O presidente turco tomou posse há um ano com poderes ultrarreforçados, numa etapa que marcou a transição do país para um sistema presidencialista. O argumento foi a necessidade de trazer maior estabilidade mas, um ano depois, o contexto político depois de uma derrota estrondosa em Istambul e principalmente a economia são os maiores desafios de Erdogan.
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"Com este novo sistema entramos num novo modelo de governo democrático que vai para além do que procurávamos há já 150 anos na Turquia e há 95 anos na história da nossa República. Neste momento estamos a deixar para trás um sistema que causou elevados prejuízos ao país por causa do caos político, social e económico que provocou no passado."
Foi com estas palavras, proferidas em frente ao gigantesco palácio presidencial, em Ankara, que Recep Tayyip Erdogan tomou posse há um ano para um mandato que inaugurou uma nova era no país. Erdogan tornou-se no primeiro presidente do novo regime presidencialista - fundado com a reforma constitucional que tinha sido aprovada em referendo por uma curta margem no ano anterior - e que veio dar ao Chefe do Estado poderes executivos e um controlo reforçado sobre o poder judicial, extinguindo ao mesmo tempo a função de primeiro-ministro,
Um ano depois, longe de tempos mais tranquilos o país enfrenta agora desafios redobrados. Está desde logo extremamente dividido e polarizado politicamente: Erdogan venceu as eleições de há um ano com 52% dos votos e, nas eleições autárquicas deste ano o seu partido, o AKP, conseguiu 51% dos votos a nível nacional (em coligação com os nacionalistas do MHP). Mas perdeu cidades importantes como Ankara, Izmir e principalmente Istambul, o berço político do presidente.
A decisão de repetir as eleições em Istambul revelou-se uma estratégia errada e que pode trazer elevados custos políticos. Se, nas primeiras eleições de 31 de março, o candidato da oposição teve apenas 13 mil votos de vantagem, na repetição das eleições, a 23 de junho, a vitória por quase 800 mil votos de diferença não deixou margem para dúvidas. A título individual, Erdogan nunca perdeu qualquer eleição numa carreira política que começou como presidente de Istambul em 1994, passou pela chefia do governo e depois pela Presidência. Mas a derrota na principal cidade do país, com 16 milhões de habitantes, veio reforçar e trazer um novo ânimo à oposição.
A polarização atual não é uma surpresa para os cientistas políticos. "Os sistemas presidencialistas funcionam assim: polarizam e dividem o país. Por causa do regime presidencialista, os partidos políticos perdem importância para as personalidades políticas e tornam-se máquinas estabelecidas para ganhar eleições. A função do AKP é vencer eleições para o presidente Erdogan", garante Emre Erdogan, cientista político e professor do departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da Istambul Bilgi University.
"O que temos na Turquia é um regime presidencialista e o presidente decide com o seu gabinete. Mas os ministros têm um poder limitado. O poder deles está relacionado com a influência que conseguem ter junto de Erdogan, em última instância ele é que decide. Não só em termos de política doméstica, mas também política externa."
"Não é fácil ter dinheiro barato"
A grande pedra no sapato de Erdogan ao longo deste último ano foi, no entanto, a economia. A economia turca entrou em recessão no quarto trimestre de 2018, o desemprego está nos 14% - o valor mais alto da última década - e a inflação, apesar de uma ligeira descida recente, situa-se acima dos 17%.
A recente decisão de afastar, este fim de semana, o governador do Banco Central Turco, Murat Cetinkaya, através decreto presidencial, veio trazer um novo fator de instabilidade nos mercados e contribuiu para uma nova ligeira desvalorização da lira turca. Em causa, o facto de Cetinkaya se recusar a baixar as taxas de juro, como pretende o presidente.
"Erdogan acredita no poder do crescimento e é um pouco keynesiano, prefere gastar dinheiro alimentando o crescimento económico através de gastos públicos. Mas para isso precisa de dinheiro barato. Se as taxas de juro estiverem altas, ele não pode trazer crescimento da forma que pretende. No longo prazo, é preciso dinheiro barato, e não é fácil."
A economia é, de resto, apontada como o principal motivo para a perda eleitoral do AKP nas recentes eleições municipais e o fator mais importante a ter em conta se Erdogan quiser ser reeleito nas próximas eleições presidenciais, marcadas para 2023. "Para ganhar as próximas eleições, Erdogan tem de conseguir consertar a economia. Ele sabe que ganhou as últimas eleições por causa do voto dos nacionalistas, graças ao MHP. Quem sabe quem é que eles vão apoiar nas próximas eleições? Por isso é que é absolutamente fundamental criar um bom sentimento económico, e ter tanto estabilidade política como económica."
Uma política externa em ziguezague
Um dos marcos deste último ano foi também uma política externa flutuante, que tanto pisca o olho à Rússia de Putin como tenta fazer as pazes com os Estados Unidos de Trump.
O caso mais emblemático é a compra do sistema de defesa antiaérea S-400 aos russos, que irritou ao Washington ao ponto de ameaçar com sanções e com a suspensão da venda de 116 aviões F-35 a Ankara. A questão torna-se ainda mais sensível pelo facto da Turquia ser membro da NATO, com os Estados Unidos a alegarem que podem estar em causa segredos militares e tecnológicos. No entanto, Erdogan não recuou na compra aos russos e garante que o sistema S-400 vai chegar em breve ao país.
A relação com a União Europeia permanece também num impasse, algo que já vem desde a tentativa falhada de golpe de Estado a 15 de julho de 2016, recorda o cientista político Emre Erdogan. "A União Europeia esteve em silêncio durante o golpe, quando a Turquia tinha um governo democraticamente eleito. E as pessoas ficaram com a ideia que, se o golpe tivesse sido bem sucedido, se calhar a União Europeia e os Estados Unidos teriam aceite aquela situação."
Por estes motivos, não é de estranhar que, no último ano, o presidente turco tenha reforçado a sua aproximação à Rússia. "O principal objetivo de Erdogan é a sua sobrevivência, do seu governo, do partido e da família. E ele está a avaliar as possibilidades na política externa usando este filtro. Por isso é que a Rússia se está a tornar, neste momento, um parceiro importante para a sobrevivência de Erdogan."