O Sudão e a guerra. Ou apesar ou além dela. A arte moderna e contemporânea de artistas sudaneses. Ideia (também) de um português. A Brotéria, ao Bairro Alto, abriu-lhes as portas. Até 28. A TSF estende o microfone.
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Escreve no catálogo Mohammen Abdlerahman Hassan, historiador, crítico de arte e professor na Faculdade de Artes da Universidade de Al-Neelain, no Sudão: "Numa navegação imaginada com milhares de anos de história, que traça simbolicamente a ascensão e o declínio da civilização do Vale do Nilo, no Sudão, as obras incluídas nesta exposição refletem o desejo dos artistas sudaneses de contemplar e compreender um distúrbio que ameaça transformar-se em caos devastador".
Perturbação no Nilo. Disturbance in the Nile. Arte moderna e contemporânea do Sudão, que pode ser vista na Brotéria, ao Bairro Alto, em Lisboa, junto ao largo da Misericórdia (até dia 28 de julho, das 10 às 18 horas). Obras criadas durante a vivência da revolução de setembro de 2018, que afastou do poder Omar al-Bashir, que governo despoticamente o país durante décadas.
O trabalhador humanitário Pedro Matos (produndo conhecedor da região, com alguns anos de vida no Sudão), começa por dizer à TSF que quando começou a trabalhara no conceito desta exposição com o responsável da Downtown Gallery de Cartum (Rahiem Shadad), há cerca de um ano e meio, "a ideia era mostrar que, de facto, há mais do Sudão do que aquilo que é a imagem que chega ao mundo ocidental. Portanto, queríamos mostrar uma visão do Sudão, que é uma visão moderna de arte contemporânea, de artistas que não precisam de ser vistos como africanos para serem apreciados como arte contemporânea de nível mundial. E isto a propósito da revolução que aconteceu em 2019. Queríamos também mostrar como é que a arte muda antes e depois de uma revolução".
Na exposição de obras de nove artistas sudaneses representados na exposição na Brotéria, Matos destaca o facto de estarmos perante o trabalho de "duas gerações de artistas os artistas que pintavam durante o tempo do al-Bashir e os artistas que pintam depois da revolução, que têm todos 20 e poucos anos e descobriram a arte depois da revolução, constatando que podiam fazer uma vida de arte". O tema ganhou premência com o conflito em curso entre as duas fações militares que condicionam a vida de quarenta milhões de sudaneses: "Isto foi o conceito antes desta guerra e agora tornou se ainda mais premente falarmos sobre como é que alguns desses ganhos democráticos podem ser revertidos". Porque por causa daquilo que está a acontecer agora no país, muito do que foi ganho corre o risco de se perder, já está a ser perdido ou já foi, efetivamente, perdido: "Em termos de ateliês, que foi quase tudo perdido. Quase todos estes artistas são agora refugiados fora e perderam quase tudo. Há uma série de artistas aqui, cerca de três, que as únicas obras que eles têm neste momento são as que estão aqui expostas. Porque a gente tirou as antes da guerra", refere o português que se notabilizou, ao longo da última década, em missões e operações do Prorgrama Alimentar Mundial das Nações Unidas.
Rashid Diab abriu o caminho para a profissionalização da arte sudanesa
Rahim, que tinha uma galeria com 1000 peças, mas a Downtown Gallery "foi ou saqueada ou ou destruída e, portanto, como para muitos deles, tem que recomeçar de novo. A grande questão agora é se os ganhos democráticos que os permite recomeçar de novo também vão ser revertidos ou se a abertura democrática foi uma espécie de caixa de Pandora e não é possível agora ser fechada". Pedro Matos afirma que "os sudaneses são um povo incrivelmente resiliente, é uma capacidade que eles têm. Durante estes 30 anos do al-Bashir, várias revoluções, várias guerras civis e sempre se levantaram e voltaram a construir de novo. É impressionante". Agora, em que moldes é que isso pode acontecer? "Não sabemos. Vai ser um processo mais parecido com o Afeganistão, em que muitos dos ganhos voltaram, foram revertidos? Não sabemos. Por exemplo, há muitas destas artistas que nós temos aqui, que são mulheres novas, muitas delas já andavam de cabeça descoberta. Agora, estas pessoas saíram um pouco do armário, e portanto, revelaram-se como pessoas mais progressistas. E se a velha ordem voltar, estas pessoas estão de facto em condições muito diferentes para poderem voltar a fazer o trabalho que andavam a fazer".
Rashid Diab é um artista e teórico de arte árabe-africano, nasceu e cresceu no Sudão, foi viver para Madrid (galardoado com a Cruz da Ordem de Mérito Civil pelo então Rei Juan Carlos I) onde concluiu a tese de doutoramento intitulada O Tradicional e o Contemporâneo na Arte Sudanesa, mas regressou ao país natal nos anos noventa do século passado. Já exibiu a sua obra em todo o mundo, do Cairo a Abu Dhabi, do Barhein a Taipei. Influenciado pela arte espanhola, a sua arte "cria imagens abstratas com uma profundidade mística". Na conversa com a TSF, mostra algum pudor em explicar o seu trabalho: "para isso, teria sido escritor ou crítico". Aponto-lhe a obra à entrada da sala na Brotéria, When the sky falls: "Este é o foco. Este é o centro do mundo em que as pessoas vivem. Mas os meus quadros saem do sítio onde vivem e pensam. É o campo com as diferentes partes do espaço espalhadas. É uma metáfora do espaço que controla as pessoas, que fazem o espaço que tem de fazer parte das pessoas, mas não faz. As pessoas estão agora a viver fora das fronteiras de que necessitam". As pessoas alienadas do seu espaço? "Sim, sim, exatamente. Quero dizer, estas pequenas características aqui, figuras pequenas, de tamanhos diferentes, quero dizer, que se esvaem, estão a desaparecer do centro, não é?"
Já é possível viver da arte no Sudão
Como é ser um artista no Sudão? E como tem sido ao longo dos anos? "Bem, depende", atira o pintor e artista de 76 anos. "Agora o artista tem modelos mais aceitáveis para a sociedade para ser um artista performativo ou plástico. Mas antes era um verdadeiro problema, porque ninguém sabia de que tipo de trabalhos o artista podia viver. Quer dizer, ninguém comprava pintura e nenhum artista profissional podia viver do seu próprio trabalho", afirma enquanto percorremos a exposição em passo apressado, que a agenda não lhe dá tréguas, mesmo que a milhares de quilómetros da sua Cartum.
Não era fácil, nos tempos da ditadura de Bashir, uma família ouvir o filho dizer que queria ser artista: "as famílias querem que eles tenham uma vida segura e que tenham um trabalho e um futuro e que isso lhes permita ter dinheiro para viver em boas condições". Mas, admite, "agora as coisas estão a mudar. Quero dizer, as pessoas estão a começar a aceitar a ideia de ser um artista, um artista profissional". Diab afirma que, após 2019, depois da revolução, "as coisas estão a mudar muito na sociedade, mas especialmente na arte. Como foi dada uma oportunidade aos artistas de se começarem a expressar durante a própria revolução, fazendo pinturas murais, isto deu mais oportunidade aos artistas de trabalharem com um tema que está realmente relacionado com toda a população. E é muito importante para o país, pois muda a mentalidade dos militares para perderem o poder e não para continuarem a governar o país. Isto faz com que as pessoas estejam mais conscientes da importância da arte para a sociedade. Os artistas que estão a viver da arte no Sudão começaram a mostrar o seu trabalho mais livremente". Vira-se para o lado: "como aqui o nosso amigo Rahiem . Ele começou a trabalhar depois da revolução e é mais aceite do que antes a ideia de ter um espaço só para a arte e expor e partilhar o conceito e as ideias com as pessoas".
Yafil Mubarak é também artista, manager, além de filho de Diab. Explica que a série Out of Focus, fora de foco, "está também a tentar mostrar a história das mulheres no Sudão. Durante a história do país, as mulheres têm sido privadas de direitos. E são elas que, na maioria dos casos, suportam o fardo da migração. E o Sudão é um país de migração. Como se pode ver, as pessoas estão a migrar, entrando e saindo de espaços em tempos diferentes, deixando espaços que se encontram uns aos outros". Ou seja, uma forma de contar a história das mulheres que suportam essa frente de migração, uma vez que "os homens normalmente ficam a lutar ou a guardar áreas e coisas do género, e as mulheres têm de se deslocar, por vezes, para fora dos campos ou para diferentes províncias em diferentes áreas. E também a ideia de que, no Sudão, são as mulheres que dão cor à nossa vida. Em certos países, o vestuário masculino é sempre branco, com duas pernas, enquanto as mulheres são multicoloridas. É realmente um espetáculo, e podemos ver grupos de pessoas a deslocarem-se no deserto, de um lugar para outro, mas levando consigo estas cores vibrantes".
Uma diversidade cromática retratada não apenas na dimensão artística. É, também, uma realidade: "Sim. E é também um estudo de como a luz está a afetar os diferentes corpos que se movem em distâncias, perspetivas a serem tomadas, perspetivas lineares, na distância, e também o movimento do tecido em si, como ele cai dos ombros ou como está fixo, com cada movimento; como as mãos movem o pano. Por isso, é um estudo do movimento da vida de cor e está também a fazer uma espécie de justiça histórica às mulheres do Sudão, de certa forma". Vê no pai "um artista muito prolífico. Trabalhou muito, e em muitos países. No Sudão é muito difícil. O mercado é muito pequeno, mas o Rashid é um dos poucos artistas veteranos que realmente regressaram ao Sudão, pois muitos deles foram para Paris, Londres, Espanha, onde é mais fácil vender obras e onde há um público maior e mais se aprecia a arte".
Em 1999, Diab regressou ao Sudão com a missão de mudar o mundo da arte no país. Abriu a primeira galeria de arte profissional do Sudão e, cinco anos mais tarde, o seu próprio centro de arte, "um projeto sem fins lucrativos". Ao contribuir decisivamente para mudar a cena artística sudanesa, o próprio Sudão também lhe permitiu viver da arte: "as pessoas podem ver o seu trabalho, o que ele faz, e tem um espaço para ele. Isso é uma coisa que eles não tinham antes, no Sudão, não havia espaços. Por isso, Rashid abriu o primeiro espaço e, depois disso, abriram-se mais espaços e vendeu-se mais arte. Mas ele também tem um nome muito internacional, basicamente, ele abriu o caminho. Antes dele, as pessoas expunham em casas particulares, hotéis e coisas do género. Mas foi só nessa altura que as galerias começaram a abrir, no início dos anos 2000".
A diversidade temática e geracional da arte sudanesa
Rahiem Shadad é, juntamente com o português António Pinto Ribeiro, o curador da exposição: "este projeto é a primeira colaboração internacional da galeria Downtown com uma entidade externa e quisemos mostrar uma variedade de artistas que representam vários géneros de arte, mas que, ao mesmo tempo, também refletem diferentes gerações e diferentes formas de expressão. De uma forma ou de outra, isso dá-nos uma perspetiva das mudanças que aconteceram no Sudão nos últimos 30 anos, durante a revolução e depois da revolução". Foi uma das razões pelas quais, nesta exposição, optaram por trabalhar com vários grupos etários: "há uma forma muito diferente de expressar as ideias dos artistas durante o tempo do regime, que foi um tempo muito cheio de repressão, limitação, eliminação de obras e literatura e também de muitos arquivos. E houve uma enorme luta com a identidade que o regime estava a impor a toda a gente. Por isso, as obras são muito coletivas, falam de ideias muito coletivas e de pensamentos muito coletivos". Quando aconteceu a revolução que depôs al-Bashir, e após a revolução, "houve mais experimentação, as pessoas começaram a olhar para si próprias, a refletir sobre si próprias, sobre o que estavam a pensar, como querem que o país seja governado, qual é a sua opinião política. Assim, desenvolveu-se uma abordagem muito individualista em relação à forma de expressão". Neste sentido, as obras de Rashid Diab acabam por funcionar mais como são uma memória pública. Já Eltayeb Dawelbait exprime o guarda-chuva árabe africano que realmente envolve o povo sudanês: "somos africanos, mas falamos árabe e somos muito influenciados pela cultura árabe, Rasheed Diab também, tal como as paisagens e a mulher, que são os seus temas de pintura", afirma o jovem curador.
Shadad afirma que, na exposição, "quando olhamos para a geração mais jovem, por exemplo, Yasmin Abdullah ou Waleed Mohammed ou Reem Al Jeally, que pinta literalmente a partir do que ela sente no seu espaço pessoal, é uma conversa muito diferente. Waleed Mohammed, por exemplo, com as pinturas a preto e branco, está a pintar a sua memória pessoal. Por isso, estuda fotografias da sua família e tenta encontrar-se a si próprio nessas fotografias. Boakri Moaz também pinta mulheres, mas é uma abordagem completamente diferente. Ele está a pintá-las porque está a tentar refletir a sua própria busca de espiritualidade. Quando se é uma pessoa moderna e se é tão influenciado pelo globalismo, mas se vem de uma família conservadora, como é que se encontra o equílibrio? Como é que eu encontro quem sou, quando tenho isso em casa, mas tenho outra coisa no espaço público? Portanto, é uma abordagem muito diferente. A linguagem visual pode ser semelhante, mas a mensagem é muito, muito diferente. Por isso, tentámos mostrar tudo isso através desta exposição".
A arte e a nova guerra civil que não é civil
A galeria da baixa de Cartum, Downtown Gallery é, para além da parceria internacional para esta exposição, um projeto. Partindo do princípio de que as coisas não estão bem neste momento, em que há de novo uma guerra em curso no Sudão, qual é o futuro previsível para estas formas de expressão e para uma atividade que esteve a florescer nos últimos anos? "O nosso objetivo é tornarmo-nos um instituto ou uma entidade que comunique as mensagens do Sudão e a missão do povo sudanês no mundo. E esta exposição é uma delas. Infelizmente, por causa a guerra que tem acontecido, não temos notícias do espaço e da obras de artes que estão dentro dele. Perdemos a comunicação com qualquer pessoa na zona de Cartum onde se situa a galeria, desde o dia 26 de abril. Não sabemos o que se passa com a galeria. Mas penso que isto ainda cria uma necessidade mais urgente de continuar este projeto". Rahiem diz que não tem informação, não recebe notícias nem sequer das pessoas vizinhas da galeria: "não há ninguém, não está lá ninguém lá. É uma cidade fantasma. Fica a menos de um quilómetro do Aeroporto Internacional de Cartum. Portanto, o primeiro sítio a ser atacado durante a guerra foi o aeroporto. Por isso, foram imediatamente evacuados. Atualmente, não há civis. Aliás, não é uma guerra civil, porque não há combates entre civis. Só há militares. Os civis não estão envolvidos em nada disto. Acho que também não é a agenda dos civis. A maioria dos sudaneses, se perguntarmos a alguém, ou se ouvirmos as suas conversas nos cafés e restaurantes do Cairo para onde foram, nenhum deles está a falar da agenda de al-Buhran ou de Hedmeti como sendo a agenda deles próprios. Eles lutam por causas que não estão relacionadas connosco. Portanto, a situação no terreno, neste momento, é a de militares a lutarem entre si e, em Cartum, especificamente, é a RSF. Há tantos membros da RSF, as forças de reacção rápida de Hedmeti...
Não qualquer espécie de equílibrio militar no terreno, na capital sudanesa, na opinião de Rahiem Shadad: "se estamos a falar especificamente da cidade de Cartum, não é nada equilibrado, as RSF estão realmente em todo o lado, em espaços públicos, não apenas nas casas. O exército está a usar a ideia de que as RSF estão dentro das casas como uma forma de dizer que não podem atacar as RSF. Mas, na realidade, eles estão nas casas, nos hospitais, nas escolas, mas também nas ruas. Toda a gente que eu conheço que saiu de Cartum disse que se deparou com postos de controlo dirigidos pelas RSF. Toda a gente".
A arte da resiliência made in Sudan
E os seus pertences e casa em Cartum? "Tudo foi destruído ou saqueado. Foi especificamente no dia 26 de abril, quando eles vieram a nossa casa. E então roubaram dois carros, que são os carros da minha mãe e da minha irmã. Roubaram televisões, roubaram um telemóvel. Roubaram algum dinheiro, mas não muito, menos de 1.000 dólares. Basicamente levaram todas as coisas que podem ser facilmente vendidas. Acho que levaram os carros para poderem ter algo para transportar o que quer que fosse que levassem; quer dizer, não é possível transportar televisões e correr com elas".
Acredita, no entanto, que quando a crise acabar, vai voltar a abrir portas: "penso que o que alcançámos não se pode perder tão facilmente. E o povo sudanês tem demonstrado sempre uma enorme resiliência. Passámos por muitas perturbações (risos). E sempre saímos delas de uma forma ou de outra. E... é a única opção. A única. Somos 44 milhões de pessoas, não podemos ir para mais lado nenhum".