Do ativismo ambiental ao ativismo humanitário: a sustentabilidade em tempos de guerra na Ucrânia
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A guerra na Ucrânia parece não ter fim à vista. Continuam a morrer pessoas, continuam a ser destruídas casas e aqueles que conseguem sobreviver continuam a passar fome e muitos não têm um lugar para viver. A par das consequências humanas, também a sustentabilidade ambiental do país é colocada em causa. Em tempos de guerra, como é que a Ucrânia encontra tempo para pensar no ambiente? O ativismo ambiental transformou-se em ativismo humanitário? O plano ambiental e humanitário andam lado a lado? A TSF conversou com Iuliia Markhel, ativista ambiental e social e fundadora da Organização Não-Governamental (ONG) Let's Do It Ukraine, que esteve em Portugal para participar no Encontro Nacional de Limpeza Urbana, que decorreu entre 12 a 14 de dezembro, em Cascais.
Antes da gravação da entrevista começar, o telemóvel de Iuliia toca sem parar. Com as lágrimas nos olhos, a ativista explica à TSF que aquele é o som que alerta para ataques aéreos na Ucrânia. Mesmo fora do país, o telemóvel não pára de tocar.
A Let's Do It Ukraine, a ONG da qual Iuliia é fundadora, desenvolve missões humanitárias e ecológicas desde 2014 com a ajuda de milhões de ativistas por toda a Ucrânia. "Fazemos programas especiais para cada pessoa, para os jovens e as famílias. Pensamos em como construir o nosso ambiente hoje e o nosso ambiente para o futuro. Fazemos reciclagem e limpeza urbana em todo o nosso país. Tentamos transmitir vibrações positivas para todas as pessoas, porque percebemos que temos de nos preocupar com o nosso planeta, o futuro. É para nós e, claro, para as gerações futuras", afirma.
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Um "ecocídio" na Ucrânia: "O ambiente não tem fronteiras"
Tudo mudou a 24 de fevereiro de 2022 quando a Rússia invadiu a Ucrânia. Iuliia fala em "ecocídio". "É um grande problema, porque os nossos ecossistemas estão a ser destruídos e precisamos da ajuda de todas as pessoas do planeta, porque nós não conseguimos reconstruir os ecossistemas. O ambiente não tem fronteiras. Tem a ver com o oxigénio, com os oceanos, com a água, com a comida, com a nossa vida e duração da nossa vida em conjunto neste planeta. É por isso que é muito importante que cada pessoa perceba que pode e deve ajudar-nos a reconstruir a equilibrar este ecossistema", considera.
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Como é que o mundo pode ajudar a Ucrânia no plano ambiental e ecológico? "Para já, comecem por fazer algo pelo planeta, não deitem lixo para o chão. Sejam responsáveis, reciclem. Ajudem as nossas florestas."
Os ataques de mísseis e drones por parte da Rússia têm diversos impactos na sustentabilidade ambiental da Ucrânia. "Nos primeiros três meses após o dia 24 de fevereiro de 2022, a situação era muito má em termos de lixo. As nossas estradas foram destruídas, há muito lixo e também há lixo de guerra."
As consequências ambientais desta guerra não afetam só a Ucrânia. Espalham-se pelo mundo, garante Iuliia. "Se olharmos para o mundo, o ecossistema é a nossa comida, a nossa água, o nosso oxigénio. E o que aconteceu no meu país, a Ucrânia, passadas cinco ou dez horas vai acontecer em todos os países. As pessoas precisam de perceber que o que está a acontecer é um problema nosso, mas é um problema nosso que afeta as pessoas de todo o mundo."
A explosão da barragem em Nova Khakova, no leste da Ucrânia, a 6 de junho deste ano, é um dos episódios mais marcantes para a ativista. "Foi um dos maiores ecocídios da Europa. Cinco metros de água percorreram mais de 100 quilómetros e inundaram 80 aldeias e cidades. Milhares de pessoas e animais foram afetados. O lixo dos aterros sanitários, das estações petrolíferas e das fábricas espalhou-se por todo o lado. O Mar Negro e o oceano ficaram poluídos com muitos metais tóxicos."
"Como vamos reconstruir este ecossistema, como vamos limpar esta água? Como é que podemos ajudar as pessoas? Temos de fazer desinfeção, controlo de pragas, secas as casas. Sessenta mil casas foram destruídas. E não temos abrigos. É por isso que as pessoas voltaram para as suas casas e vivem com este problema depois deste crime ecológico", lamenta, sublinhando que a Ucrânia precisa de "mais 50 ou 70 anos para uma vida sustentável e responsável, para equilibrar o que aconteceu".
Limpar ruas e reciclar em tempos de guerra
Tendo em conta o cenário devastador, a Let's Do It Ukraine "ativou" todos os cidadãos para "limparem as ruas e ajudarem-se uns aos outros". "Muitas pequenas e grandes empresas de reciclagem trabalham agora na Ucrânia e, em conjunto com o município, com os meios de comunicação social, com as empresas, com o governo, com os cidadãos, criámos o nosso hoje", diz, adiantando que, em 2023, 286 mil pessoas participaram em ações de limpeza na Ucrânia. "Desde crianças a idosos. Acordam de manhã cedo e limpar o território. E não o fazem só num dia, fazem-no todos os dias."
Há pessoas a morrer na Ucrânia todos os dias. Por isso, as preocupações da ONG não se restringem à sustentabilidade ambiental. Aliás, Iuliia assegura que, em tempos de guerra, é fundamental encontrar o equilíbrio e "combinar" o ambiente com a parte humanitária.
"Na nossa organização, temos cerca de 50% para o ambiente e 50% é sobre ajuda humanitária, porque todos os dias as pessoas precisam de comida, precisam de água, precisam de roupa, e, claro, de um sítio para dormir", refere.
A ONG monitoriza a poluição, a água, o lixo das praias, mas também entende que "não há muitos sítios para descansar no país". "Temos de compreender que na Ucrânia as pessoas não dormem há dois anos."
Iuliia explica que, agora, "há um protocolo de segurança muito grande" na Ucrânia. "Não é mais uma limpeza normal, é sempre com seguranças, com a polícia, com ambulâncias, porque o nosso lixo está misturado com o lixo da guerra".
Os ativistas e voluntários são, desde logo, informados sobre os protocolos para que as ruas possam ser limpas em segurança e Iuliia garante que há especialistas em todos os locais, que também ajudam nesta missão.
"Quando há um alarme de ataque aéreo, temos de nos esconder. É a nossa vida. Paramos tudo o que estamos a fazer e depois volta-se atrás. É assim que fazemos as limpezas nas ruas. É uma experiência muito importante para a humanidade perceber como, num território perigoso, podemos ajudar o planeta e podemos ajudar-nos a nós próprios", considera.
Em Kiev, diz Iuliia, há "muitas estações e pontos de reciclagem". "Temos uma aplicação móvel especial, onde verificamos tudo o que acontece no país em matéria de ambiente."
Foi criada também "uma grande plataforma nacional" que ajuda os cidadãos a perceberem onde estão os pontos de reciclagem. "Quando as pessoas vêm à estação e colocam o lixo, recebem dinheiro de volta nas suas faturas", indica, ressaltando a "importância" desta "cultura ecológica e forma de fazer reciclagem" para que as ruas fiquem sem lixo.
"Não podemos fazer algo apenas ambiental": juntar a sustentabilidade ao ativismo humanitário
Já no plano humanitário, a ONG fundada por Iuliia trabalha para "dar comida, higiene e roupa" às pessoas.
"Todos os dias o exército russo destrói os nossos edifícios. Todos os dias morrem pessoas. E todos os dias, os nossos filhos e a nossa família precisam de ajuda", vinca, lembrando uma iniciativa em que conseguiram distribuir 33 mil refeições quentes por dia.
"Há pessoas que não têm luz, não têm água, não têm nada. Estamos sempre a pensar em como podemos reunir o nosso poder com todas as organizações e todos os municípios, porque temos poucos recursos, mas temos de ajudar toda a gente. A guerra ainda hoje não parou", argumenta.
Questionada sobre se o ativismo ambiental se transformou em ativismo humanitário, Iuliia é clara: "Sim, são a mesma coisa. Tem a ver com a vida. Tem a ver com as pessoas. Tem a ver com o ambiente. É a mesma coisa, agora só temos de nos ajudar uns aos outros, ajudar o nosso planeta e não podemos fazer algo apenas ambiental. Porque nós vivemos dentro dele."
Sobre o futuro da Ucrânia, tanto em termos ambientais como humanitários, a ativista realça que são precisos "muitos recursos para reconstruir o ecossistema". "A Ucrânia é um país que ajuda a fornecer alimentos a muitos países em todo o mundo, mas atualmente não podemos utilizar 30% do nosso território para preparar alimentos para o mundo. É hora de nos unirmos a todos os países, construir com todos os povos e compreender que o ambiente não tem fronteiras", remata.
