Uma das principais novidades é o aumento dos prazos de prescrição dos delitos de abuso sexual. Não prescrevem até a vítima fazer 40 anos.
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Acabar com o silêncio e garantir uma proteção integral dos menores contra a violência. São estes os objetivos principais da lei de proteção da infância que aprova esta quinta-feira o Congresso dos Deputados em Espanha.
Trata-se de uma legislação pioneira em toda a Europa, pedida há muito pelas organizações de defesa dos direitos das crianças. "É uma referência a nível mundial porque é uma lei integral: regula todos os âmbitos em que as crianças desenvolvem a sua vida. Desde a família, a escola, se tiverem que interatuar com as forças de segurança e também o âmbito digital", explica Cristina Sanjuán, responsável da ONG Save The Children.
De acordo com os dados do Ministério da Administração Interna, mais de 40.000 delitos foram cometidos contra menores em 2019. E se falamos de delitos sexuais, mais de metade teve como vítima uma criança. Números ainda mais preocupantes quando pouco mais de 10% dos casos se denuncia. "A lei do silêncio impõe-se sempre porque os agressores fazem uso dela, sabem que podem manipular as vítimas e que o medo trava as denúncias. Esta lei adapta-se a essa realidade e ao tempo que as vítimas precisam muitas vezes para dar o passo em frente e denunciar", continua Sanjuán.
Entre as principais novidades da lei está o prazo de prescrição de abusos sexuais. Antes, o prazo de cinco anos começava a contar a partir dos 18 anos da vítima. Agora começa a partir dos 35, o que significa que os delitos não prescrevem antes da vítima fazer 40 anos. Nos casos mais graves o limite pode chegar mesmo aos 55 anos.
A lei estabelece ainda que os menores de 14 anos apenas têm que declarar uma vez, frente às 4 atuais; apoia a criação de tribunais especializados e centra a atenção na formação de profissionais e nos protocolos de prevenção. É uma lei que abrange todas as áreas de atuação, desde a prevenção da violência à denúncia, passando pela deteção dos casos, a proteção e a reparação das vítimas.
Depois da aprovação da norma esta quinta-feira, a lei deverá ser publicada no Boletim Oficial do Estado (BOE) em Junho e estas são as principais mudanças.
Prescrição de delitos
É talvez o ponto mais forte da lei. Ampliam-se os prazos de prescrição dos delitos graves contra os menores, nomeadamente os delitos de abusos sexuais. Até agora, os cinco anos de prazo começavam a contar quando a vítima fazia 18 anos. Agora, a contagem inicia-se quando a vítima atinge os 35, de forma que o delito só prescreve quando a vítima atinge os 40 anos de idade. Nos casos mais graves este limite pode mesmo chegar aos 55 anos.
Menos declarações
Os menores de 14 anos passam a ter de declarar apenas uma vez durante o processo judicial, frente às quatro atuais. O testemunho será gravado para poder ser reproduzido sempre que for necessário e a declaração presencial em tribunal só será utilizada em casos excecionais. É uma medida que pretende parar a "re-vitimização" dos menores, que ocorre ao serem obrigado a recordar o acontecimento traumático várias vezes. Neste âmbito, e para evitar respostas deficientes por parte das autoridades, vai promover-se a formação de especialistas e a criação de unidades específicas para o tratamento destes casos.
Tribunais especializados
No seguimento da anterior disposição, o Governo dispõe de um ano para desenhar um decreto-lei que crie tribunais especializados em violência contra a infância e a adolescência (à semelhança dos que já existem no país para a violência contra as mulheres). As equipas do Ministério Público e dos Tribunais devem receber formação específica.
Fim do síndrome de alienação parental
O síndrome de alienação parental define a forma de atuar por parte de um dos progenitores, que manipula os filhos contra o outro progenitor, até que estes acabam por rejeitá-lo. É um conceito que não está provado cientificamente, que a Organização Mundial da Saúde não reconhece como síndrome e que foi utilizado durante anos para descredibilizar as mulheres em julgamentos por violência de género. Esta lei impede o seu uso: "não serão utilizados conceitos teóricos que não estão demonstrados cientificamente e que pressupõem a interferência ou a manipulação de um adulto, como o chamado síndrome de alienação parental".
Violência de género
A violência exercida sobre familiares menores de idade "com o objetivo de causar sofrimento às mulheres" será reconhecida como violência de género. Além disso, quando estiver provado que os menores assistiram a episódios de violência, nos casos em que os pais já estejam separados, o sistema de visitas por parte do agressor suspende-se. A lei obriga também a retirar a custódia ao agressor se este for condenado por homicídio em duas situações: se a vítima e o agressor tiverem filhos em comum, ou se o agressor tiver assassinado um filho e tiver mais descendência.
Direito à educação e a serem ouvidos
A lei estabelece que os menores têm direito a ser ouvidos em todos os âmbitos do processo judicial e em todas as decisões que os afetem. Os menores devem receber formação sobre igualdade de género, direitos da infância, educação sexual e diversidade familiar nos centros educativos, públicos e privados. Os protocolos desenhados para o efeito devem incluir formação sobre abusos e maltrato infantil, bullying (também na sua versão online), assédio sexual, violência de género, suicídio e outras formas de violência.
Assédio online
A lei prevê penas para quem promover o suicídio, os transtornos alimentares, as lesões e os delitos de natureza sexual contra os menores em ambientes digitais.
Proteção dos menores estrangeiros
Outra das novidades é o aumento da proteção aos menores estrangeiros não acompanhados. Ficam proibidas práticas como a exploração dos genitais e os nus integrais para a atribuição da idade. "As crianças que chegam sozinhas a Espanha são crianças e por isso estão amparadas por todos os direitos da convenção sobre os direitos da criança e merecem proteção. A lei insta à revisão do modelo de determinação da idade e confiamos que se aposte por um modelo mais holístico, que não precise de exames médicos invasivos", diz Cristina Sanjuán.
Centros de menores
Os menores que estejam à guarda do Estado devem estar em "ambientes seguros", em centros que tenham mecanismos de denúncia seguros e confidenciais, sem risco de represálias para os menores.
Endurecimento das penas
Aumentam as condições para que os condenados por abuso sexual a menores de 16 anos possam conseguir a liberdade condicional ou o regime penitenciário de semiliberdade. A partir de agora precisam de cumprir pelo menos, metade da pena.
Esta lei é um caso raro de consenso na política espanhola. Tal e como aconteceu na primeira votação que enviou a lei ao senado, hoje deve contar com 257 votos a favor, os do Governo e os dos principais partidos da oposição. Contra, só mesmo o Vox e o Partido Nacionalista Basco, este por considerar que a lei invade competências das autonomias. A mesma razão foi invocada para a abstenção do Bildu (País Vasco), JuntsxCat y PdCat (Ctalunha) e Navarra Suma (Navarra).