"É a primeira vez que estamos a ver um genocídio em direto." Cirurgião que esteve em Gaza "surpreendido" porque maior parte dos pacientes eram crianças
Em entrevista à TSF, o médico grego diz-se surpreendido pela quantidade de crianças entre as vítimas e a falta de comida, mas também o que lhe passava pela cabeça quando a luz falhava a meio de uma operação. Apesar do que viu, quer voltar ao enclave palestiniano
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Cirurgião-chefe e professor na Universidade de Nicósia, Christos Georgalas voou da Grécia para Gaza, onde esteve como voluntário pela organização Ajuda Médica para os Palestinianos (Medical Aid for Palestinians, em inglês) de 21 de abril a 21 de maio. O médico trabalhou no hospital Nasser, em Khan Younis, a segunda maior unidade de saúde na Faixa de Gaza depois do hospital Al-Shifa.
Agora de regresso ao seu país natal, Christos Georgalas conta à TSF o que viveu durante um mês, num território que descreve como um “campo de concentração” onde civis não têm “fuga possível” e “podem ser atacados a qualquer momento”.
O cirurgião já exerceu em hospitais na Grécia, no Reino Unido e nos Países Baixos, e ainda na guerra do Kosovo, mas assinala que o que encontrou no hospital Nasser foi inédito em 20 anos de carreira.
Porque é que quis ir para Gaza?
Para ser sincero, como todos nós, estava a ver as notícias e senti que o que está a acontecer é provavelmente o evento mais sério das nossas vidas. É a primeira vez que estamos a ver um genocídio a ser transmitido [pelos meios de comunicação]. Senti que era o meu dever como ser humano, mas especialmente como médico, tentar ajudar.
Esteve no hospital Nasser, o que viu?
Eu não esperava ver tantas vítimas e feridos, e o que mais me impressionou foi que a maior parte dos meus pacientes eram crianças, entre os 8 e os 11 anos.
Em 20 anos como cirurgião-chefe, nunca vi tantos casos de trauma como vi neste último mês em Gaza. Por dia, eu via cinco ou seis crianças com fraturas no crânio, queimaduras no pescoço ou ao longo do corpo.
Também me surpreendeu a incrível falta de comida. Quando havia feridas que esperava que sarassem em pouco tempo, elas demoravam e às vezes desenvolviam-se infeções com pus. Este é um resultado de má nutrição.
Nem nós, os médicos, éramos imunes a esta falta. A única comida que tivemos foi só arroz, ao almoço e ao jantar, durante um mês. Não vi fruta, não vi vegetais. E nós tínhamos sorte, porque a comida era-nos dada pela organização World Central Kitchen, mas era só para os trabalhadores do hospital.
Como eram as condições de higiene do hospital?
Eram limitadas. No hospital havia acesso a água quente, mas o fornecimento de água não era limpo. A minha organização deu-nos uma garrafa de água com um filtro, para filtrarmos a água antes de a bebermos, mas claro que nem toda a gente tinha acesso a água limpa em Gaza. Claro que esta possibilidade não era algo que estava disponível para toda a gente em Gaza, por isso o acesso a água limpa era limitado.
Como sabe, a maioria das infraestruturas para distribuição de água foram destruídas, por isso, há problemas com a filtração da água. Havia eletricidade no hospital por causa dos geradores, mas, se eu olhasse para fora do hospital, à minha volta só via escuridão total.
Mas a eletricidade nunca falhou no hospital?
Falhou, sim, e às vezes estávamos no meio de uma cirurgia.
O que é que lhe passava pela cabeça, quando estava numa operação e falhava a luz?
O primeiro instinto é sentir vulnerabilidade, medo e impotência. Não há nada que possas fazer. Felizmente, estamos a trabalhar com médicos palestinianos. O que para nós é inexperiência, para eles é a realidade com que têm lidado nos últimos dois anos.
Mas o que é que fazem quando falta a eletricidade?
Há mecanismos manuais a que podes socorrer para que o paciente continue a respirar, mas só funcionam durante alguns minutos, não mais. O horror era “e se o gerador falha? E se a eletricidade demora a voltar?” É difícil, mas os médicos palestinianos já têm formas de lidar com estas situações e, nestes casos, temos de os seguir e fazer o que eles fazem.
É por isso que continuo a dizer: isto não pode ser chamado uma guerra, não é entre soldados, isto são ataques aleatórios a civis que estão num campo de concentração sem fuga possível e onde podem ser atacados a qualquer momento.
Como era o seu dia a dia em Gaza?
Para questões de segurança, todos os médicos estrangeiros viviam no hospital, no 4.º andar. Havia um quarto com 30 camas para médicos homens e outro quarto para as médicas. Não temos permissão para sair do hospital, em nome da nossa própria segurança. Em teoria, o hospital era o sítio mais seguro em Gaza.
De manhã, acordávamos, e, dependendo do dia, podíamos ver os nossos pacientes que não estavam nas urgências. Nos últimos 19 meses, só os utentes que vinham pelas urgências é que foram operados, por isso, tínhamos muitos pacientes com tumores ou doenças crónicas... e depois tudo isto era interrompido no momento em que havia um alerta. Aí, tínhamos de correr para as urgências.
Por isso, dependia. O que era constante era o som das bombas. As janelas mexiam-se, ouvíamos também as portas e as paredes a mexerem-se a cada cinco a dez minutos quando havia explosões. A Faixa de Gaza é um território pequeno, por isso, mesmo que uma explosão acontecesse a cinco ou dez quilómetros de distância, sentias que acontecia mesmo ao teu lado. Isto era contínuo. No início era assustador, mas, passados alguns dias, já nem reparavas.
Com tudo o que se passou, desenvolveu algum trauma?
Para ser sincero, o que me protegeu foi que não me sentia impotente e isso funcionava como um escudo e um mecanismo de defesa. Pensas que pelo menos tentaste ajudar. E, depois, os nossos colegas palestinianos são uma inspiração. Eles passaram por muito pior do que nós e continuam a trabalhar, a ser pais, mães, a estudar e a querer ser melhor.
Mas agora que voltou para a Grécia, que diferenças é que sente?
Sinto que gostaria de voltar a Gaza, que preciso de estar com os meus amigos e colegas.
Mesmo que isso signifique que possa morrer, quer voltar?
Até agora não houve um médico estrangeiro a ser assassinado, claro que pode sempre haver um primeiro. Eu prometi aos meus colegas palestinianos que ia voltar e também lhes prometi que as coisas iam estar melhor quando eu voltasse. Por isso, espero por um cessar-fogo e, quando isso acontecer, uma das primeiras coisas que vou fazer é voltar. Eles precisam mesmo de nós e são pessoas fantásticas.
Posso perguntar porque voltou para a Grécia?
Eu também tenho família. Tenho dois filhos e uma esposa e tenho trabalho aqui, por isso, também tenho de cuidar da minha família.
