mas temos de ter cuidado porque há outros que podem sentir-se afetados, todas as religiões, e assim por diante. Sem dúvida, este pensamento acabou por ganhar. Quero dizer, não é melhor do antes ou depois; foi um processo gradual”, relata Wozniak, lembrando os dias que se seguiram e a marcha de apoio em que “as pessoas gritavam pela liberdade de expressão, mas, depois, a auto-censura foi-se instalando, auto-censura a todos os níveis”.
Wozniak acredita que essa auto-censura não se limita apenas ao desenho satírico e está “desde a origem, desde a base dos jornalistas e vai até aos chefes de redação, aos teatros... Isto foi crescendo. Ainda assim, há sempre um 'mas'".
“Depois, havia a ideia de que é bom mostrar que é genial. Diz-se muita coisa em França, mais do que, - não sei como é em Portugal - mas, de qualquer forma, diz-se mais do que em outros países, sem dúvida. E, no entanto, há sempre esse 'mas': 'Mas não é preciso incomodar só por incomodar. Porquê provocar? Porquê?'”, afirma, descrevendo uma auto-censura que se instalou e que se consolida.
Wozniak pensa agora nestas mudanças, enquanto olha a porta da antiga redação do Charlie Hebdo onde, juntamente com mais oito caricaturistas, Jean Maurice Cabut foi morto por atacantes da Alqaeda.
“Víamos-nos todas as semanas. Não sei como aceitar que ele morreu, porque, para ser sincero, eu sei que ele morreu, mas, até hoje, ainda me custa perceber. A sua morte ainda não foi admitida por mim. Ainda não a aceitei”, afirma Waozniac dez anos depois, considerando que o terrorismo, visível no ataque ao Charlie Hebdo, deixou uma ferida na liberdade criativa que se consolida numa auto-censura que impõe limites à crítica, como é, por exemplo, o desenho satírico.