São já 211 os mortos provocados pelas inundações em Espanha. Há milhares de voluntários disponíveis para ajudar
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A entrada em Alfafar faz-se por uma ponte. Lá em baixo, nas linhas de caminho de ferro, dezenas de carros amontoam-se, uns em cima dos outros. Ao lado, em casa baixas de dois pisos, várias pessoas tentam limpar a lama que se acumula dentro e fora dos edifícios. Nas paredes brancas é perfeitamente visível a marca que assinala a altura a que chegou a água: mais ou menos dois metros. “Sobrevivemos porque subimos todos ao segundo piso”, conta Abel.
Eu saí de casa e havia 20 centímetros de água, quando cheguei à rotunda já tinha água pelo joelho e voltei para trás.
A rotunda fica a 100 metro de casa. Ali, como em toda a parte, há carros empilhados. Torres de sucata amassada para onde ninguém quer olhar. Porque ninguém sabe o que há dentro e todos temem que os ocupantes não tenham podido sair. Aos 211 mortos confirmados, soma-se um número desconhecido de desaparecidos. Segundo vários meios de comunicação espanhóis, o Governo da Comunidade tem o registo de 1900 denúncias de desaparecidos, mas não se sabe quantas dessas pessoas possam ter aparecido entretanto e, por isso, o número continua a ser incerto. E é nestas torres de carros onde se teme que se possam encontrar mais vítimas.
“É impossível determinar o número de desaparecidos”, disse esta sexta-feira a ministra da Defesa, Margarita Robles.
Há muitas pessoas dentro de carros e outras nas caves e garagens dos edifícios.
As ruas de Alfafar são um mar de lama pegajosa. Os vizinhos tentam ajudar-se como podem. Retiram os móveis das casas, e, às portas, amontoam colchões, cadeiras, mesas, camas e objetos que já estão irreconhecíveis. Lá dentro, o ambiente é desolador. Na maioria das casas em rés do chão não sobrou nada. Só as paredes. “Olha, e aquele relógio que não sei quem pendurou quase no teto”, diz Xavi.
Ele e quase toda a família, estão desde quarta-feira a limpar a casa de duas tias. Elas veêm os movimentos da janela do primeiro piso “Não querem deitar nada fora, mas não há nada aqui que se possa aproveitar”, diz, enquanto abre as portas das divisões que acumulam electrodomésticos e móveis enlameados à espera de destino. “Tive que as obrigar a subir ao primeiro piso na terça-feira porque não queriam. Se não tivesse sido isso, tinham morrido aqui”, conta Xavi.
“Um tsunami”
Em Alfafar não choveu. “Nada, nem uma gota, nada”, conta Vitória. “Às sete menos vinte começou a subir a maré e em menos de meia hora já tínhamos água com dois metros de profundidade”, lembra. Mesmo tendo vivido tudo na pele, há no tom de cada sobrevivente uma certa incredulidade. “Ainda parece impossível que isto tenha acontecido. É um pesadelo”.
Quando tudo aconteceu Vitória estava em casa com o marido e o filho de 12 anos. Vive no primeiro andar de um prédio e, por isso, nunca sentiu a vida em perigo. “Mas começámos a ver pessoas a ser arrastadas pela corrente e não sabíamos o que fazer. Entre o meu marido, o meu filho e outro vizinho conseguiram subir uma mulher que estava em cima de um carro e um homem que estava agarrado a uma árvore”.
Ao lado, Maricarmen, vizinha, conta uma história parecida. “Eu estava na varanda e vinha a água por uma rua, depois por outra, como nos filmes, um tsunami... vinha pela outra, depois viras-te e vem por esta”, diz, enquanto aponta para a rua. “Depois começou a subir, a subir e começámos a ver botijas do gás, um contentor, um carro, outro carro... as pessoas ali a pedirem ajuda e nós na varanda a vê-los lá em baixo e sem podermos fazer nada... Da janela de uma vizinha, começámos a tirar as pessoas: nós puxávamo-las para cima com cabos, com lenções, e as pessoas lá em baixo empurravam-nas... salvaram-se 17 pessoas”.
A comida e a água são distribuídas por voluntários e as equipas de emergência começam só agora a chegar. Nas estradas, uma maré de gente dirige-se aos lugares mais afetados. Levam garrafões de água, baldes, pás, picaretas, vassouras, esfregonas, mochilas com roupa... tudo o possa servir para ajudar a limpar a zona ou dar mais conforto aos sobreviventes.
“Não podíamos estar em casa com tudo isto a acontecer aqui. Fazemos o que podemos. Falamos com os vizinhos, perguntamos o que precisam e, se podemos, ajudamos”, conta Daniel Santamaria. Ele e Juan Chiquillo vieram de Valência, a 5 quilómetros de distância. Enlameados até aos olhos, sem haver na expressão nada de exagero, comem uma sandes sentados no passeio.
A onda de solidariedade foi tão grande, que as autoridades tiveram que pedir, a meio da tarde de sexta-feira, que não se deslocassem mais pessoas aos lugares afetados, para não entorpecerem os trabalhos de limpeza e resgate. Este sábado, as filas de voluntários saíram das estradas para um centro improvisado na Cidade das Artes onde o Governo os convocou para os organizarem. Foram milhares os que ali acudiram. De perto, de longe, conscientes do carácter aleatório da tragédia e de que no fundo tudo depende da sorte.
Nas zonas afetadas, não têm palavras para lhes agradecer. “Estivemos sem água, sem luz, sem comida até que aqui começou a chegar gente, nem sabias como, apareciam com aquilo que podiam. Chegaram antes de todos, até do que o exército”, diz Pablo, emocionado. “Estes dias teriam sido ainda mais difíceis sem eles”.
