Regressou de Cabo Delgado há pouco mais de 24 horas. Carlos Almeida é o Coordenador Nacional de Moçambique na ONG Helpo, que atua há mais de uma década no norte do país assolado pelo terrorismo. Entrevista na TSF.
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Depois de ter estado nos locais onde a organização não-governamental da qual é dirigente tem projetos no terreno - a Helpo trabalha em comunidades de deslocados, que chegam a ter centena e meia de famílias - Carlos Almeida teve oportunidade de visitar "os cinco centros de deslocados do distrito de Metuje, a cerca de 35 km de Pemba, onde o cenário é extremamente pesado; as pessoas que estão a fugir do norte da província, estão a concentrar-se naquelas zonas".
É certo que a ajuda, que era absolutamente escassa quando este dirigente falou, pela primeira vez com a TSF em março, entretanto chegou ao terreno, "com uma forte presença de ONG's, de agências das Nações Unidas, da Igreja Católica, nomeadamente de Dom Luís Lisboa, o bispo de Pemba, que tem tido um papel muito importante, também organizações da sociedade civil, empresários de Pemba que estão a dar um forte apoio", o que faz com que as pessoas não passem fome, mas, com o conhecimento que tem da realidade da região, Carlos Almeida afirma que "são demasiadas pessoas às quais esta ajuda não é suficiente".
O início do ano, com a época das chuvas, é na região, muitas vezes sinónimo de surtos de cólera, pelo que Carlos Almeida alerta para uma situação extremamente delicada, porque "as pessoas neste momento estão todas amontoadas, a viverem em palhotas que foram feitas pelas próprias famílias e essas condições são muito preocupantes".
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Do norte da província para Pemba, milhares de pessoas começam já pegar na trouxa e zarpar. E não é porque esteja demasiado evidente o receio de que a violência armada dos extremistas chegue à própria capital provincial, Pemba, mas "estão a sair para outras zonas do país, muitas famílias estão a deslocar-se para Nampula, e outras que chegam mesmo até à Zambézia, porque sabem que estão numa zona onde há uma acumulação de centenas de milhar de pessoas, as condições de sobrevivência são escassas e as pessoas tentam ir para zonas onde se consigam integrar melhor na sociedade".
Alguma imprensa moçambicana noticiou segunda-feira que o Malawi vai enviar ajuda militar a partir de dia 15, a Tanzânia e o governo de Maputo também chegaram a um acordo para um esforço militar conjunta; na última reunião extraordinária da União Africana, Angola defendeu que o "combate ao terrorismo exige ações coletivas". Os EUA enviaram a Maputo o coordenador para o contraterrorismo no Departamento de Estado, o embaixador itinerante Nathan Sales, que se reuniu na passada quinta-feira com o presidente moçambicano Filipe Nyusi e afirmou que Washington está preocupado e pretende uma abordagem conjunta ao "desafio do terrorismo". Carlos Almeida vê "com bons olhos esta abertura do governo moçambicano para poder pedir ajuda exterior para uma resolução do problema". Até porque, bem vistas as coisas, o problema do terrorismo no norte de Moçambique, começou quando em outubro de 2017, um grupo de insurgentes atacou a localidade de Mocimboa da Praia e a tomou "durante três dias". Mas, na altura, "era um problema pequeno de uns indivíduos que assaltaram umas esquadras de polícia, ficaram com acesso a armas, mas estavam mal treinados e mal equipados, mal coordenados, mas agora, passados três anos, aquilo que se pode ver é um verdadeiro teatro de operações, de alguém que tem um grande investimento por detrás. Em três anos, o problema cresceu muito e se calhar cresceu porque as autoridades moçambicanas não conseguiram dar resposta e não conseguiram pedir ajuda quando ela teria sido necessária".
O Ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, vai estar em Moçambique esta quarta-feira, encontra-se com o homólogo Jaime Bessa Neto, na capital moçambicana, não estando prevista uma deslocação à sensível zona do norte do território do país, apesar de, com particular insistência nas últimas semanas, ter sido apontada a possibilidade de Portugal ajudar militarmente o governo de Moçambique a combater o extremismo religioso no norte de Moçambique. A visita de trabalho do governante português a Maputo visa abordar a Cooperação no Domínio da Defesa existente entre os dois países. O Acordo de Cooperação Técnica no Domínio Militar entre Portugal e Moçambique foi assinado, nesta mesma data, em 1988.
Outro dos temas em análise no encontro será a prioridade conferida pela Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia (PPUE), que começa em janeiro, ao estreitamento das relações no domínio da segurança e defesa entre a Europa e África.
Na semana passada Cravinho, abriu a porta à participação portuguesa numa missão militar em Cabo Delgado, província assolada pelo terrorismo, fazendo no entanto questão de lembrar, para além das inevitáveis referências à ligação fraterna, histórica, cultural e linguística entre os dois países, que deverão ser "as autoridades moçambicanas a estabelecer aquilo que entendem por útil". Já houve, de igual modo, uma abertura importante, como lembrava o Diário de Notícias no passado sábado, uma conversa entre o presidente moçambicano Filipe Nyusi e o primeiro-ministro António Costa, tendo ambos concluído que o apoio ao nível bilateral se deve concentrar na "formação e treino" ao nível da segurança, nomeadamente na preparação das forças de combate a movimentos de guerrilha.
A província de Cabo Delgado, e concretamente as zonas onde os ataques extremistas têm tido maior frequência, é extremamente apetecível em matéria de recursos, por ali estarem situadas as segundas maiores reservas de gás natural do mundo. Num momento em que decorrem negociações para a extração desse gás, "as pessoas que ali vivem percebem que todo esse dinheiro que está a ser negociado, lhes passa completamente ao lado, porque não têm habilitações mínimas para trabalhar neste mega projeto". Será mais uma oportunidade que passará ao lado daqueles que mais delas precisam.
A ONG portuguesa começou em agosto com um projeto na área da saúde materno-infantil nas comunidades onde a Helpo já tinha projetos na área da educação desde 2009, locais que agora recebem muitas famílias de deslocados. Só no mês de agosto, a organização deu apoio "a cerca de dezasseis mil pessoas, havendo também uma enorme preocupação "com a situação escolar das crianças", num contexto em que o abandono escolar já era muito frequente. Também por isso o dirigente da HELPO afirma que o futuro deverá passar por "investimento em educação, dar oportunidades aos jovens".