O que vai na cabeça de alguém quando é difícil falar sobre o próprio país? Vencedor do prémio Leya 2018, Itamar Vieira Junior considera que o ano que terminou foi "muito ruim" e apela à vigilância da sociedade para que 2019 "não seja pior".
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"Alô". Do outro lado da linha telefónica vem um sotaque quente, da Bahia, e que deixa logo à vontade para qualquer questão. Mas falar sobre o Brasil não é fácil para Itamar Vieira Junior. "É muito difícil, para mim, falar sobre o Brasil neste momento, por tudo o que estamos a viver", remata o escritor que venceu um dos mais conhecidos prémios literários portugueses - o Prémio Leya.
O romance - o seu primeiro e que foi premiado em Portugal - até vai ao encontro de alguns dos tópicos que elege como problemáticos no Brasil. Já lá vamos, para já um balanço do ano 2018. "Tivemos um ano difícil", começa por dizer recuando ainda mais no tempo. "Tivemos um impeachment há dois anos de uma presidente que foi eleita pela maioria da população mas que teve o resultado das eleições contestado de forma leviana. Levou a um processo que é contestado por grande parte da população e por juristas como ilegítimo. Assumiu um governo que não foi eleito, com um projeto que não era o projeto eleito pela população, com muitas medidas que retiraram direitos e, para piorar as coisas, tivemos um processo eleitoral duríssimo", recorda Itamar.
Realçando o processo eleitoral que levou à vitória de Jair Bolsonaro, este escritor de 39 anos sublinha que o Brasil não estava preparado para líder com as novas tecnologias, no caso, as redes sociais. "As redes sociais disseminaram notícias falsas e isso já tinha acontecido nos Estados Unidos há dois anos. Repetiu-se no Brasil e levou à ascensão da extrema-direita que tem um projeto de governo muito desigual. Tende a manter essas desigualdades, tende a retirar direitos", antecipa.
"O Brasil vive um grande problema. Depois da abolição da escravatura, não foram dadas condições aos descendentes dos escravizados para se manterem na terra e se inserirem na sociedade brasileira. Por isso, temos problemas graves de racismo e que não foram solucionados. Essa questão da terra é essencial para a justiça social", realça Itamar cujo único romance centra-se, precisamente, na questão da terra e na ruralidade.
Voltando à análise do ano que diz ter sido "muito ruim", Itamar Vieira Junior salienta que houve um "acirramento" dos problemas sociais. "O Brasil devolveu à pobreza dois milhões de habitantes, tivemos crimes sem solução que chocaram a sociedade brasileira e vemos esses crimes como atentados à democracia - é o caso da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco", recorda. E é ao lembrar a vereadora do Rio de Janeiro que foi assassinada que Itamar defende que a população deve permanecer "vigilante". Sobre o novo ano, Itamar é cauteloso: "se não estivermos mobilizados, organizados para barrar qualquer projeto que contrarie o interesse da população, que subtraia direitos, que flerte com o totalitarismo, com o autoritarismo, [2019] pode ser pior".
Fazendo das palavras o seu ofício, Itamar Vieira Junior elege a palavra "solidariedade" para o novo ano que está a começar. "Ninguém solta a mão de ninguém. Vamos estar juntos para defender os nossos direitos, para defender a democracia, para defender o país, para defender qualquer segmento da nossa sociedade que se encontre em risco. Sejam os indígenas, os quilombolas, as mulheres, a comunidade LGBT. Vamos estar juntos e unidos. A palavra que me vêm à mente é essa: solidariedade", diz à TSF.
"Torto Arado"
Mas nem tudo é mau. Na vida pessoal, 2019 marca o ano do lançamento do primeiro romance de Itamar Vieira Junior em Portugal. E, desde que venceu o prémio Leya, a vida ficou diferente. "Nossa, mudou muita coisa", diz com um sorriso que se percebe no outro lado da linha telefónica. "A procura por trabalhos, por textos, as pessoas a quererem saber quem é o escritor, sobre o que versa o trabalho... Tenho tido dias muito cheios por causa disso. Estou na expectativa do lançamento do livro, saber como é que os leitores vão receber este livro em Portugal. Estou nesse processo", conta.
Com dois livros de contos publicados, "Torto Arado" é o seu primeiro romance e cuja inspiração já vem de há muitos anos. "Era adolescente e estava impressionado com as leituras dos romances regionalistas do Brasil. Tinha o 'gérmen' desta história. Depois retomei... Fui trabalhar com trabalhadores rurais, na agricultura, há mais de 12 anos, e fui inserido nesse universo que é pouco retratado na nossa literatura de hoje. Fui seduzido, envolvi-me muito com essas histórias do universo rural do Brasil. "Torto Arado" é a história de duas irmãs, são protagonistas, vivem numa fazenda, muito após a abolição da escravatura. Esses trabalhadores da fazenda Água Negra permanecem cativos, eles não têm direitos, trabalham para os senhores da fazenda, não recebem remuneração, têm apenas o direito de morar nessa fazenda", conta.
O romance atravessa três décadas na vida destas protagonistas e "vai mostrar o quão desigual é o Brasil". "Vai mostrar o quanto ainda sofremos com essa desigualdade, com uma elite que continua a subjugar grande parte da população, com legislações injustas e tudo o que daí advém. O livro 'Torto Arado' fala de uma luta pela terra que é uma luta que permanece nos nossos dias e com muita ênfase, o Brasil tem um histórico de violência no campo que é assustador. Nos últimos anos, muitas lideranças de movimentos de ribeirinhos, de trabalhadores rurais, de quilombolas, foram assassinados nesse período e isso está muito marcado na nossa sociedade. É uma fratura, uma ferida aberta. Eu recordo o romance de José Saramago, o 'Levantado do Chão', para mim é um exemplo de literatura que tem esse olhar para o mundo rural e para as injustiças do mundo rural. Penso que 'Torto Arado' é filho desses romances que falam do mundo rural e de todas as suas injustiças", conclui.
Itamar Vieira Junior está a terminar o processo de edição deste romance que espera lançar em Portugal no fim de fevereiro. Até lá, vai escrevendo para jornais e revistas, dando entrevistas e, diz à TSF, "mantendo a vigilância".