"É uma guerra quase de corpo a corpo. Deixou de haver tática, a tática é dar o corpo às balas"
Um repórter português na linha da frente. Os horrores da guerra. A moral dos ucranianos que já foi melhor. De Chasiv Yar às portas de Bakhmut, passando pelas noites com roquetes em Kramatorsk. André Luís Alves conversa esta manhã com a TSF.
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André, tens andado nos últimos dias entre Chasiv Yar e Kramatorsk. Chasiv Yar fica a poucos quilómetros de Bakhmut. Que notícias é que te vão chegando sobre o atual momento dos combates em Baskhmut e como é que está a situação em Chasiv Yar?
Precisamente. Chasiv Yar fica a cerca de 15 quilómetros de Bakhmut e tem sido alvo de bastantes ataques, ou seja, há continuamente bombardeamentos. Nos últimos dias tem estado mais calmo, curiosamente, mas continua a haver sempre ataques com rockets, sobretudo com rockets, o que vai infligindo alguma destruição na cidade. O que os militares nos vão dizendo em relação à situação em Bakhmut é que realmente não está a melhorar. O combate tem sido bastante difícil. Há bastantes perdas do lado ucraniano. Mesmo um hospital muito perto Chasiv Yar, onde há um ponto de estabilização médica que vai recolhendo quem está ferido e quem faleceu na frente de combate, mesmo este hospital tem sido bastante atacado. Nós vimos a fachada e toda a frente do portão totalmente destruídas. Portanto, as forças russas sabem que ali será um hospital. O combate tem sido muito definido. Há linhas de limite, ou seja, a artilharia ucraniana onde consegue entrar consegue manter essa posição segura. De resto, Chasiv Yar é uma cidade também muito importante, porque tem uma quota muito mais elevada do que Bakhmut, portanto, está num alto e é ideal para colocar artilharia. Como nós temos visto, canhões D-30 de calibre 122mm que vão disparando sobre posições previamente definidas por drones em Bakhmut.
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Portanto, ainda há alguns pontos de resistência em que os ucranianos conseguem manter as linhas. Por isso é que nós temos visto grandes avanços do grupo Wagner nos limites da cidade. No centro da cidade tem sido diferente. Porquê? Porque o centro da cidade tem sido quase como guerra de milícias. E isto, pelo que eu percebi, tem sido muito complicado para os ucranianos, porque é um tipo de guerra que é quase de corpo a corpo. Deixou de haver tática. Ou melhor, a tática é precisamente dar o corpo às balas e portanto, isto também é muito complicado para os ucranianos. Estão a manter a cidade por questões militares e também por questões políticas. Creio que aqui, no fim de janeiro, houve alguma hesitação se a cidade ficaria para eles ou não. Entretanto, definiram que sim, que o que estão a perder militarmente é menos do que o que estão a ganhar, portanto, será fundamental para depois poder alavancar para a contra ofensiva na Primavera. Para já, em termos de movimentações, parece-me que nos arredores da cidade está tudo muito parado, porque a lama que nós temos à volta é uma coisa impossível, ou seja, é uma lama de uma viscosidade brutal e nem tanques... eu vi tanques a ficarem atolados. Têm que ser rebocados por outros veículos, porque é muito difícil de circular. Isto é a situação que eu creio que se vai manter durante pelo menos a próxima semana.
O carro que vi a ser rebocado na lama era o teu?
Sim, esse carro é o carro que estou a usar com um colega meu, fotógrafo polaco. E é um carro de 82. Um Lada dessa altura, portanto é um carro de tração traseira que na lama, quer dizer, faz pouco. Mas, apesar disso tudo, ele continua a andar e trouxe-nos a casa outra vez. Portanto, estas máquinas acabam por resistir, mas aquela lama é impossível. Temos de ser rebocados. E foi precisamente o exército que nos rebocou a nós e também a uma equipa de televisão ucraniana, porque carros que não tenham tração às quatro rodas, realmente não conseguem progredir, sobretudo nas subidas, porque começam a derrapar.
Sasha, o militar ucraniano com quem falaste que veio da linha da frente em Bakhmut, e que também podemos ouvir em TSF.pt, é o exemplo do mural elevado das forças ucranianas que aí resistem?
O que está a acontecer com a moral ucraniana? Eu devo dizer que já vi mais alta. Os ucranianos estão a tentar manter o controlo, a não desmoralizar, não "panicar", mas noto um certo pesar porque não estão habituados a terem tanta gente a morrer na linha da frente, diria eu. E isso nota-se. Ou seja, sorriem menos, têm um olhar mais pesado, têm a noção de que não vão desistir, muito longe disso. Se Bakhmut será para manter, vão mantê-la. Isso é claro. Mas não estão a sorrir como há uns meses atrás, diria eu.
É possível estimar quantos civis ainda possam estar dentro de Bakhmut?
Há cerca de três dias, tive uma troca de mensagens com um oficial militar ucraniano que me disse que estarão à volta de 600 pessoas. Eu confesso que achei o número bastante reduzido, mas também posso dizer que muitas das famílias que eu conhecia, que viviam na parte leste da cidade, muito junto ao rio, já foram todas evacuadas. Porquê? Porque eram famílias com mulheres, com jovens, algumas de 18 anos e ao primeiro contacto que tiveram com o grupo Wagner, perceberam claramente que as coisas podiam correr muito mal. Eu inclusive, estou a tratar de uma entrevista que fiz com eles, porque as histórias são realmente bastante difíceis. Ou seja, estamos a falar de situações de assédio, de tentativas de violação. Essas pessoas fugiram, essa família fugiu a pé, andou treze quilómetros a pé durante a noite para conseguir sair da cidade. Portanto, do lado ucraniano não está a haver muita organização para as evacuações, como houve no passado. Agora, como a cidade está o caos, sobretudo naquela zona junto ao rio, não há grande possibilidade. As pessoas têm que fazer as coisas por si mesmas. Agora, apenas seiscentos civis ainda na cidade é possível que seja um número real, porque muita gente foi saindo, porque a situação está mesmo muito complicada. É uma situação em que se arrisca a vida não todos os dias, mas a cada minuto que se sai à rua.
Alegadas dificuldades de relacionamento entre o grupo Wagner e o comando do ministério da defesa russo, de Serguei Shoigu ao general Gerassimov, poderão estar a prejudicar o avanço russo em Bakhmut? Isto é coisa que se fale por aí? Mas do lado ucraniano, também tem havido relatos de falta de apoio que os militares que ai estão na linha da frente nessa região sentem da retaguarda e isso pode justificar o descontrolo de que falavas...
Sim, há aqui vários pontos. Mas, precisamente, esta rivalidade ou o discurso de Yevgeny Prigozhin, o líder do grupo Wagner, que se queixou de falta de munição, que não estava a ser apoiado pela pela Federação Russa, etc. Claro que isso agora está a provocar uma maior dificuldade de progressão no terreno, porque precisamente não há tantas munições como houve há uma semana e meia, diria eu, quando o grupo Wagner estava a disparar loucamente. Ou seja, todos os avanços que nós vimos foram feitos à custa de banhos de sangue e de rajadas de metralhadora e de artilharia. Portanto, foi quase uma tentativa desesperada de avançar que funcionou, mas teve o seu custo. Agora, as tropas estão mais estagnadas. Do lado ucraniano, o que se sente é que, pelo que eu percebi, há 8000 efetivos do exército ucraniano na cidade, o que é um esforço controlado. A Ucrânia percebeu que podia explorar isto politicamente, que podia explorar esta cisão de Prigozhin com o Kremlin. E, portanto, eu acho - é a minha leitura - é que há aqui uma exploração política dessa fragilidade que pode estar a provocar baixas no exército russo e no grupo Wagner. E a Ucrânia está a explorar politicamente esta rivalidade, porque há aqui claramente um problema de vários galos na capoeira e os ucranianos perceberam isso. Eu creio que demoraram cerca de três semanas a fazer este esta mudança, mas claramente perceberam que politicamente isto era muito importante para a mensagem que passa para dentro da Rússia.
No lado ucraniano, como dizia, é um esforço controlado. Tem havido baixas enormes em militares de peso. Um deles Dimitro, conhecido por Da Vinci, que era do grupo de assalto dos Lobos, portanto, era uma personagem incontornável no exército ucraniano. Estiveram presentes no funeral o presidente Zelensky, o comandante geral das tropas, Budanov da espionagem. Portanto, estiveram todos na mesma praça no funeral. Portanto, isso para revelar que, por um lado, é um esforço controlado. Por outro lado, há pessoas de muita importância no exército ucraniano que estão a cair em Bakhmut depois da decisão de tentar manter a cidade.
E aí onde estás agora, em Kramatorsk, como é que se olha para o que está a acontecer na linha da frente? De alguma forma as pessoas sentem algo do género: "a seguir somos nós"?
Eu acho que não. Eu acho que ainda... ou seja, Kramatorsk tem sido fustigado por ataques pontuais, ou seja, na segunda noite que aqui estive - nós temos um apartamento que tem uma vista muito ampla para a cidade - e eu vi passar às 04h00, 04h30 da manhã, um roquete à minha janela, portanto, acordei com o barulho e depois vi a luz. Portanto, é uma cidade que é atacada pontualmente, ou seja, a tensão é mantida (pelos ataques). A cidade está muito, muito deserta comparado com aquilo que era. Não se sente tanta presença militar. Se bem que quando se vai aos poucos cafés que estão a funcionar com um horário mais alargado, estão cheios de militares e jornalistas. Portanto, é uma cidade que acaba por ser a última cidade segura. Konstantinivka tem sido mais atacada. Portanto, eu diria que Kramatorsk ainda está dentro do que se pode chamar uma cidade segura em termos de guerra. Mas ontem, por exemplo, eu lembro de ouvir as sirenes aí umas doze vezes durante o dia. E é assim, há sempre qualquer coisa que cai, pode ser um pequeno roquete, mas há sempre um fumo qualquer à distância. Portanto, é seguro em termos de guerra, mas é muito menos seguro do que Kiev ou Lviv, por exemplo.