Espanha: uma Constituição com 45 anos mas difícil de reformar
O IPRI-Nova inaugurou um conjunto de debates constitucionais. Espanha, com a Magna Carta a comemorar 45 anos, foi o primeiro, num momento em que a proposta de lei de amnistia é contestada à direita e nem o rei é poupado.
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Aos 45 anos de vida da Constituição, Espanha vive um momento em que o próprio Rei de uma monarquia parlamentar é contestado pelos setores conservadores. Nos protestos contra a lei da amnistia, chegou a ouvir-se "Filipe traidor"... o constitucionalista Sebastián Martín Martín, da Universidade de Sevilha, professor de História do Direito, enquadra desta forma o momento político espanhol, com setores mais à direita a contestarem o rei: "Isto acontece em primeiro lugar devido a uma cultura política autoritária, pouco democrática e, portanto, pouco consciente de quais são as engrenagens da monarquia parlamentar visíveis nos setores pertencentes à extrema-direita, que se manifestam e protestam contra a futura lei da Amnistia. Portanto, este setor coloca a monarquia sob um teste de stress, porque praticamente a obriga a tornar-se o oposto daquilo que é um monarca parlamentar, que é um símbolo da unidade do Estado e, portanto, de alguma forma representativo de todas as sensibilidades que existem no país".
Nos protestos políticos de rua promovidos pelo PP e pelo Vox, a reivindicação era que Felipe VI tivesse impedido a formação do Governo ou que impeça a promulgação da Lei de Amnistia, como se Espanha estivesse "nos tempos da monarquia constitucional e não na atual monarquia parlamentar, onde a sanção é um ato devido ao qual não se pode negar a monarca em nenhum caso". Então esse setor coloca, antes de tudo, "um teste de stresse à monarquia, porque praticamente obriga a converter-se, ao contrário do que é uma monarca parlamentar, que é símbolo da unidade do Estado e por isso, de alguma forma, representante de todas as sensibilidades existentes no país". O professor universitário de Sevilha reconhece que, em Espanha, "a tradição republicana, também muito viva em Portugal, se extirpou por completo após a sublevação e a vitória dos sublevados após a Guerra de Espanha. A cultura republicana, que era uma cultura transversal, tinha republicanos de direita, de centro e de esquerda, desapareceu da nossa tradição".
A sociedade espanhola divide-se sobre a necessidade de reformar a Constituição, mas são, ainda assim, um pouco mais aqueles que defendem que é preciso fazer alterações na Magna Carta... não é tarefa fácil, admite o catedrático em Direito, também da Universidade de Sevilha, Abraham Barrero Ortega: "O atual quadro constitucional é um quadro difícil de reformar. Quando a Constituição foi aprovada em 1978, foi estabelecido um procedimento de reforma extraordinariamente complicado e exigente. E duvido muito que estas regras de reforma do sistema, num contexto de tanta divisão entre os partidos, possam ser acionadas para propor reformas institucionais e reformas políticas". Para o professor de Federalismo, Espaço Autonómico e União Europeia na Universidade de Sevilha, a grande maioria da população em Espanha "é a favor da realização de reformas no nosso sistema institucional. Mas as regras da reforma são extraordinariamente exigentes. Não existe acordo político entre o Partido Popular e o PSOE". E, por outro lado, a questão territorial, a questão catalã, "nunca poderá ser resolvida a partir desta Constituição. Caso contrário, caminhamos para uma situação de crise constitucional e para um quadro jurídico diferente". Ortega pensa que "com o atual quadro jurídico não será possível resolver a questão catalã."
Em Lisboa, a convite do Instituto Português de Relações Internacionais, no arranque de um Ciclo Internacional sobre debates constitucionais coordenado por Paula Borges Santos, este académico sevilhano considerou que a autonomia política "é de baixa qualidade em Espanha, que há um uso e abuso do Estado, de títulos de poderes transversais", alegando igualmente uma falta de cooperação entre o Estado e as autonomias. Para Abraham Barrero Ortega, as comunidades autónomas "preocupam-se por gerirem muito, mas decidem pouco legislativamente, porque o Estado aprova estes amplos títulos transversais, especialmente a determinação das bases para estabelecer ou penetrar em espaços que em princípio correspondem às comunidades autónomas. Estas queixam-se, lamentam este exagero e normalmente, costumam decidir que sim, quem decide é o Estado. Eles administram, mas quem decide legislativamente é o Estado".
Uma Constituição que consagra um estatuto de autonomia que Seabastián Martín vê como bastante positivo, até por ter dado espaço a uma "pluralidade cultural e nacional", que havia sido "diretamente reprimida pela ditadura franquista e pelo modelo estatal hegemónico durante os séculos XIX e XX". Mas há um pecado original, por resolver, que "é o que provoca que o estatuto autónomo pareça sempre como uma fórmula de crise". Martin explica que Espanha sempre teve "projetos e processos constituídos protagonizados por partidos ou representantes das diferentes sensibilidades que se apresentam no conjunto do país, mas construídos a nível individual, diferentemente, por exemplo, da história alemã, que ocorreu na época de Weimar, com um papel muito central dos próprios Lande (regiões alemãs), que tiveram um protagonismo como sujeitos unitários no próprio processo constituinte". Desde então, explica, "isso tem consequências institucionais, como, por exemplo, permitir uma segunda câmara que seja apenas e exclusivamente de representação territorial, algo que não acontece no nosso caso". Espanha tem um reduzido número de senadores eleitos por via territorial.
No entanto, ainda assim, a Constituição como um todo parece estar acima das divisões políticas acentuadas pela proposta de lei de amnistia ao processo catalão. Uma sondagem do El País indica que 60% dos espanhóis estão satisfeitos com a Constituição que esta quarta-feira assinalou 45 anos.
Martín entende que o constitucionalismo espanhol tendeu a interpretar o Estado autónomo, e o problema da composição multinacional ou pluricultural espanhola, "em termos administrativos, como uma questão que afeta territórios que são resolvidos com distribuição de competências, com recursos económicos, deixando de lado a questão da identidade nacional, que pode ser para alguns setores uma pergunta simbólica e uma pergunta acessória. No entanto, a nossa atualidade política revela que é uma pergunta, para grandes proporções da população, de caráter substancial".
Lei da amnistia: privilégio e ditadura ou pacificação e convívio
A proposta de lei de amnistia tende a diminuir ou aumentar as assimetrias existentes no Estado espanhol? Para Matín, "essa é a incógnita. A amnistia abre um período de indeterminação que dependerá da sua cristalização específica e da capacidade de mobilização dos diferentes atores políticos. Sabemos que há quem pense que com a Lei de Amnistia entramos numa ditadura e outros que pensam que com a Lei de Amnistia se desinfla e amaina o conflito na Catalunha e entre a Catalunha e o resto do Estado".
Para Sebastián Martín Martín, a amnistia funcionará "se o independentismo, que é mais oposto aos procedimentos constitucionais para tomar decisões que afetam a distribuição territorial do poder, abandonar essa posição de rebeldia, de unilateralidade ou de propriedade popular, porque considera que através dessa via se introduz uma fratura na sociedade que nos coloca em cenários politicamente desagradáveis". Nesse caso, a amnistia revelar-se-ia como "uma medida satisfatória". Se, pelo contrário, o cenário que a amnistia abre é de fortalecimento dessas posições contra as constitucionais, "o independentismo mais agressivo, pode lograr determinar continuamente a ação de governo, e teremos um governo que está continuamente chantageado por aquelas forças". O académico andaluz admite que são, de resto, forças políticas (ERC, Junts, Bildu) que não "reduzem a sua base social de apoio, mas antes crescem".
