"Construir pontes entre nós para que o Afeganistão não volte a ser, novamente, um Estado falhado"
Omar Samad foi embaixador afegão no Canadá e em França, e conselheiro principal de Abdullah Abdullah, primeiro-ministro (2014-2020). Licenciado na American University em Washington D.C., Mestre em Relações Internacionais pela Tufts University no Massachusetts, faz na TSF o diagnóstico atual do Afeganistão.
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Qual é a actual situação política e social no Afeganistão com base nas informações que pode obter de quem vive no país?
Certo, eu tento lidar com as informações do terreno tanto quanto possível. Estou em contacto com diferentes pessoas e líderes comunitários em todo o país. Sabe, três anos após o colapso da República, a situação é um tanto sólida do ponto de vista dos Talibãs, há uma solidificação do regime. Eles prestaram muita atenção e gastaram muito dinheiro na tentativa de garantir e estabilizar o seu governo. As outras questões que o povo afegão enfrenta são algo fluidas, tanto em termos da economia, que está obviamente sob grande pressão, por um lado devido ao corte da ajuda ao desenvolvimento após 2021, como também por causa da pobreza e corrupção endémica no Afeganistão. E também o regime de sanções que obviamente prejudicou as perspectivas económicas de muitas pessoas. A outra questão que está muito presente na mente das pessoas é a contínua crise humanitária. Como deve ter visto ultimamente nas notícias, as crianças estão a morrer de subnutrição, sendo que mais de 3 milhões são consideradas gravemente desnutridas.
O que é um recorde negativo de malnutrição…
Bem, a situação não era melhor antes, mas está a piorar, pois antes havia milhares de milhões de dólares de dinheiro a fluir para o país; agora isso não acontece, então o regime actual depende das receitas internas. As exigências humanitárias são grandes, e o financiamento está a diminuir, infelizmente, por parte da comunidade internacional. Os doadores estão distraídos com outras crises em todo o mundo e talvez também sintam algum cansaço em relação ao Afeganistão. E esperam talvez mais dos Talibãs e os Talibãs estão a ser mais rígidos em termos dos seus códigos e decretos sociais e religiosos. Infelizmente, quando se trata de mulheres e meninas, educação, trabalho, não há melhorias e por isso a lei…
Ou seja, o fortalecimento da Lei de Promoção da Virtude diminuiu ainda mais os direitos das mulheres?
A lei que foi introduzida, como o Ricardo disse, diminuiu ainda mais o espaço para mulheres e meninas, embora o que também reconhecemos é que existe uma grande oposição a este tipo de política dentro dos próprios Talibãs. Até onde isso pode ir e até onde pode mudar algumas mentalidades, não sabemos.
Essa oposição interna está a expressar isso em voz alta...?
Às vezes, algumas pessoas têm sua própria maneira de expressar oposição. Não é a nossa maneira normal de nos assumirmos. É um tipo de sistema um tanto subterrâneo, é um sistema muito diferente do que conhecemos e a hierarquia é uma hierarquia muito diferente. A tomada de decisão também é muito diferente, por isso temos de compreender como isso funciona, mas é muito claro e todas as partes interessadas compreendem que existem diferenças de opinião dentro dos Talibãs. Também há questões que têm a ver com inclusão política. Havia uma expectativa de que os talibãs permitissem espaço para que outros membros da sociedade afegã desempenhassem um papel e tivessem voz, e no novo sistema, isso não aconteceu, eles confiaram principalmente nos seus próprios seguidores e no seu próprio sistema de lealdade. E não há envolvimento e diálogo intra-afegão suficientes que deveriam estar a ocorrer; o Afeganistão precisa de abrir mais espaço para intercâmbios políticos, pelo menos, que ocorram entre diferentes comunidades no país. Então, esse também é um desafio que permanece por alcançar.
Podemos dizer que esta discriminação contra as mulheres é de alguma forma uma prioridade ideológica do Taliban?
Faz parte de uma mentalidade dentro da educação talibã. É uma questão muito complexa. Tem as suas raízes na década de 1970, quando os comunistas assumiram o poder e impuseram algumas medidas muito extremas às aldeias e as aldeias reagiram. No final da década de 1970, início da década de 80, isso levou a uma rebelião nacional contra o regime comunista e também está enraizada em algumas tendências culturais, ideológicas e religiosas rurais que foram forçadas e reforçadas pelo sistema madrasa que foi criado durante as décadas de 1980 e 1990, especialmente no Paquistão e em alguns campos de refugiados, e que foram influenciados por escolas de pensamento não tradicionais, como o salafismo e o wahabismo, entre outras escolas. Portanto, é uma mistura muito complexa de diferentes elementos que se juntaram para criar esta mentalidade dentro de uma determinada parte do corpo talibã, especialmente aqueles que são um pouco mais velhos e vêm dessas escolas de pensamento. Mas esse é um aspecto da ideologia. Existem outros também. Há, por exemplo, uma restrição que foi imposta à escola Jafari que os xiitas do Afeganistão seguem, por isso os xiitas sentem que o espaço para a sua escolaridade religiosa diminuiu e, embora os talibãs a tolerem, não está codificada e não está a ser formalizada como tal. Portanto, esses tipos de questões ideológicas ainda existem no país.
Durante anos, o senhor concentrou-se muito na necessidade de um diálogo intra-afegão… Qual pode ser o papel da diáspora afegã nesse aspeto, uma vez que os talibãs estão consolidados no poder e podem não estar sequer interessados nesse diálogo?
É uma pergunta muito boa, algo em que estou muito envolvido e tenho estado envolvido nos últimos 2 ou 3 anos. Faço parte de várias plataformas que visam utilizar o envolvimento e o diálogo para reconstruir alguma confiança e abrir canais de comunicação para que os afegãos possam falar com os afegãos, mesmo que tenham lutado entre si no passado. É uma proposta desafiadora e muito, muito difícil e complexa devido à história de sessenta anos de conflito contínuo de diferentes formas, incluindo várias invasões e ocupações e todos os tipos de intervenção regional por procuração e, acima de tudo, conflitos civis internos. Tudo isto combinado, criou obviamente uma situação muito difícil depois de quase cinco décadas de violência no Afeganistão. Portanto, é necessária uma abordagem muito ponderada em termos de como, quando e onde iniciar o diálogo e que tipo de diálogo pode funcionar no contexto afegão. A primeira coisa que precisa ser feita é reconhecer um ao outro, reconhecer o outro lado. E então, a próxima coisa que precisamos fazer é iniciar uma longa conversa uns com os outros, independentemente de você ser comunista ou liberal, de ser talibã ou de um tom ou outro de islâmico, ou disto ou daquilo, quer você esteja no país ou fora do país, embora, é claro, a maioria das pessoas do regime anterior estejam agora fora do país. Mas obviamente ainda existem 40 milhões de pessoas, mais ou menos, a viver dentro do país e pertencem a comunidades e sociedades e famílias e tribos e grupos étnicos diferentes, e por isso há muita actividade dinâmica a ter lugar dentro do país.
A assembleia chamada Loya Jirga…
A Loya Jirga sempre foi uma opção ou um instrumento que pode ser utilizado se e quando todas as partes concordarem que esta é a melhor forma de reunir, discutir e decidir. Portanto, permanece como uma opção. Existem outras ferramentas que podem ser usadas, mas ainda não chegámos lá. Estamos no início de um longo processo que começa com o reconhecimento mútuo, o cumprimento mútuo, o sentar-se a conversar e a construção de confiança, porque a coisa mais importante que perdemos no Afeganistão foi a confiança interna intra-afegã. E então, como é que se faz isso? Geralmente as pessoas têm tentado usar armas em conflitos e tentado iniciar conflitos para impor a vontade de um lado sobre os outros. Portanto, espero que tenhamos aprendido a lição de que através da violência e da actividade armada não é possível alcançar o nosso objectivo. 50 anos de história corrida provaram isso, logo precisamos de seguir um caminho diferente porque os outros não funcionaram e não funcionam e não nos dão nenhum resultado desejável. Então é aqui que o diálogo e o envolvimento precisam começar. É muito diferente no contexto afegão, mas também podemos aprender com outros países. Ao mesmo tempo, precisamos de garantir que seja o mais inclusivo possível, que seja estruturado e que construa confiança, a fim de construir consenso ao longo do tempo. Caso contrário, penso que ficaremos presos onde estamos e o país não terá a oportunidade de ter um sistema mais inclusivo e mais participativo no futuro. A única maneira de ter isso é começarmos a conversar uns com os outros.
E os EUA? Existem as sanções, mas, por outro lado, mesmo isolando o Afeganistão internacionalmente, os Estados Unidos continuam a ser o seu maior doador, fornecendo mais de 3 mil milhões em ajuda desde 2021… teme que esta ajuda possa ser suspensa se houver uma vitória republicana na Casa Branca e/ou no Congresso no dia 5 de Novembro?
Bem, acho que a história das sanções sempre foi muito questionável quanto à sua eficácia e penso que eu, pelo menos, fui um daqueles que pensava que este tipo de sanções, a forma como foram implementadas após o colapso em 2021 e a forma como visavam determinados grupos e outros, provavelmente não era a melhor forma de lidar com a situação, porque o tiro poderia sair pela culatra ou acabar sem resultados. E é isso que vemos. Penso que o que a comunidade internacional está a fazer agora é rever a forma como nos envolvemos, a forma como decidimos o que fazer. E você pode ver nas Nações Unidas, no Conselho de Segurança que o consenso que existia há 3 anos não existe mais, que há uns dias dois países como que se opuseram a qualquer tipo de discussão ou emissão de qualquer tipo de declaração, quero dizer Resolução, sobre as questões de direitos humanos no Afeganistão; dois países do Conselho de Segurança não estavam dispostos a fazê-lo. Portanto, as Nações Unidas ainda são, na minha opinião, depois do trabalho realizado no ano passado pelo relator especial e pelo enviado especial independente, que recolheu opiniões de todos, a melhor forma de avançar. Mas as Nações Unidas também têm limitações a este respeito devido às grandes rivalidades de poder, e por isso penso que, para quebrar o impasse, precisamos de tomar medidas graduais: precisamos de ter uma visão a longo prazo de como lidar com o Afeganistão. É um processo longo que exigirá a construção de confiança também dentro da comunidade internacional, e não apenas entre os afegãos. Portanto, existe um plano, existe uma ideia, existe um conceito, existe um processo através do Processo de Doha, para abordar estas questões.
Participei como parte do grupo da sociedade civil na última vez em julho, na terceira reunião de Doha, fui um dos participantes da sociedade civil, então nós... eram cinco mulheres e dois homens, e a maioria deles veio de dentro o país e expressámos de forma livre e independente as nossas opiniões sobre o que precisa de ser feito. Os Talibãs entraram, noutra reunião, expressou suas opiniões. A comunidade internacional, cada uma das partes envolvidas, expressou a sua opinião. Portanto, precisamos continuar esta discussão. Precisamos de prosseguir estas deliberações e de tomar medidas práticas para garantir que o Afeganistão não seja esquecido ou isolado, que as necessidades humanitárias da população sejam satisfeitas, que façamos certas coisas que ajudam a economia, mas não ajudam particularmente qualquer lado ou grupo. Mas, ao mesmo tempo, precisamos de nos certificar de que abordamos questões que afectam as pessoas, o que tem de ser centrado nas pessoas. E precisamos de despolitizar certos aspectos do nosso envolvimento, porque quanto mais politização se fizer, maiores serão as probabilidades de reação negativa e maiores serão as probabilidades de, mesmo, em alguns casos, de medidas mais drásticas que poderiam ser implementadas ou impostas à população afegã.
O Omar Samad pensa que há mais inação internacional ou ação negativa internacional em relação ao seu país?
Essa é uma boa pergunta. Não tenho a resposta, é claro, porque não sabemos. Em primeiro lugar, a posição dos dois partidos na política externa em relação às mudanças no Afeganistão fala muito sobre o passado. Tu fizeste isso, eu fiz aquilo. Eu culpo-vos por isso, ou seja, há muito esse tipo de discurso. E então, o outro lado reage. Portanto, há muita retórica sobre o passado. Quase não se pensa no futuro quando se trata do Afeganistão; então o que precisa ser feito, obviamente, é que aqueles que são pensadores sérios e pensadores estratégicos precisam pensar sobre como se envolver nesta parte do mundo ou se voltar a ligar, perceber o que funciona melhor, o que não funciona, e lidar com as realidades no terreno, bem como com as oportunidades e desafios. Portanto, precisamos de lidar com os desafios, sejam eles na forma de restrições talibãs ou nas oportunidades que existem em termos de reconstrução de pontes e construção de confiança e de garantir que haja algum consenso sobre o Afeganistão, para que este não se torne uma ameaça ou um problema ou um estado falhado novamente. Essa discussão ainda não está realmente a ter lugar, espero que aconteça nalgum momento, por isso não posso prever o que os Estados Unidos irão fazer, mas penso que existe uma obrigação por parte da comunidade internacional de garantir que o povo afegão não morre à fome por causa de sanções ou de más políticas dentro ou fora do país. Portanto, precisamos de ter a certeza de que tomamos as decisões corretas e que temos em conta as necessidades humanitárias do povo afegão.
O mundo olha agora para outro lugar, para a Ucrânia, para o Médio Oriente, e não mais para o Afeganistão…
Acho que há menos interesse, menos atenção, e mais… talvez… apatia. Outras prioridades, outras questões, internas e externas. Penso que o Afeganistão esteve numa guerra muito longa que poderia e deveria ter terminado muito antes de 2021 e de uma forma melhor. É claro que perdemos muitas oportunidades. Há muitas lições a retirar dos 20 anos de presença ocidental no Afeganistão, tanto para os afegãos, para a região como para outros países. Portanto, espero que utilizemos o caso do Afeganistão de forma construtiva e que aprendamos e não repitamos os erros do passado e isso aplica-se também ao povo afegão, aos líderes afegãos e àqueles que afirmam representar, digamos, as comunidades na Diáspora. Temos de ser mais responsáveis relativamente ao futuro do país e não sermos apanhados pelo barulho e pelo emocionalismo que, por vezes, não ajuda as pessoas que estão no terreno.
O grupo Estado Islâmico (EI) assumiu a responsabilidade pelo ataque suicida há umas semanas em frente ao Ministério Público em Cabul… portanto, os talibãs não cumpriram a sua principal promessa. Fornecer segurança…
Bem, é uma questão de tentar comparar a segurança antes, a segurança agora, algumas tentativas de alguns grupos às vezes de atacar de forma oportunista. Penso que os Talibãs… e não sou eu que estou a dizer, é o serviço de inteligência e os serviços secretos e de segurança do mundo, aqueles que são mais realistas, que dizem que os Talibãs e este chamado grupo Korahsan do Estado Islâmico (IS-K), que supostamente é afiliado do ISIS ou do ISIL, têm estado em guerra pelo menos nos últimos 10 anos. E não se vêem olhos nos olhos, e eles têm uma visão muito diferente de como impor a Sharia a uma sociedade. E assim, nos últimos três anos, os Talibã pareciam ter, em grande medida, talvez não inteiramente, mas em grande medida, rebaixado e enfraquecido a posição do IS-K no Afeganistão, apesar das infelizes tragédias que aconteceram como a da semana passada, que levou várias vidas inocentes, e penso que esta luta continuará enquanto houver tentativas e motivações por parte de certos grupos na região e fora dela para usar o terrorismo como ferramenta, e por isso é fácil de acontecer.
Não é apenas no Afeganistão, isso acontece em muitos lugares diferentes. Precisamos de mais cooperação e mais colaboração para encontrar este tipo de ameaça que tem como objetivo desestabilizar o Afeganistão ou os países XYZ, ou porque é uma ameaça antiocidental. Precisamos de encontrar um terreno comum e colaborar para diminuir e neutralizar estas ameaças. Mas precisamos deixar bem claro onde cada elemento está; então, não podemos misturar alhos e bugalhos aqui. Precisamos realmente tentar ser muito claros e este é o trabalho de serviços de segurança muito sofisticados e principalmente de inteligência, que possuem as informações. Não creio que o público em geral tenha informação suficiente para poder determinar e discernir com muito cuidado quem é quem e o quê, o que estão a fazer e para quem o fazem e por que razão o fazem. Ou seja, temos que ter muito cuidado com essas questões.