"Desde 2011 lutei para derrubar o ditador." Ativista sírio que esteve preso três anos defende que prioridade é Justiça renovada
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Ahmad Helmi tinha 21 anos quando a primavera árabe chegou à Síria. Esteve três anos nas prisões de Bashar al-Assad e exilou-se na Europa. O grupo que derrubou o antigo regime e está agora no poder não o preocupa porque para ele o essencial é iniciar um processo sério de transição para um novo sistema jurídico. Em entrevista à TSF contou como viveu o momento da queda do regime e as expectativas que tem quanto ao futuro.
Como foi o momento em que soube que Bashar al-Assad tinha fugido do país?
Desde 2011 lutei para derrubar esse ditador. Estive mais de metade da minha vida adulta à espera desse momento e penso que o meu corpo, a minha consciência e o meu cérebro não tiveram espaço suficiente para a alegria que senti.
Foi como se estivesse a flutuar.
Infelizmente não tivemos tempo suficiente para apreciar e comemorar. Foi uma vitória para os direitos humanos e para a humanidade. As pessoas estão agora a ver o que acontecia nas prisões sírias e o que está a ser revelado é menos de 10% da realidade. Foi uma vitória acabar com esse terror, mas não tivemos tempo para apreciar por causa do caos que se seguiu. Quando as prisões foram abertas, só entre 7 a 9% dos desaparecidos e dos prisioneiros foram libertados.
As famílias estavam à espera à porta em choque a gritar: onde estão eles, os nossos filhos, as nossas filhas? Já não há ninguém nas prisões, onde estão eles?
Foi um grande choque para as famílias. Até para mim que conhecia a realidade porque testemunhei a morte de muitos amigos na prisão, transportei os corpos deles e mesmo assim fiquei chocado. Desde esse dia as associações de sobreviventes e de familiares temos estado a trabalhar para apoiar os que foram libertados e as famílias. Estamos também a tentar proteger as provas e as valas comuns para que não sejam atingidas pelo caos dos últimos dias.
Como foi no início desta revolução?
Bem, eu fui uma das pessoas que primeiro começou a organizar as manifestações pacificas na Síria. Pedíamos justiça, liberdade, democracia, responsabilização e dignidade.
O governo prendeu um dos meus amigos que estava na organização porque naquela altura era ilegal esse tipo de manifestações. Nós não tínhamos liberdade de associação. Ele foi preso e sob tortura confessou, revelou o meu nome e por isso fui para a lista dos mais procurados. Continuei a organizar manifestações pacificas. O nosso principal objetivo, na altura, era manter uma revolução sem violência porque para nós, como grupo e para mim pessoalmente, o pacifismo é quase uma identidade. Não é apenas uma tática ou um meio que se usa para se conseguir algo, é um estilo de vida. Durante algum tempo fomos bem-sucedidos, mas depois fui baleado por um atirador numa das manifestações. Durante 4 meses estive fora das ruas para me recuperar. Mais tarde, no final de 2012, eu estava a caminho da Universidade de Damasco. Havia um posto de controlo à porta e eles prenderam-me. Estive em 9 prisões diferentes no período de 3 anos e passei pelas coisas normais das cadeias sírias. A minha mãe, que é talvez uma das mulheres mais fortes do mundo, conseguiu libertar-me. Estávamos no final de 2015 e tive de fugir para a Turquia. Foi aí que criei uma organização de defesa dos direitos humanos para apoiar os sobreviventes recém-libertados.
A Ta'afi?
Sim. Foi criada principalmente porque eu não encontrei qualquer tipo de ajuda sistemática para sobreviventes de tortura e desaparecimento, também porque eles tinham o meu melhor amigo preso desde 2011. Eu estava à espera que ele fosse libertado e queria ter algo preparado para o receber, dar-lhe algum apoio até estar de novo de pé e pronto para se juntar aos que lutavam pela liberdade.
Depois ganhei uma bolsa de estudo e vivi em França durante um ano. Regressei à Turquia e há dois anos vim viver para os Países Baixos.
O seu amigo foi libertado?
Ele foi preso em 2011 e eu esperava por ele a toda a hora, todos os dias esperava uma chamada com informações. Quando estive detido a minha principal preocupação era saber onde ele estava. Perguntava a todos os prisioneiros e a minha esperança era encontrá-lo. Quando fui libertado continuei à espera, mudei-me para França em 2018 e recebi um telefonema do irmão dizendo-me que o meu melhor amigo foi morto sob tortura em 2013.
Saber o que aconteceu aos desaparecidos é essencial para o futuro da Síria?
Para mim o único caminho para a estabilidade é uma declaração de que haverá um processo sério de transição para um novo sistema jurídico em que as vítimas terão justiça, e os criminosos saberão o que lhes vai acontecer. Não vão viver com medo de que alguém os ataque na rua e os mate. Eles sabem o que fizeram, sabem que torturaram pessoas e que as que sobreviveram vão querer vingar-se. Em vez disso, de vingança, eles têm de saber que haverá um processo legal e a punição será decidida num julgamento justo.
O facto de o grupo que está no poder ter estado ligado à Alcaida e ao Estado Islâmico preocupa-o?
É claro que estou preocupado, mas não tanto com esse grupo. Eles têm tentado mudar. Até agora têm dito e feito as coisas certas, mas continuarei atento. A minha principal preocupação, no entanto, tem a ver com a coesão social do país e as tentativas de vingança.
Independentemente de quem estiver no poder, seja o Hayat Tahrir al-Sham, ou HTS, seja o grupo mais democrata e mais respeitador dos direitos humanos no mundo, isso não interessa se não houver um processo sério de transição para um novo sistema jurídico.
Também sei que os sírios perderam 14 anos de vida a lutar pela liberdade e ninguém lhes poderá tirar essa conquista. Mesmo que este grupo tente confiscar a liberdade do povo sírio, não vai safar-se. Se nós derrotámos uma terrível ditadura com 50 anos também podemos derrubar outra com um ano ou dois.
Disse numa entrevista que é muito importante para si dar sentido ao que lhe aconteceu. Pode explicar-nos essa ideia?
Bem, o conceito de justiça ou o conceito de satisfação com a justiça depende das pessoas. Para mim, é difícil explicar, mas os sobreviventes de tortura e as famílias perguntam-se muitas vezes como é que um ser humano pode torturar outro ser humano? Não faz sentido, é muito difícil de compreender. Eu estou a tentar encontrar a resposta para essa pergunta e também para outras. Porque é que eu fui libertado? Porque é que sobrevivi e os meus amigos não? A única forma de encontrar as respostas é tendo justiça e a única forma de dar um sentido a tudo é garantir que o que aconteceu comigo não vai acontecer com outros.
Está a pensar regressar a casa?
Para ser honesto ainda não tive tempo para pensar nisso. De qualquer forma, posso dizer, que preciso de ter a certeza que os desaparecimentos e a tortura fazem realmente parte do passado, não voltam a acontecer.
Eu estou fora da Síria há vários anos apesar de ter estado sempre a trabalhar nos problemas do país, mas o regresso será uma grande mudança e é preciso tempo para tomar uma decisão dessas.
O que é que a comunidade internacional, que durante anos ignorou o sofrimento dos sírios, pode fazer para os ajudar?
Volto a insistir na ideia. A comunidade internacional tem de apoiar um processo sério, liderado por sírios, de transição para um novo sistema jurídico. Sem isso não haverá estabilidade nem uma pacificação duradoura. O mundo terá também de ajudar a apanhar os criminosos de guerra que escaparam e levá-los perante a justiça.
Outra forma de ajudar é usar os bens desses criminosos, que estão retidos nos Estados Unidos, na União Europeia e noutros países, para apoiar as vítimas do regime.