“Francisco escolheu pessoas dispostas a pensar como ele ou a obedecer ao seu pensamento”
Argentino de Buenos Aires e especialista em religião que conheceu bem o Papa Francisco. Foi brindado com o seu bom humor e apreço aos detalhes, mas também a dificuldade em conviver com as críticas. José Maria Poirier com a TSF, em julho de 2023, sobre um Papa que viu ser como um “pop star tardio”
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José Maria Poirier, nascido em Buenos Aires em 1950, é diretor da revista Critério, antigo reitor da Escola Superior de Jornalismo, estudou Filosofia em Roma, também foi diretor do Museu de Cinema da cidade de Buenos Aires, é um jornalista especializado em temas da Igreja Católica, colaborador de publicações argentinas e estrangeiras. A Critério, revista de inspiração católica que dirige, é das mais antigas do país, foi fundada em 1928, esteve sempre nas bancas, a sua publicação nunca foi interrompida. Conversa exclusiva com a TSF em meados de julho de 2023, antes de o Papa vir a Portugal para o Congresso Mundial da Juventude.
Hoje, o que significa ser católico, jornalista, especializado em assuntos religiosos e ter um papa argentino, é um problema? “Sim, um papa argentino é um problema. Em primeiro lugar, porque nós, argentinos, não estamos preparados para exercer um pontificado. E ele é um papa peronista. Por outras palavras, é muito marcado nesse aspeto. Mas tive contacto com ele muitas vezes porque era um homem muito agradável. Não podia partilhar certas coisas, mas ele recebia-me sempre com muito carinho e o que me impressionou desde o início foi o seu interesse pela política. Assim que acabava de falar com ele, surgiam questões políticas sobre o mundo argentino e latino-americano. Bergoglio nunca simpatizou com as críticas que lhe poderiam ser feitas. E para que uma revista de um certo prestígio no mundo intelectual e religioso se permitisse criticar algumas das suas posições, ele não gostou.”
Bergoglio, o Papa Francisco, é (foi) alguém que vive (vivia) mal com as críticas? “Sim, convive mal no sentido de estar sempre bem informado. Bergoglio é um homem que tem interesse em estar informado sobre as minudências, mesmo as menores. Para ele, é um desporto. Ele gosta muito disso.”
“Mas isso não quer dizer que ele não seja um homem muito inteligente”, refere. “Ele tem as suas grandes virtudes e, ao mesmo tempo, sempre viu no peronismo uma aliança com os setores populares e, de alguma forma, com a Igreja. Mas essa é uma questão tão antiga na Argentina porque, desde o surgimento do peronismo, na década de 40, a Igreja sempre se sentiu identificada com o peronismo, com raríssimas exceções como, por exemplo, na queda do peronismo, onde a Igreja o enfrenta, mas tardiamente”, afirma o diretor da revista Critério.
A preparação da figura e o humor cáustico
O jornalista conta um caso pessoal: “Certa vez, sofri um acidente e parti a perna, e tive de usar uma bengala por um tempo até me recuperar. Estive engessado, etc. E um dia encontrei Bergoglio e ele disse-me: ‘a canadiana é por necessidade ou porque acha que combina consigo?’ E eu digo-lhe, ‘não, é por necessidade’! Quer dizer, os detalhes eram saborosos para ele, certo? E há detalhes curiosos. Por exemplo, lembro que a sua escrevaninha era extremamente pequena e chamativa, muito despojada, de modo que, ao receber uma pessoa, praticamente tinha de afastar a cadeira para abrir a porta e chegar lá. E eu tive a impressão de que tudo isso tinha algo de teatral, certo? Ou seja, ele era alguém que queria mostrar que era despojado. Sim, parece-me que ele é uma pessoa autêntica, mas, ao mesmo tempo, ele está sempre ciente da cena.”
Quem com ele conviveu ao longo do seu bispado como arcebispo de Buenos Aires garante que “nunca o vimos sorrir durante muitos anos. Quando é nomeado Papa, aparece sorridente e de muito bom humor. A voz dele era baixa, então pensavas, bem, ele está muito cansado. Mais tarde, quando é Papa, ficou feliz e com voz muito mais forte”.
Beatriz Sarlo, jornalista, escritora, intelectual, ensaísta, crítica literária e cultural argentina disse um dia: bem, agora Bergoglio praticamente não tem ninguém acima dele. Agora que é o Papa, é ele que manda. Poirier retorquiu: “bem, às vezes os crentes suspeitam que Deus está acima. E ela disse-me, bem, estamos a falar a sério, certo? Ou seja, obviamente, para um grande público, a impressão foi boa. Bergoglio não tem ninguém acima dele, e agora ele está a fazer as reformas que ele acredita que devem ser feitas. E com os tempos contados, porque nisso ele é um jesuíta metódico. Com os tempos, são 10 anos de pontificado”.
Para Poirier, há vários elementos marcantes no pontificado de Francisco, desde logo as mudanças na Cúria: “obviamente, e a eleição de bispos que vem de todo o mundo. Ele tinha uma opção pela Cúria Italiana, em Roma, e foi anti-eurocêntrico nisso, é claro. E, ao mesmo tempo, propôs uma mudança profunda em favor dos menos favorecidos; os pobres para ele sempre foram um assunto de interesse marcante”.
Um Papa ecuménico e reformista
Poirier destaca também outro aspecto que considera “ideológico e estratégico”. Bergoglio teve uma percepção clara de que as pessoas deixavam de ir às paróquias. E começou a converter muitas paróquias em santuários e a apostar mais nas romarias do que na missa dominical: “acredito que fazia parte de uma visão que ele tem do povo de Deus, como ele chama, que é algo que não tem uma relação necessária com a sociologia ou a política. É uma visão um tanto forçada de uma leitura bíblica, ou seja, o povo remanescente de Israel. No entanto, creio que, ao contrário do que aconteceu com o Bento XVI, com Joseph Ratzinger, a quem também devemos muito, certamente, mas, ao contrário dele, o Papa Francisco é (foi) um homem empenhado em revitalizar a Igreja”.
Mas Poirier manifestava-me as suas dúvidas quanto ao sucesso dessa empreitada do homem nascido em San Jose de Flores, nos limites de Buenos Aires, vila hoje incorporada na capital argentina: “Não sei se o pode fazer ou não, porque as distâncias são muito grandes. Os jovens já cortaram laços com o mundo da Igreja”.
Francisco, lembra o jornalista, “escolheu, para dirigir a edição do Observatório Romano na Argentina, um protestante. Fez coisas muito marcantes. Sempre teve uma relação muito boa com o mundo judaico e com o mundo islâmico”.
Criou o Instituto para o Diálogo Interreligioso aqui em Buenos Aires, acrescento. “Sim, sim, sempre foi assim. Agora é difícil dizer se isso nasce da sua formação, da formação de um velho jesuíta, se quisermos, um ex-jesuíta para os espanhóis, muito marcadamente formado pelo conservadorismo, mas, ao mesmo tempo, ele é um homem muito prático e muito atento à realidade. Na verdade, este é um tempo em que o ecumenismo e o diálogo interreligioso são importantes”.
Mas a Igreja faz hoje aquilo que o Papa defende, no sentido de ir onde o povo está? É algo que a Igreja pratica de forma generalizada ou ainda não? Poirier é peremptório: “acho que não o consegue fazer. Ele continuamente propõe, mas, de facto, a afluência às paróquias, às igrejas é cada vez menor e as pessoas de uma geração mais jovem não estão lá. Então, é relativo. Acho que ele percebe que a Igreja tem de sair para conhecer pessoas e ele propõe isso. Mas, para além das suas massivas manifestações em Roma, bem, agora vai fazê-lo em Portugal, com a juventude. Mas que facto curioso. Lembro-me de ouvir Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, dizer porquê os jovens têm de ir às conferências mundiais. Eles têm de estar aqui e trabalhar. Assim que foi Papa, adorou. Gostou muito da ideia de reunir jovens de todo o mundo. Ou seja, a sensibilidade das pessoas é curiosa. E ele realmente tornou-se um Papa. Sempre o imaginei muito mais próximo de Paulo VI. E, no entanto, às vezes, ele lembra-me João Paulo II nessa capacidade histriónica de estar em grandes reuniões e de se manifestar”.
Um Papa pouco intelectual e que dizia não ter medo da morte
“Eu concordo que ele, por exemplo, não tem medo da morte. Ele disse isso, e eu acredito nele nesse sentido. Mas ele tem medo de sofrer, e então gostaria de não sofrer muito. A forma de manifestação é muito curiosa. Por outro lado, ele não é um intelectual. É um homem que, quando você ouve as citações que ele faz, são todas citações antigas que remontam à juventude. É muito difícil encontrar uma citação de um autor mais contemporâneo, porque ele não se dedica à leitura”, afirma à TSF, sem papas na língua, sentado num café no centro de Buenos Aires, o jornalista especialista em assuntos religiosos a quem o Papa, quando era bispo e arcebispo, telefonava a queixar-se de alguma citação ou crítica publicada e que lhe desagradavam.
Do ponto de vista intelectual, não é tão sóbrio como Ratzinger, por exemplo, atira o repórter: “De nenhuma maneira, não. Ratzinger, nisso, foi um luxo. De forma alguma, não. Ratzinger era alguém precioso, intelectualmente. Ratzinger estava mais com as suas raízes agostinianas. Era um homem bastante pessimista, triste com o futuro. Francisco dava-se muito bem com Ratzinger, porque se respeitavam muito. Ele sentia-se muito seguro no papado de Ratzinger porque sabia que Ratzinger o apreciava e respeitava”. Francisco é mais optimista? “Otimista, sim. Ou, pelo menos, tem muita confiança em Deus e nele”.
Pela forma como fala sobre o Papa e pela forma de agir, às vezes dá a ideia de um papa popstar: “é algo disso, ainda que o tenha descoberto tardiamente. E algo disso tinha descoberto tardiamente. Mas algo disso tem. Sim, era um homem desconhecido em Buenos Aires, porque, não dava entrevistas à imprensa. Lembro-me de lhe dizer que tinha de dar entrevistas. E ele disse, ‘não, não, não, porque as boas respostas só me aparecem depois’. Bem, é um péssimo argumento. Obviamente, ele cuidou muito de um perfil muito limitado e, por isso, quando se dizia que viajava em Buenos Aires no metro, ele andava a transportes públicos, sim, mas sempre vestido como um clérigo e parecia um padre qualquer. Ele não era um personagem muito conhecido e as suas intervenções fortes eram mais políticas e não nos média”.
Na sua opinião, em que é que ele falhou ou está a falhar? O que é que foi, digamos, um fracasso deste papado? “Bem, eu acho que ele não fez escolhas muito pluralistas. É um homem que gosta de ser obedecido e, nesse sentido, isso limita um pouco as divergências internas. Tenho sempre a impressão de que ele escolhe pessoas que estão dispostas a pensar como ele ou a obedecer ao seu pensamento. Nesse sentido, não é um homem de diálogo, como se pretende no século XXI”.
O Papa que nunca regressou a casa
Por que é que Francisco nunca veio à Argentina desde que é Papa? “Uma pergunta recorrente. Por que é que Bergoglio não voltou à Argentina desde que foi eleito pontífice? É estranho, porque, na realidade, ele que sempre se disse tão apegado, sobretudo à cidade de Buenos Aires, não se imaginava a morar noutro lugar e, mesmo assim, cortou essas pontes.”
Porquê? Será por causa das críticas que recebeu de se meter na política ou de nunca se afastar muito da política argentina? “Acho que há um elemento que é... Vamos lá ver. Se o Papa vem à Argentina e as coisas correm muito bem para ele, bem, a imprensa internacional dá um desconto porque ele está no seu país. Se não correram muito bem, para a imprensa internacional vai ser um escândalo.
Ou seja, no seu país ele não é tão reconhecido e isso foi, provavelmente, o que impediu um homem tão atento às repercussões políticas de vir. Ou seja, na Argentina, hoje metade do país gostaria que ele viesse e metade do país gostaria que não”.
O problema de Francisco enquanto Papa e argentino é que, afirma o director da Critério, “o mundo não religioso, digo, não católico, porque o mundo judeu e protestante respeitam muito, mas o mundo intelectual, o mundo político independente não sente simpatia pela figura de Bergoglio”.
Qual é o papel da Igreja católica, hoje, numa sociedade argentina que, politicamente, parece tão polarizada? “O país está muito polarizado e, infelizmente, a hierarquia da Igreja, talvez como reação ao seu sentimento de culpa pelo silêncio durante a ditadura militar e algum apoio que havia em alguns setores, agora joga quase que exageradamente na outra direcção. Agora, parece-me que a Igreja é uma Igreja progressista, mas parece-me que, quando essas coisas se acomodam, tudo se vê com muito mais parcimónia depois. A Igreja perdeu o seu espaço. A Igreja já não é significativa. Há algo que me chama a atenção. Não como já foi. Para os setores mais jovens e, se quisermos, mais progressistas, a Igreja não tem uma palavra a dizer. Quer dizer, o que mudaria se... Imaginemos se a Igreja tivesse palavras muito fortes, muito claras em algum sentido e fosse seguida, mas não. A maioria das gerações mais novas desconhece. Eles não estão interessados no que a Igreja possa dizer em diferentes níveis, como também nos costumes, no nível que antes era chamado de nível moral”.
Poirier entende que há um facto muito importante e demonstrativo: “os casamentos religiosos diminuíram enormemente. O batismo de crianças dura mais, mas os casamentos não. Então, a assistência à vida pastoral é muito limitada. Claro, existe um refúgio muito importante. Para o clero, são os setores mais populares onde existe uma mística cristã misturada com tradições”.