"Falta no Brasil algo como o Museu do Aljube, que lembre que ditadura não é uma coisa boa"
Passam hoje 60 anos do golpe militar que derrubou o presidente democrático João Goulart e instaurou a ditadura militar brasileira. No início, as classes médias e a grande imprensa foram complacentes. O jornalista João Gabriel de Lima explicou tudo n'O Estado do Sítio, na TSF.
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Faz este domingo 60 anos (31 de março de 1964) o golpe militar que instaurou a ditadura no Brasil. João Goulart, conhecido por Jango, tinha assumido a presidência três anos antes, após a renúncia de Jânio Quadros. Herdou um país em crise, que já vinha dos governos de Quadros e Juscelino Kubistchek, com o país com uma elevada dívida externa. A economia crescia 1,5% ao ano, em contraste com 7% na década anterior, caia a produção e caíam os salários. Crescia a frustração entre os trabalhadores, havia greves operárias e lutas camponesas. A tensão agravou-se com as grandes mobilizações populares, nomeadamente o enorme comício na central do Brasil a 13 de março. A esquerda exigia ao presidente um maior compromisso com as reformas que ele próprio tinha proposto. Ao aparecer no próprio comício, Jango dava às esquerdas a imagem de que não seria mais moderado e hesitante como tantas vezes era acusado. Perante isso, os opositores de direita organizaram-se.
O que é que aconteceu nesse 31 de março?
É interessante entender um contexto anterior a 19161, já que há outro ano, que é 1959, o ano da revolução Cubana. A revolução Cubana desencadeou uma paranóia na direita brasileira de que isso se ia espalhar e alastrar pelo continente, que o João Goulart, que era um político de centro-esquerda, bastante moderado, tremendamente moderado, poderia tentar fazer alguma coisa parecida no Brasil. Então, havia uma movimentação, havia uma uma agitação à esquerda e à direita no país e a direita, na verdade, foi mais rápida, organizou-se e deu um golpe. Mas é muito difícil pensar que algo como o que aconteceu em Cuba - olhando com os olhos de hoje - pudesse acontecer no Brasil.
Mas quem é que estava com quem? Porque também li que os golpistas tiveram um forte apoio daquilo que se entendia, então, por classes médias…
Sim, uma grande parte da classe média brasileira, classe média urbana, aderiu ao golpe militar ou apoiou o golpe militar. Por duas razões. Primeiro, pelo medo cubano, medo da revolução, medo das esquerdas. O medo talvez até que não houvesse uma revolução, mas houvesse um governo de esquerda, que de alguma maneira afetasse a economia de algum jeito. Uma economia que já estava um pouco combalida. Mas havia uma outra questão também: o golpe de 1964, num primeiro momento, tinha, ou pelo menos propagava, a intenção de ser um golpe curto, algo que a gente sabe que não existe, mas que em 1964 algumas pessoas achavam que talvez pudesse existir.
Isso é sempre promessa de golpista, não é?
É, apesar de golpista, vou ficar pouco tempo, arrumo e vou; embora isso nunca aconteça, mas havia essa promessa no Brasil de que isso fosse acontecer. E é interessante pensar que grande parte das classes médias aderiram, classes médias religiosas também. Houve uma marcha pela família, que foi uma manifestação muito grande de famílias em grandes cidades brasileiras, nomeadamente São Paulo. E também alguns intelectuais aderiram, como a escritora Raquel de Queiroz. E também os próprios jornais, a própria imprensa, que seria tremendamente censurada. Quase todos os veículos do Brasil, os mesmos que hoje são de direita ou de esquerda, aderiram para publicar editoriais favoráveis ao golpe militar. Foi algo muito peculiar.
Mas o encorajamento do governo dos Estados Unidos da América para o golpe também foi um fator decisivo?
Sim. Quem primeiro escreveu sobre isso foi um historiador americano que estuda a história do Brasil, chamado Thomas Kidmore. Ele escreveu num livro dele que havia uma ideia por parte dos Estados Unidos de eventualmente, se houvesse uma revolução comunista no Brasil, se houvesse alguma coisa mais forte no sentido de transformar o Brasil numa enorme Cuba, o Brasil poderia contar com o exército americano? Isso foi escrito no livro do Thomas Kidman. Não chegou a isso. O que acontecia muito nessa época é que os Estados Unidos tinham um acordo na área de educação com o Brasil e eles propagavam as virtudes do capitalismo, as virtudes da livre iniciativa, através de determinadas instituições brasileiras que apoiavam o modo de vida americano. Então eram lançados muitos livros a respeito das virtudes do capitalismo e os problemas do comunismo. Existia uma certa guerra cultural, naquela época. Eu não diria que os Estados Unidos deram o golpe, não é? Quem deu o golpe no Brasil foram as classes médias e foi a direita militar.
Mas não é verdade que o embaixador americano Lincoln Gordon, de alguma forma, coordenou a conspiração entre empresários e militares?
De acordo com o que dizem os historiadores, ele participa de algumas reuniões. Ele deu entrevistas posteriores; o Lincoln Gordon depois de muito tempo no Brasil, saiu do Brasil e continuou durante muito tempo falando sobre o Brasil e sempre disse que não teve nada com isso, que não coordenou o golpe, não fez nada disso, mas sabe-se que ele transitava entre essas pessoas.
O presidente João Goulart mobilizou forças para tentar evitar que o golpe acontecesse?
Não. O Goulart saiu do Brasil, segundo ele próprio, para evitar derramamento de sangue.
Primeiro foi para o Rio Grande do Sul ter com Leonel Brizola…
Sim, e depois foi para o Uruguai. É uma história muito triste a de João Goulart. Foi feito um filme muito mais tarde chamado Jango, realizado por Sílvio Tendler, é um grande documentário sobre João Goulart, que teve muito sucesso no Brasil na época da redemocratização. João Goulart nunca voltou ao Brasil, foi banido do país, era uma ditadura e ele não conseguiu voltar.
Vamos a esse momento, esse período histórico, portanto, a 11 de abril, o Congresso elegeu o general Castelo Branco, líder dos golpistas, como novo presidente do país. Como é que foi a vida do Brasil em ditadura?
No começo, houve primeiro um banimento e cassação de alguns políticos, fechamento e empastelamento de alguns jornais, de alguns órgãos de imprensa. Esse primeiro momento da ditadura foi um momento em que muitos economistas liberais chegaram ao poder e, de uma certa maneira, tentaram ajudar a sanear a crise económica. O Brasil tinha uma tremenda dívida externa, que vinha de anos de crescimento económico muito expressivo, mas muito sustentado pelo estado e precisava de um certo ajuste. Continua havendo um determinado apoio de uma parte da classe média, apesar do fechamento de jornais e apesar da cassação de alguns políticos. O momento de virada é 1968, 1968 tem um ato institucional número 5, que instaura, aí sim, uma ditadura completamente explícita.
O famoso AI-5...
Sim, o famoso AI 5 com prisões, com tortura, com desaparecimento de pessoas. Aí há uma ditadura de verdade. E aí é o momento que as classes médias definitivamente desembarcam (do apoio tácito à ditadura) e a imprensa também, porque a imprensa começa a ser censurada.
É rotulada como ditadura de Extrema direita?
Sim, acho que claramente é uma ditadura de Extrema direita a partir daí, apesar de algumas nuances económicas interessantes. Por exemplo, assim que você tem o golpe de 64, o Brasil passa a seguir uma linha económica meio liberal. Quando chegam os primeiros governantes depois do AI-5, Médici e Geisel
que são os piores governantes do ponto de vista dos direitos humanos, principalmente o Médici (Emílio Garrastazu Médici - governou de 1969 a 1974; Ernesto Beckmann Geisel - governou de 1974 a 1979), é o período onde você tem mais tortura, mais prisões, mais mortes mas, paradoxalmente, a maneira de gerir a economia era uma maneira, entre aspas, mais esquerda. Esses militares acreditavam em empresas estatais, acreditavam em investimento estatal e na economia. Eles não acreditavam no estado de bem-estar social. O dinheiro ia todo para a Petrobrás, para empresas grandes do país, não para o estado de bem-estar social, mas era um tipo de economia meio de esquerda, algumas pessoas diziam que era a única ditadura de extrema-direita que tinha uma visão meio soviética da economia. Isso foi um pouco o Brasil durante todo o regime militar, que acabou também quebrado, com uma inflação enorme, tanto quanto o país que os militares pegaram no começo da ditadura.
E isso até à democratização, em meados dos anos 80?
Sim, a redemocratização brasileira. A data que marca a redemocratização é 1985, quando temos, pela primeira vez, um civil na presidência eleito indiretamente. Tancredo Neves. Uma coisa importante da redemocratização brasileira e que até hoje gera muita controvérsia, é a seguinte: no final dos anos 70 houve uma amnistia. Essa amnistia amnistiou entre aspas, os presos políticos, isto é, os políticos que tinham sido cassados, todos eles voltaram ao Brasil. O Ricardo citou também Leonel Brizola, que era um grande defensor da legalidade no período João Goulart, ele volta ao Brasil em 1979, mas a ditadura amnistiou também os crimes dos militares. Então, o Brasil foi um dos um dos poucos países da América Latina em que crimes como tortura, como desaparecimento e mortes de pessoas não foram julgados.
Ao contrário, por exemplo, da Argentina, que tem estado a julgar os militares?
E outros países sul-americanos, como e Chile também.
Por causa da operação Condor, de desaparecimentos de pessoas, de sequestros, assassinos.
Sim, a operação Condor era uma operação integrada entre vários países da América Latina em que as ditaduras cooperavam no sentido de: uma ajuda a outra a perseguir e a prender entre quem consideravam comunistas. Na Argentina, por exemplo, houve um grande julgamento e os generais da ditadura, foram para a cadeia. Mas a ordem de grandeza dos números é muito expressiva. Na Argentina desapareceram por volta de 30000 pessoas. Agora, o Javier Milei, o atual presidente da Argentina, disse que foram muito menos, que foram 8000 e houve uma grande manifestação no passado fim-de- semana. Mas o número oficial são trinta mil pessoas. O Chile foram mais ou menos uns três mil desaparecidos. O Brasil chega a 500, 600 desaparecidos. É uma ditadura que tem menos gente morta ou desaparecida do que outras ditaduras. O que não a torna menos ditadura; isso sem contar também a censura nos jornais, na literatura, nas artes, etecetera.
De qualquer forma, foram praticamente 20 anos de ditadura e foi um regime elogiado pelo presidente de há pouco tempo, Jair Bolsonaro, durante a sua presidência…
Sim, se há uma sobrevivência do espírito de 1964 dentro da política brasileira hoje, essa sobrevivência está dentro da ideia do bolsonarismo. O bolsonarismo como movimento, começa com uma defesa de que 1964 não foi tão ruim assim. Isso foi uma grande novidade na política brasileira pelo seguinte, quando a ditadura acaba, há praticamente um consenso de que a ditadura foi um mal para o país. Foi um mal porque foi ditadura, porque destruiu instituições democráticas, porque morreu gente, porque torturou gente e porque foi um desastre económico. No final, o país foi entregue pelos militares aos civis com uma inflação galopante, que só foi resolvida em 1994, a partir de 93 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Com o Plano Real?
Com o Plano Real e tudo isso. Então, havia uma unanimidade que a ditadura era ruim. O ex-presidente Jair Bolsonaro entra na vida política como alguém que defende que a ditadura teve um valor. Qual teria sido esse valor? Impedir que um governo de esquerda tomasse posse. Bolsonaro sempre defendeu que uma ditadura é melhor que um governo de esquerda. Bolsonaro surge depois ter sido condenado por um tribunal militar.
Perde o seu posto de Capitão, é suspenso por razões disciplinares…
Exatamente, é exatamente isso. E por ameaçar colocar uma bomba, ele ameaçou um ato terrorista. No final dos anos 80, ele era líder sindical e é ameaçou colocar uma bomba na adutora do Guandu, que era responsável pela distribuição de água para o Rio de Janeiro. Ele ameaçou deixar o Rio de Janeiro sem água, colocando uma bomba se as reivindicações da tropa que ele representava, do chamado baixo clero do exército, não fossem atendidas. Isso irritou tremendamente a cúpula do exército, que estava tentando passar para o lado da democracia, né? Havia uma ala do exército mais democrática que estava querendo tirar do foco a ala mais autoritária do exército. Então isso incomodou bastante os militares. Ele foi condenado, mas absolvido em segunda instância. Segundo o jornalista Luiz Maklouf Carvalho, que escreveu um livro sobre o assunto, conseguiu essa absolvição depois de uma fraude. Essa é uma tese que é definida pelo Luiz Maklouf de Carvalho (em O Cadete e o Capitão). Mas Bolsonaro entra na política assim, como candidato dos militares que achavam que tinham sido injustiçados.
Vai esta data, 31 de março, este domingo, ser de alguma forma assinalada pelo atual governo ou é uma data para esquecer?
Provavelmente não. Uma grande parte da esquerda brasileira acha que não é uma data para esquecer. Uma coisa que falta no Brasil é algo parecido com o Museu do Aljube, aqui em Lisboa. O Museu do Aljube lembra os portugueses o tempo todo que ditadura não é uma coisa boa, que ditadura tem prisões, tudo o que nós falamos, tortura e fiasco económico. É muito interessante aquela ala do museu do Aljube que mostra que os números da economia de Portugal foram muito ruins durante a ditadura. O Brasil não tem nada parecido e é uma velha reivindicação de uma parte da esquerda brasileira, que esse tipo de data seja lembrada, justamente para que não se repita. Mas estamos num momento delicado do Brasil, em que há uma grande investigação sobre uma tentativa de golpe, na qual se suspeita que o ex-presidente Jair Bolsonaro liderou essa tentativa de golpe. Nesse momento no Brasil, temos vários militares envolvidos como testemunhas pela polícia para apurar o envolvimento do ex-presidente Jair Bolsonaro nessa tentativa de golpe. O presidente Lula tem adotado a seguinte política: não criar conflito com os militares para não parecer que isso é uma vingança do governo contra o governo anterior. Para ele, é uma questão de deixar a justiça agir autonomamente. Por causa disso, o atual presidente Lula, ao que parece, não vai fazer nada de muito grande que condene a ditadura militar brasileira, porque o que ele busca hoje é um acordo com o exército, num certo sentido, e busca que a justiça trabalhe livremente para apurar se houve mesmo ou não envolvimento do ex-presidente Bolsonaro numa tentativa de golpe. Os atuais indícios apontam que houve, sim.