"Depois do que aconteceu no Rio Grande do Sul, algumas cidades simplesmente foram varridas do mapa"
Em entrevista à TSF, o especialista em recursos hídricos e professor na Universidade Estadual Paulista, Rodrigo Lilla Manzione, conta que os milhões de pessoas afetadas, sem água potável e energia, têm recorrido "ao velhinho rádio a pilhas" para receberem informações fidedignas
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Depois de 11 dias de chuva intensa, voltou a chover esta sexta-feira no estado do Rio Grande do Sul, ainda sem que o nível dos rios tenha baixado e ainda com as barragens sob risco de colapso.
O dilúvio, que está a ser associado por especialistas ao duplo efeito das alterações climáticas e El Ñino, afetou quase dois milhões de pessoas, causando pelo menos 127 mortos, 756 feridos e 141 desaparecidos, segundo as autoridades.
O professor e engenheiro agrónomo Rodrigo Lilla Manzione descreve à TSF que o que mais impressiona desta vez, além dos "resgates cinematográficos", é a dimensão da catástrofe, que afeta "ricos e pobres", em mais de 400 municípios do Estado com 11 milhões de habitantes e detentor do quinto maior Produto Interno Bruto do país.
"Não foi uma tragédia isolada, como um furacão ou um terramoto ou deslizamento de terras. Realmente alastrou-se a todo o estado. E é um décimo evento climático extremo em menos de um ano no Rio Grande do Sul. Desde Junho do ano passado até agora, há cidades que já passaram por quatro enchentes consecutivas. Não tiveram tempo de começar a reconstrução e já passaram por novo desastre", afirma.
Rodrigo Lilla Manzione descreve um cenário devastador: "O evento climático não deu tréguas. Foram praticamente 11 dias de chuva seguidos. No último fim de semana, a chuva parou dois ou três dias, mas voltou desde quarta ou quinta-feira, mesmo sem o nível dos rios baixar".
"A situação é desesperante: já falta água, comida, está a haver saques, é uma situação de guerra, calamitosa", sublinha.
E no meio do caos, este académico destaca que "o bom e velho rádio a pilhas" voltou a ser um bem necessário: "As pessoas no Rio Grande do Sul estão a solicitar rádios a pilhas, porque não têm energia para carregar os telefones ou ligar os eletrodomésticos".
"Com a desinformação a circular, o rádio ainda é uma fonte confiável a que as pessoas recorrem para obter informações, para saberem a que horas podem sair de casa e saber o que realmente está a acontecer", acrescenta.
Rodrigo Lilla Manzione é professor em áreas como Hidrogeografia e Agrometeorologia e especialista em gestão de recursos hídricos da Universidade Estadual Paulista. Além da experiência académica tem participado em equipas técnicas e comités gestores de bacias hidrográficas.
Tempestade perfeita
O académico sublinha que desta vez aconteceu a "tempestade perfeita", que juntou uma série de eventos climáticos: "O El Nino acaba a modificar as correntes de jatos atmosféricos e a humidade acaba a ser redistribuída de outra forma. Desta vez houve um centro de alta pressão no centro oeste e no sudeste do Brasil".
"Eu estou no Estado de São Paulo, que está com uma onda de calor há cerca de dez dias. Essa onda de calor fora da época, com 35 graus célsius durante o dia, em pleno Outono, acabou por criar uma cúpula de calor, fazendo com que as correntes de jato da Amazónia fossem desviadas para contornar esse centro de alta pressão e acabaram concentradas no Rio Grande do Sul", explica.
E a somar a tudo isto, "as frentes frias que avançam da Antártida passando pela Argentina não conseguem ultrapassar esse domo de calor".
Com as chuvas torrenciais, o Rio Guaíba, que atravessa o estado, atingiu níveis históricos. Rodrigo Lilla Manzione lembra que morar à beira do rio é um desejo da civilização desde a antiguidade, não é exclusivo da população brasileira. Mas destaca que a grande questão no Rio Grande do Sul é "a falsa sensação de segurança" dada ao longo dos anos pela bacia hidrográfica, que tem uma série de barragens para controlar a vazão dos rios.
"As cidades foram crescendo, as infra-estruturas foram aumentando, o contingente populacional também foi aumentando e quando o rio acaba por transbordar, encontra mais elementos do que encontraria outrora: casas, prédios, escolas, hospitais, postos de saúde. Depois do que aconteceu no Rio Grande do Sul, algumas cidades simplesmente foram varridas do mapa. Porque elas estavam em curvas de rios meandrantes, e quando o rio sobe muito, simplesmente corta o meandro. Ele passa por cima e encontra o caminho da água por outro local. A água não pede licença, passa por cima", salienta.
Nas últimas 24 horas, o número de desalojados quase duplicou para 411 mil pessoas, segundo dados da Protecção Civil brasileira.
Há agricultores que se queixam de ter perdido colheitas que ficaram até dois metros debaixo de água. E em algumas partes de cidades afetadas, o transporte de alimentos é feito em barcos através das ruas alagadas.
O abastecimento de água continua cortado e a água engarrafada potável é um bem escasso. Em muitos locais, as entregas aos abrigos e hospitais estão a ser feitas por camiões.
Apesar de considerar que a resposta das autoridades brasileiras tem sido lenta para antecipar este tipo de desastre, Rodrigo Lilla Manzione diz acreditar que "dentro do possível está a ser feito o que pode ser feito" e destaca o envio de um navio da marinha brasileira para a costa.
"Este navio tem a possibilidade de dessalinizar e fornecer água para as pessoas em volumes razóaveis. A população tem-se mobilizado para doar muita coisa: roupas, alimentos, e principalmente água, que é o que mais está a faltar. Apesar de o estado estar debaixo de água, as bombas, as estações de tratamento de água estão debaixo de água, então não conseguem trabalhar", descreve.
"Décadas de descaso"
A solução para fazer face ao que descreve como "décadas de descaso e de falta de investimento" é, para Rodrigo Lilla Manzione, apostar na contenção de desastres e no planeamento para no futuro minimizar o número de vítimas e os prejuízos económicos provocados por fenómenos climáticos extremos.
Por isso, este académico pede mais recursos e equipamentos para a protecção civil brasileira e defende que é preciso um plano federal, mas também planos estaduais e muncipais para criar resiliência nas comunidades mais vulneráveis, "com ações de curto, médio e longo prazo".
O especialista em recursos hídricos acrescenta que os cientistas e professores também têm um papel a desempenhar para passar a mensagem sobre as alterações climáticas, para que a população, incluindo a menos instruída, comece a perceber o que está a acontecer. Mas confessa que é difícil abordar estes temas na sociedade brasileira dado o clima político atual, muito polarizado.
"A situação não se resolve de um ano para o outro. É um trabalho de décadas. (...) O Brasil devia levar mais a sério as alterações climáticas. (...) Porque a questão não é se vai voltar a acontecer, é quando vai acontecer", conclui.