Dez anos após os atentados, franceses lamentam “ameaça terrível” à liberdade de expressão e celebram a “resistência” pelos valores fundamentais
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O Estado Francês prestou, esta terça-feira, homenagem às vítimas do atentado ao Charlie Hebdo, numa cerimónia marcada pela simplicidade, no local do acontecimento, de há dez anos, em que participaram as mais altas figuras da República francesa.
A cerimónia contou com a presença do Presidente francês, Emmanuel Macron, do primeiro-ministro, e de François Hollande, que era o Presidente de França em 2015, à altura dos atentados que marcaram a sociedade francesa.
Centenas de pessoas quiseram associar-se às homenagens e esperaram pelo fim das cerimónias oficiais. Entre elas, há admiradores e amigos das vítimas. Esta tarde deslocaram-se ao n.º 10 da rua Nicolas-Appert, no 11.º bairro de Paris.
Jane Plas-Cousin tinha nove anos quando prestou pela primeira vez homenagem às vítimas do Charlie Hebdo, em 2015, no fim de semana após o atentado, no grande desfile que juntou mais de um milhão de pessoas nas ruas de Paris.
“Hoje tenho 19 anos e continua a ser muito importante para mim vir aqui. Estamos aqui pelo Charlie, estamos aqui pela liberdade de expressão, estamos aqui para dizer que, dez anos depois, ainda somos Charlie e seremos sempre Charlie”, afirma Jane Plas-Cousin, antes de depositar um ramo de flores que ela própria compôs.
“Trouxe flores porque achei que era importante. Estão aqui todas as flores azul, branco e vermelho dos chefes de Estado, mas penso que também é importante, enquanto cidadãos, mostrar que podemos estar presentes, seja pela nossa presença, pelas mensagens nas redes sociais ou mesmo através de flores. Acho que isso demonstra que ainda estamos aqui”, afirma Jane Plas-Cousin.
Dez anos depois dos atentados, Didier Hidjadi identifica na sociedade francesa um certo retrocesso na defesa de valores fundamentais. É um traço que, decorridos dez anos, persiste.
“Houve, por um lado, um grande momento de solidariedade, mas também, durante estes anos, houve um certo retrocesso em relação à defesa da laicidade e da liberdade”, afirma Hidjadi, fazendo questão de afirmar a sua “origem iraniana”, numa sociedade que quer caracterizada pelos “valores da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade”.
No 11.º bairro de Paris, onde se situa a antiga redação do Charlie Hebdo, diferentes pessoas lembram os caricaturistas como pessoas “muito amadas” na sociedade francesa, que “sempre estiveram presentes” em várias gerações. Laurance Lignaire afirma que parte das suas memórias de infância foi arrasada com o atentado. “Cresci um pouco com eles, porque agora tenho 54 anos e conheci o Cabu através do programa dele na televisão”, conta, afirmando agora com discrição que hoje cada um dos franceses expressa, como pode, solidariedade com as vítimas do Charlie Hebdo. Laurance “trouxe uma rosa branca; outros homenagearão de outra maneira”, afirma.
Severine trouxe cravos. “Não apenas cravos vermelhos, mas cravos de todas as cores. É uma forma de prestar homenagem aos jornalistas, aos desenhadores, enfim, à equipa do Charlie”, conta esta francesa, confessando que se inspirou nos “œillets rouges de la Révolution au Portugal”, e nas “fotografias magníficas” da manhã de Abril em Lisboa.
“Escolhi cravos pela dimensão política, porque acho que no Charlie existe, de certa forma, um pensamento algo revolucionário”, afirma.
Yves Bergé viajou de longe, “de propósito de Marselha” para testemunhar a homenagem aos caricaturistas vítimas do atentado ao Charlie Hebdo e para, ele próprio, prestar a sua homenagem.
“Estou muito emocionado por estar aqui, porque o Charlie Hebdo é uma arte de viver, é a arte da sátira, é a arte do humor, e eram pessoas, intelectuais, pessoas que defendiam a ecologia, que defendem o feminismo e toda a humanidade, portanto, foi a luz que foi assassinada pelo obscurantismo”, afirmou.
Dez anos depois, Hellene Marciano considera que a liberdade criativa e de expressão foram definitivamente abaladas. “É terrível, terrível. Há um medo terrível de nos expressarmos, de poder afirmar que se é contra isto ou contra aquilo”, admite, procurando um “aspeto positivo” na nova realidade.
“Mas isso também deu origem a atos de resistência por parte de artistas e de defensores da liberdade de expressão e da democracia, e isso também é algo positivo”, afirmou, esta terça-feira, no local dos acontecimentos de há dez anos, onde veio para homenagear aqueles que lhe eram próximos e eram os seus amigos que perderam a vida.
“Tignous foi uma das vítimas. Eu conhecia o Cabu e também o [Georges] Wolinski”, lembra Hellene Marciano, que agora recorda os anos em que partilhou com os autores do Charlie Hebdo a redação de um jornal satírico editado durante um festival humorístico da Córsega.
“O ambiente, o clima, a irreverência, a alegria, a ternura, a gentileza, a amizade, as gargalhadas. Sempre as gargalhadas, claro, rir de tudo, esse era o espírito Charlie”, lembra ainda.