"Colapso económico e 10 mil russos mortos todos os meses podem provocar uma revolução"
Orlando Figes, historiador inglês, professor na Universidade de Londres e um dos maiores especialistas atuais em história da Rússia, acaba de publicar em Portugal "A História da Rússia" . Entrevista na TSF.
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Orlando Figes, estamos a falar no dia 4 de novembro. E o seu livro começa com um episódio desse dia de Unidade Nacional na Rússia. Em 2016. Nesse discurso, Vladimir Putin falou-nos do que realmente pensa sobre a Ucrânia. Pode recordar-nos esse momento e essas palavras?
Sim, claro. Era 4 de novembro de 2016, como diz, o Dia da Unidade Nacional no calendário da Rússia, que deveria substituir o 7 de novembro para comemorar a Revolução de Outubro de 1917, que foi considerada demasiado divisiva. E, nesta ocasião particular, Putin revelou este monumento hediondo e gigantesco, numa espécie de estilo kitsch nacionalista russo, monumento ao grande príncipe Vladimir - como os russos o chamam - de Kyiv, que Putin descreveu como o fundador do Estado russo moderno, embora a sua conversão ao cristianismo em 988 esteja um pouco longe de ser citada como a fundação da Rússia moderna.
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E foi particularmente problemático porque os ucranianos também têm no centro da sua fundação esse mesmo Volodymyr - como lhe chamavam - a conversão de Volodymyr ao cristianismo naquela época. Repudiam a interpretação de Putin de Vladimir como o fundador da Rússia moderna dizendo "não, ele foi na realidade o homem que levou Kyiv para a Europa ao juntar-se à Bizâncio, à Igreja Ortodoxa Oriental. Assim, essencialmente, Moscovo e Kyiv estavam a lutar pelo direito de reivindicar este obscuro príncipe do século décimo como seu fundador. E penso que o que diz, acima de tudo, sobre a opinião de Putin sobre a Ucrânia é que ele vê a fundação da Ucrânia e a fundação da Rússia como realmente a mesma coisa porque para ele a Ucrânia não existe; na sua opinião sempre foi uma parte da Rússia histórica. E tem argumentado em vários artigos desde 2016, que a Ucrânia não tem independência, nunca teve um verdadeiro Estado próprio, sempre fez parte das terras históricas russas, e que sempre que a Ucrânia tentava separar-se da Rússia, ficava sob a influência de potências ocidentais hostis. Assim, falou da Polónia e da Lituânia nos séculos XVII e XVIII, e dos alemães e austríacos no XIX, os alemães novamente no final da Grande Guerra e na Segunda Guerra Mundial, tentando usar o nacionalismo ucraniano para separar a Ucrânia da Rússia. E, claro, Putin também afirmou que a expansão da NATO está a tentar fazer a mesma coisa para transformar a Ucrânia num lugar antirrússo.
Assim, tudo remonta, de certa forma, à forma como os russos se veem a si próprios, o fundamento da sua civilização, os seus impérios em Kiev, no primeiro milénio, e a negação disso como sendo algo que tem a ver com o desenvolvimento de uma identidade ucraniana.
Não se pode dizer que ele estava de alguma forma a esconder os pensamentos que tinha sobre a Ucrânia, porque como menciona no livro, já em 2008, ele até tinha dito ao então Presidente dos EUA George W. Bush, que a Ucrânia não era realmente um país...
De facto, e essa é uma visão imperial que, sabe, ele teria recebido através da sua leitura da historiografia russa do século XIX. Mas é mais relevante, penso eu, para a visão do mundo de Putin um legado do império soviético, que se tratava de uma entidade multinacional chamada União Soviética e que a Rússia, como Estado sucessor da União Soviética, tem algum tipo de reivindicação ou grau de influência sobre a Ucrânia, cuja Independência, penso, nunca foi devidamente reconhecida por Putin.
Agora, ele declarou muitas vezes o seu reconhecimento, mas penso que essa citação do que disse a George Bush em 2008 significa que ele nunca aceitou realmente a independência ucraniana; ele e o seu círculo próximo no Conselho de Segurança, os homens duros que conduziram esta guerra, penso que sempre viram a independência da Ucrânia como algo que estavam dispostos a aceitar porque lhes foi imposta pelo Ocidente. Foi um produto do colapso soviético, que nunca deveria ter sido permitido acontecer. Foi ilegalmente empurrada para isso por Ieltsin e Kravtchuk, o então presidente da Ucrânia, com um homem fraco, Gorbachev, incapaz de os deter. E que mesmo que lhes tivesse sido permitido sair, eles deveriam ter saído - diz Putin - como entraram. Por outras palavras, nada.
De volta à cerimónia em 2016 Provavelmente hoje, alguém como Natalia Soljenitsin não estaria no palco a dizer que não há nada mais divisivo do que o passado da Rússia?
Essa é uma pergunta muito boa e não posso responder pela Sra. Solzhenitsyn. Mas tudo o que posso dizer é que Putin e aquele nacionalismo irredentista dos anos 90, reivindicavam que as áreas agora ocupadas pela força invasora - por outras palavras, o Donbass, e o que foi chamado Nova Rússia, - eram territórios históricos russos. Essa visão foi originalmente bastante forçada por Solzhenitsyn, Alexander Solzhenitsyn no seu livro Reconstruir a Rússia escrito nos anos 90, no qual foi explícito sobre o seu argumento de que a nova Rússia, por outras palavras, a região costeira no sul ocupada agora pelas forças russas, e o Donbass tinham sido sempre terras históricas russas e deveriam ser tiradas à Ucrânia. Mas se a sua viúva partilha essa opinião, não o posso dizer.
Será algo mais estrutural e amplo dentro da sociedade russa? Ou será apenas Putin que abraça esta abordagem imperialista que visa apropriar-se da história da própria Ucrânia?
Penso que é mais amplo. Penso que o sentimento de que a Rússia foi maltratado no colapso da União Soviética, esse sentimento é bastante generalizado entre a população, principalmente porque muitos russos experimentaram o colapso da União Soviética como um trauma, como uma catástrofe, como uma perda de tantas coisas que tinham tomado como certas, como a sua segurança económica, e acima de tudo, o seu sentimento de serem cidadãos de uma superpotência. Eles não gostaram da forma como a Rússia foi tratada nos anos 90. E foi, também penso eu, mal tratada pelo Ocidente, pode-se argumentar, que os pontos de vista russos não eram tidos em conta sobre uma série de questões geopolíticas, que a América estava a agir como se tivesse ganho a Guerra Fria, e a dizer à Rússia o que tinha de aturar.
Tudo isso é um sentido geral entre uma grande parte da população russa, penso eu, mas isso não justifica nem sugere que muitas pessoas na Rússia, se soubessem a história completa das invasões ucranianas desde 2014, a teriam apoiado.
Mas de um modo geral, o início da invasão em 2014 foi amplamente apoiado pelas sondagens, cerca de 80% era favorável. E mesmo estadistas como Gorbachev, que nós no Ocidente tendemos a ver como um liberal pró-ocidental, tentando supervisionar o desmantelamento do sistema soviético, até Gorbachev apoiou a anexação da Crimeia e disse, já em 2019, "penso que teria feito o mesmo se estivesse na posição de Putin".
Assim, penso que temos de reconhecer que o sentimento de injustiça cometida contra a Rússia é um elemento de um nacionalismo russo bastante amplo. O sentimento do que são os direitos da Rússia como potência chegaram à maioria da população a partir da escolaridade, da sua compreensão da história russa, o que, evidentemente, é muito diferente da nossa própria compreensão da história russa.
Mas as políticas que Putin tem seguido desde 2014, tornaram-se cada vez mais extremas e a retórica cada vez mais beligerante e anti-ocidental. E não creio que se a maioria da população soubesse realmente o que está a acontecer agora na Ucrânia, o apoiaria necessariamente. Não creio que possamos chamar a isto uma guerra russa com toda a confiança que isso supõe, porque não creio que a maioria dos russos tenha sido informada do que se está a passar.
Como vê o conflito neste momento?
Nesta altura, vejo o conflito numa situação muito perigosa, porque está a escalar, e enquanto os dois lados estiverem tão determinados, como parecem continuar até à sua definição de vitória, não consigo ver qualquer base para qualquer negociação. E porque é que os ucranianos negociariam com os russos que, de qualquer modo, se revelaram tão pouco fiáveis? Pelo que não vejo muita esperança de uma solução negociada.
Penso que é bastante provável que se torne uma guerra de longo prazo, potencialmente de vários anos. Mas, infelizmente, irá escalar para outras áreas de guerra durante o próximo inverno, meses, muito obviamente, em termos da crise energética, da crise do custo de vida, e do que eu penso que pode muito bem tornar-se uma crise de refugiados, se os ataques de mísseis russos às infraestruturas ucranianas, reduzindo as cidades a escombros sem eletricidade ou água corrente... haverá inevitavelmente uma crise de refugiados causada pelas ucranianos para o Ocidente.
E assim, em última análise, o resultado da guerra, receio que seja decidido pela vontade das sociedades ocidentais de continuar a apoiar os ucranianos, o custo que isso trará para as sociedades ocidentais em termos de orçamentos militares, em termos de custos energéticos e assim por diante.
Portanto, nem os EUA nem a China estão realmente interessados em envolver-se em negociações sérias para um acordo político...
Há potenciais intermediários para negociação. Quer dizer, penso que a Turquia viria antes da China ou da América nesse papel. Mas não vejo que nenhum dos lados tenha ainda muito para negociar. Os ucranianos são claramente contra qualquer ideia de negociar terra pela paz; e, por outro lado, objetivos ainda menores para os russos, tais como a exclusão da adesão à NATO para a Ucrânia exigiriam na Ucrânia um referendo, exigiriam a passagem por ambas as assembleias legislativas, e isso levaria cerca de um ano ou assim. E não consigo ver isso sequer a passar.
Penso que os ucranianos se colocaram numa posição de não compromisso com os russos e exigiram o apoio do Ocidente para os levar a uma vitória, o que penso que para a maioria dos ucranianos significaria a expulsão dos russos até mesmo da Crimeia. E não vejo que a Rússia se encontre numa posição em que seja provável que concorde com tais termos de negociação. E penso certamente que se as forças ucranianas tentassem retomar a Crimeia, isso iria agravar o conflito para os russos, possivelmente até com a utilização de armas nucleares táticas.
Portanto, sabe, estamos numa situação muito perigosa em que se pode ver todo o tipo de formas de escalada da guerra, e muito poucas oportunidades para a desescalar e iniciar qualquer tipo de conversações de paz.
Deixe-me voltar à própria Rússia. Escreve que na Rússia nem sequer existe um significado publicamente aceite para conceitos básicos como democracia ou liberdade, e que o discurso político é muito definido por ideias sobre o passado do país. Portanto, a Rússia é um país que vive no passado, mas em busca de um grande renascimento. O meu ponto é: será apenas a Rússia? E os outros países? Quero dizer, Reino Unido, EUA, Portugal, estão muito provavelmente, cheios destas narrativas históricas ou míticas extremamente auto-realizadoras, não estão?
Oh, absolutamente. Sim, é claro. Os impérios, em particular, têm este sentido de missão. E penso que, nesse sentido, podemos falar da América como um império que teve esta ideia de que tinha uma missão. Portanto, sim, com certeza, esse é um fenómeno bastante comum. Penso que o que estou a tentar dizer sobre a Rússia no meu livro é que, na ausência de discurso político livre, e na ausência de partidos políticos, democracia, liberdade, na ausência de qualquer definição livre de tais termos, porque estes termos são agora basicamente definidos pelo Estado, a história torna-se o meio pelo qual o Estado justifica e lança políticas, para promover os interesses da Rússia e dos russos, na medida em que o Estado projeta essas políticas. Isto significa que os regimes ou a Rússia que vimos ao longo da história russa sempre procuraram na história argumentos sobre o que é o destino da Rússia, quais deveriam ser as fronteiras territoriais da Rússia, ou qual deveria ser o sacrifício feito pelo povo em prol do Estado. Ou quais são as ideias que aproximam os russos. E isto pode parecer um pouco estranho para um público ocidental, mas na Rússia, onde a religião e os mitos russos estão muito vivos, essas ideias continuam a ser importantes.
Há apenas algumas semanas, um propagandista russo, Vladimir Solovyov, estava a tentar que os milhões de russos que assistem ao seu espetáculo subscrevessem a sua ideia de que os russos são diferentes dos outros países, porque vivem com um propósito. Os russos sempre quiseram um propósito maior, não apenas ter uma espécie de conforto material, que podem obter no Ocidente, mas querem que a Rússia desempenhe um papel, eles procuram algum tipo de objetivo superior na vida, isto tem sido uma parte da mitologia russa.
Durante séculos, poder-se-ia dizer que remonta a Bizâncio e à ideia proselitista pela igreja russa desde o século XVI de que Moscovo é a Terceira Roma. Mas após a queda de Constantinopla, Moscovo continuou a ser o único verdadeiro símbolo do cristianismo, e por isso, o seu império teve este impulso de uma missão para salvar a humanidade. Assim, pode-se traçar nesse sentido, uma linha reta desde o mito de que Moscovo é a terceira Roma até ao mito soviético da internacionalidade, a terceira internacionalidade o termo comum, mas Moscovo é a sede da Terceira Internacional, que é o libertador do globo. Estas ideias podem parecer-nos loucas, podem parecer arcaicas, mas ainda mantêm alguma força na consciência e na propaganda russas. Solovyov e o próprio Putin jogam constantemente com estas ideias sobre a missão da Rússia.
E assim Catarina, a Grande, está definitivamente certa: "A Rússia é tão grande que só pode ser governada por um autocrata"...
Não, acho que ela não tem razão, poderia ter sido governada por muitos outros meios. O problema com a Rússia, a que Catarina se referia, é que é um país muito grande, com uma população muito pequena, sem a alfabetização e as competências necessárias para o administrar um governo.
A maior parte da população na Rússia governava por conta própria em pequenas comunidades. E muitas pessoas no século XIX, socialistas e democratas, pensavam que essas comunidades de aldeia autogovernadas poderiam tornar-se a base de um novo tipo de Estado, mas os proprietários de terras que dominavam nunca se sentiram felizes por um governo autónomo se desenvolver. E quando isso aconteceu no final do século XIX, houve assembleias de terra, houve autogoverno nas cidades, mas todas elas fortemente policiadas e restringidas por pressões financeiras. E assim, a Rússia nunca teve realmente o desenvolvimento de instituições cívicas, coisas como instituições de caridade, organismos públicos, conselhos municipais, assembleias representativas a nível provincial, que poderiam ter entrado no vazio do poder em 1917. Tentaram, mas foram muito fracos, foram consumidos e varridos pela violência de classe mobilizada pelos bolcheviques. Esse é que é o problema. Não é um problema que os russos sejam incapazes de um autogoverno democrático que esteja intrinsecamente no centro da sua identidade em termos das suas próprias instituições sociais. É que essas instituições nunca foram realmente autorizadas a ocupar a esfera política, porque o Estado sempre se reafirmou e centralizou o poder, particularmente sob os bolcheviques, como é óbvio.
E penso também que se pode dizer que esta centralização novamente é um fenómeno relacionado com o tamanho da Rússia, e o facto de os recursos da Rússia de hoje, principalmente em termos de valor medido em petróleo, gás, ouro, diamantes, níquel e platina, todas estas coisas se localizarem em áreas particulares deste vasto país. Portanto, o papel do Estado tem de ser altamente centralizado, porque significa redistribuir o rendimento nacional desses recursos para áreas sem recursos a explorar. Ou seja, há razões para a centralização do governo na Rússia. Mas isso não significa dizer que tenha sempre de ser autocrático, da forma como Catarina a Grande sugeriu.
Como vê o futuro deste grande país eurasiático?
Não particularmente brilhante, devo dizer, penso que a guerra, quanto mais tempo durar, é suscetível de destruir tudo o que há de melhor na Rússia. Já estamos a assistir a uma fuga maciça de cérebros de especialistas em IT, cientistas, médicos, professores, académicos, qualquer pessoa que consiga sair desses círculos está a tentar sair, a menos que tenha razões familiares. Portanto, penso que a Rússia ficará significativamente reduzida nos seus recursos humanos. E estará muito isolada do Ocidente. Quer dizer, a 'siloviki', os apoiantes desta guerra são totalmente a favor de uma viragem para Leste, uma parceria com a China, Irão, talvez Turquia, talvez Índia, em vez de procurarem recuperar qualquer tipo de relacionamento com o Ocidente, pois agora sentem-se anti-ocidentais, é essa a via que o nacionalismo da elite governante está a fazer.
Portanto, receio que haverá um longo período de isolamento para a Rússia. E não será do interesse dos russos, quer haja uma revolução - e penso que uma revolução é mais provável do que qualquer golpe palaciano, qualquer remoção silenciosa de Putin pelo seu círculo próximo. Não vejo isso a acontecer.
Uma revolução devido à crise económica...
Absolutamente, colapso económico e as consequências a longo prazo de uma guerra que as possa durar muito tempo sem problemas sérios. Se todos os meses forem devolvidos corpos de mais 10.000 jovens russos, ou se os seus familiares lhes disserem que foram mortos em combate, e que nem sequer podem trazer de volta os seus corpos... já vimos isto antes na guerra afegã. E assistimos a revoluções na Rússia no decurso da guerra, como em 1905 e 1917. Portanto, não excluiria a possibilidade de uma revolução e de graves distúrbios na rua. Mas penso que não vai acontecer da noite para o dia, sabe, muito rapidamente. Quer dizer, quando acontecer, vai acontecer rapidamente. Mas não creio que vá acontecer nos próximos seis meses. Mas penso que se a guerra continuar durante vários anos, então penso que é cada vez mais uma possibilidade.