O impacto da guerra na Rússia, o fracasso militar e a atribuição de culpas, a perspetiva de uma revolução, a imagem perante o mundo pelo olhar de um homem que escreveu discursos de Vladimir Putin. Exclusivo TSF.
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Trabalhou no Kremlin em dois momentos, um com Putin a presidente nos primeiros mandatos, depois quando o líder russo foi primeiro-ministro e Medvedev era presidente... Hoje Galyamov é consultor político na Rússia e comenta a política nacional russa nos principais jornais diários de Moscovo como cientista político. Trabalhou também na administração pública e foi administrador adjunto da província do Bascortostão, localizada na parte sul dos Montes Urais, no leste da federação russa.
Abbas Galyamov, como é que se pode medir o impacto da guerra?
Mudou muito, mudou quase tudo, com exceção do nome do presidente, provavelmente. O impacto é grande. Agora, é difícil definir qual será o resultado final, pois o público russo está chocado tanto, as elites quanto o público em geral, eles estão chocados com o que está a acontecer. E quando as pessoas ficam chocadas, é difícil prever quais serão as suas próximas ações. Mas o que se pode dizer com certeza é essa falta de sucesso, porque obviamente, Putin com uma operação relâmpago, um blitzkrieg.
Obviamente, durante muitos anos, a propaganda russa exibiu a Ucrânia como um estado fraco, uma nação fraca, e a Rússia forte como uma superpotência. Portanto, ninguém na Rússia poderia esperar que a Ucrânia pudesse oferecer uma resistência tão forte. Portanto, há uma grande desilusão e uma grande deceção. A expectativa foi derrotada, dizem tanto as elites quanto o público em geral. O efeito de união em torno da bandeira é limitado, não é tão forte quanto se poderia esperar que fosse. E o sentimento de oposição está a crescer apesar de todas a repressão, que é cada vez mais forte. Até os leais ao Kremlin se sentem reprimidos.
Se falarmos em termos de consequências a longo prazo, o resultado final vai ser negativo para Putin, não importa o que aconteça, não importa se a guerra acaba ou se vai durar muito tempo, durante meses ou anos. Em ambos os casos, a única coisa que poderia legitimá-lo e fortalecer a sua posição, era a vitória rápida, decisiva, mas já não a tem. E obviamente, não veremos os objetivos das operações serem concretizados agora. Tornaram-se resultados locais. No início, eram gerais. No início de março, Putin disse que não descartava destruir a Ucrânia como país. Mencionou algo do género... "vamos pensar, se os ucranianos merecem o seu próprio estado", algo assim.
E obviamente agora ele já não pensa nisso, já não sonha em destruir todo o país ou mudar a liderança do país. Os seus objetivos agora são locais, ficará feliz em apanhar algo no leste do país para poder mostrar ao público russo. Porque, como disse, já existe uma grande desilusão. E se ele acabar com a guerra sem uma vitória, isso será um golpe final para a sua imagem de um homem forte, de um vencedor. É a única fonte de legitimidade que tem na verdade, é a fonte da sua presumível força, da sua capacidade de vencer os seus inimigos. Se, por fim, se descobrir que é um tigre de papel, isso levará a um grande aumento no sentimento de oposição, tanto entre os eleitores quanto no establishment russo.
Em dois anos, ele pode ter de enfrentar eleições reais, e se não ganhar a guerra, se não conseguir produzir algo que se assemelhe a uma vitória, algum troféu, realmente enfrentará sérios problemas em relação às suas reeleições.
Porque para poder superar o voto de protesto, ele deve conseguir mobilizar as elites de todas as fronteiras administrativas do país, e se ele é ilegítimo e ninguém pensa que ele é o verdadeiro vencedor, e sabendo que é muito perigoso desobedecer-lhe, o corpo administrativo, vai impedi-lo de conseguir falsificar as eleições. É bem possível agora. E se a Revolução começar, por causa das suas tentativas de falsificar as eleições, não está claro se o exército e a polícia estarão do seu lado. Porque obviamente, agora, pela primeira vez, nestes 22 anos em que ele é o presidente, ele enfrenta uma crise nas relações entre ele e o exército.
Anteriormente, o exército tratava-o como um pai. Era como o pai para eles, porque aumentava os seus salários, ao contrário do que eles tinham antes; eles eram absolutamente pobres nos anos 90. Antes de Putin chegar ao poder, eles tinham um estatuto social muito baixo na época.
Estavam destinados às margens da sociedade. E foi assim que Putin chegou ao poder, começou a financiá-los, colocou-os no topo da agenda. E eles ficaram sempre gratos até que esta guerra começou.
E agora o que aconteceu? Eles são derrotados. E têm que encontrar alguém em quem atirar a culpa. Alguém quem é responsável pelas suas falhas militares? Bem, definitivamente, eles não diriam, 'bem, somos nós. Estamos corrompidos, somos ineficientes. Então somos maus soldados.' Não vão dizer isso, nenhum exército o diria, não seria inteligente.
Não estamos a falar de uma classe intelectual. Eles não são capazes de autocrítica. Então, definitivamente, em todos os exércitos do mundo em tais situações, eles apontam para os políticos, culpam os políticos. Então, definitivamente, o mesmo vai acontecer agora, já está a acontecer.
Eles, os militares, já estão a culpar o poder político pelo que podem não estar a conseguir na Ucrânia?
Não há nenhuma indicação óbvia disso, do tipo... publicamente, é difícil dizer isso publicamente, sabe? Porque esta é uma sociedade muito repressiva agora. Não é só um regime autoritário, já está a tornar-se totalitário. Então não é que algum general tenha dito isso num jornal na TV. Mas a julgar pelo que ouvimos das pessoas de baixa patente, comunicações pessoais, há rumores sobre isso. Há muitos rumores, que se espalham nas redes sociais, sobre esse tipo de sentimento que aparece no exército. Agora, eles estão chocados, mas não é amplamente difundido, ainda. Tudo isso, o processo de pensar no que aconteceu, vai começar mais tarde, até agora, eles estão muito ocupados a travar a guerra, eles ainda estão a tentar arrebatar a vitória. Mas esse processo vai começar, eu tenho 100% de certeza que há uma lógica histórica que leva nessa direção e vai espalhar-se muito.
Quando se leva isso em consideração, suprimir a revolução, que pode acontecer em 2024, pode ser difícil. Pode ser um tipo de combinação de revolução popular com a tentativa de golpe empreendida pelo exército, algo como o que vocês tiveram em Portugal durante a revolução dos cravos, por exemplo. Também foi uma combinação de alguma escola de oficiais mais e o público em geral. Tivemos uma espécie do mesmo na Rússia em 1917 na Revolução de Fevereiro. Portanto, é um cenário bastante comum, na verdade, em países autoritários. Então, podemos ter algo assim, em 2024.
No entanto, tendo tudo isso em consideração, o Abbas mencionou o descontentamento da burocracia do sistema, mas o círculo restrito de Putin, militares de alta patente, gente com cargos de comando nos serviços secretos, alguns políticos como Lavrov, os chamados Silovicki... esses continuam com Putin?
Não, não podemos ter certeza de que eles ainda estão com ele, porque obviamente ele está a culpá-los por não serem capazes de derrotar os ucranianos. Acontece que eles não sabem fazer guerra, eles são tigres de papel. Então, obviamente, está zangado com eles; confiou neles, e na verdade, eles dececionaram-no.
Se ele soubesse disso, que não seriam capazes de uma Blitzkrieg, ele nunca teria começado. Então, eles dececionaram-no. Ele está furioso com eles. Ele está zangado com o FSB, com os serviços externos de inteligência. Todos eles eram responsáveis pelo que deveria ser o sucesso da operação, mas a operação não foi bem sucedida, pelo que todos são culpados.
Putin não começou a prendê-los e a demiti-los, só porque, se começar, será como uma admissão pública de que algo está errado. Ele está a tentar mostrar ao público russo que não, que nada está a correr mal. Tudo está de acordo com o plano, porque ele é o vencedor, ele não pode dar-se ao luxo de mostrar que está a perder. Então, deve estar a ter que conter as suas próprias emoções, a limitar-se e a controlar-se, senão tê-los-ia decapitado a todos.
Quais são os sinais políticos que poderíamos retirar da decisão do presidente de dizer ao ministro da defesa, para não tomar de assalto o complexo metalúrgico de Azovstal em Mariupol?
Eu acho que há muitos rumores sobre muitas pessoas a serem presas e há rumores sobre militares de topo e gente do FSB e da polícia de topo a serem presos às dezenas. Provavelmente, começou a repressão contra a hierarquia. Só que ele não está a fazer isso com figuras públicas como o ministro da Defesa, por exemplo. Mas com figuras de segunda categoria, menos públicas, já está a fazer isso. Então, definitivamente, quando ele está a fazer essa repressão. eles não lhe são mais leais. Então, tudo está a mudar no equilíbrio de forças entre as elites russas. Está a mudar agora.
E ele teme que não exista unidade militar e policial para isso, que eles simplesmente se recusem a fazê-lo. O Kremlin está a conduzir uma guerra em solo estrangeiro. Se for uma guerra difícil, rapidamente se torna ilegítima. Há muitos rumores de soldados e oficiais que se têm recusado a atacar. Eles não querem perder a vida só porque Putin não gosta da NATO. Como se a NATO fosse alguma coisa abstrata. Não, é algo concreto.
Se o inimigo atacar a sua própria pátria, você tem de proteger a sua própria casa. Essa guerra é definitivamente legítima. Nesse caso, os soldados estão prontos para lutar até ao fim. Não é como neste caso, em que foram para outro país, estão a destruir as suas vidas e as vidas das pessoas desse país. E só porque alguém tem medo da NATO... Sabe, esse tipo de pensamento. Claro que não seria assim no caso de ele ter tido muito sucesso, uma verdadeira blitzkrieg, e o militar não precisa de arriscar sua vida. Nesse caso, seria sim, Putin está certo, deveríamos ter feito isso há muito tempo. Mas no caso de você estar a arriscar a sua vida, você realmente começa a pensar uma e outra vez: 'porque é que eu devo fazer isso?'
Ele sabe disto, que eles não devem derramar muito sangue, pois podem perder o controlo sobre o próprio exército. E esta é a única razão pela qual ele parou. Acho que, no caso de Putin, não precisamos de falar, sabe, do valor da vida humana, do cuidar das pessoas. Depois de Bucha, não precisamos falar sobre isso. Portanto, há uma decisão tática justa de que ele deve manter a lealdade dos soldados perante o seu uniforme, de que não deve pedir-lhes para fazerem algumas tarefas realmente difíceis.
Não acha que pode ser apenas uma pausa? Uma pausa antes que uma decisão final de assalto seja tomada, para que a Rússia possa conquistar Mariupol e o Donbass e até mesmo o sul da Ucrânia antes de 9 de maio?
Bem, este assalto já começou. Agora, ele tentará conquistar o máximo que puder. E depois disso, dependendo do que capturar, ele vai declarar isso, que esse era o objetivo estratégico da operação e que conquistou a vitória. Finalmente, em última análise, tudo o que ele precisa é produzir algum troféu. Então, o que ele conseguir apreender, será declarado o objetivo da operação.
A longo prazo, podemos estimar os danos à imagem externa russa que esta guerra está a produzir?
Bem, definitivamente, este é um golpe mortal, a Rússia é realmente considerada agora um estado fascista. E essa é uma perceção que não é só externa, essa perceção é muito popular dentro do país, pelo menos 1/3 da população está a opor-se fortemente ao que está a acontecer. Sabe a letra Z que na Rússia é um símbolo da operação, eles estão constantemente a compará-la com a suástica nazi. Portanto, este é um nível baixo na imagem, tanto externa quanto interna.