Depois de décadas de tensões, ameaças e tentativas de paz, os líderes dos EUA e da Coreia do Norte reúnem-se pela segunda vez em oito meses. Após Singapura, o Vietname foi o anfitrião escolhido.
Corpo do artigo
O país que vai receber esta segunda cimeira entre Donald Trump e Kim Jong Un é muito simbólico. O Vietname foi durante décadas um inimigo mortal dos Estados Unidos, mas em menos de 50 anos tornou-se um parceiro fiável de Washington. É esta a ideia que o Presidente norte-americano quer vender ao líder norte coreano.
Pyongyang pode seguir o mesmo caminho: manter o regime mas tornar-se forte economicamente com a adoção de reformas de mercado. Tudo o que os coreanos têm de fazer é desistir das armas nucleares. Para reforçar esta ideia, Donald Trump deixou esta semana bem claro que a Coreia do Norte pode transformar-se numa grande potência económica sem a alternativa nuclear.
Diversos analistas estão, no entanto, cautelosos e duvidam que este discurso tenha um resultado positivo. É que a Coreia do Norte sabe como funciona o capitalismo e as economias de mercado, mas não quer adotar esse modelo. Há anos que a China tem tentado fomentar a mesma ideia - chegou a arrastar o ex-líder Kim Jong Il em visitas a empresas privadas, sem resultados.
Andrei Lankov, um dos poucos estrangeiros a estudar na Universidade Kim Il Sung e um dos maiores especialistas mundiais no funcionamento interno da Coreia do Norte, defende que o líder coreano é muito claro: "Os mortos não precisam de dinheiro." Ele assegurou à CNN que Kim e os principais assessores são frios, realistas, muito racionais e acreditam que as armas nucleares são a chave para a sobrevivência do regime, dando como exemplo Saddam Hussein e Moammar Kaddafi. Preocupa-os também o desrespeito que Trump demonstrou por acordos alcançados, como o tratado nuclear com o Irão.
Há, no entanto, razões para os dois países olharem para o Vietname como um modelo. Para a Coreia do Norte, é o exemplo de um país comunista de partido único que reformou a economia sem se democratizar. Para os Estados Unidos, é um exemplo de como redefinir um relacionamento e conseguir lucros ao mesmo tempo.
Oito meses depois da cimeira histórica em Singapura, o vago acordo que foi alcançado produziu poucos resultados. Nas últimas semanas diversos senadores democratas e os serviços de informação do país alertaram Trump para o facto de a Coreia do Norte não ter feito qualquer progresso no sentido da desnuclearização. No inicio do mês, um relatório de peritos da ONU acusou mesmo Pyongyang de continuar a fazer jogo duplo. O documento, entregue ao Conselho de Segurança, dizia que o regime está a esconder todo o material nuclear e a vender armamento.
São alertas que o Presidente norte-americano desvaloriza, mantendo a ideia de que a Coreia do Norte já não representa uma ameaça. O chefe de Estado não se cansa de recordar que os mísseis já não voam de um lado para o outro, os testes nucleares pararam, os corpos de diversos soldados regressaram a casa e Pyongyang desmantelou algumas instalações militares. Trump continuou também a enaltecer a relação privilegiada que mantém com Kim Jong Un.
É verdade que a Coreia do Norte suspendeu os testes nucleares em setembro de 2017, mas os peritos americanos acreditam que o país continua a desenvolver os materiais necessários para produzir esse armamento. Pyongyang recusa-se a entregar uma lista das armas nucleares, dos locais onde são produzidos os materiais que permitem a fusão, e das bases onde estão estacionados os mísseis, argumentando que isso facilitaria uma lista de alvos, caso os americanos atacassem o país. O regime norte-coreano também ainda não permitiu a entrada de inspetores internacionais para visitarem as instalações militares.
Ninguém sabe ao certo quais são as intenções dos dois líderes à partida para esta cimeira. Na melhor das hipóteses, Trump e Kim conseguem um avanço na paz e na desnuclearização. Na pior das hipóteses, os Estados Unidos cedem levantando algumas sanções aplicadas à Coreia do Norte, sem que o país diminua o perigo que representa. O meio-termo será uma repetição da primeira cimeira, ou seja, um grande espetáculo mas com pouca substância.
Há, contudo, diferenças entre as duas cimeiras. A aproximação das presidenciais americanas - em que Trump procura a reeleição -, a divulgação esperada para breve do relatório do procurador especial Robert Mueller, e a polémica em torno do muro na fronteira com o México, pressionam o Presidente a trazer para casa um triunfo.
O contexto internacional é também diferente. Nos últimos oito meses, os Estados Unidos iniciaram uma guerra comercial com a China, o que complicou a colaboração entre os dois países. A China é o maior aliado e parceiro comercial da Coreia do Norte, e os Estados Unidos precisam de Xi Jinping para pressionar Pyongyang a desistir das armas nucleares. Ao contrário do relacionamento com Washington, Pequim parece estar cada vez mais próximo dos norte-coreanos.
Por outro lado, Kim Jong Un parece ter encontrado forma de contornar algumas das sanções impostas pela ONU. O embargo a produtos como o petróleo e o carvão está a ser ultrapassado com transferências entre barcos em alto mar. Há bancos e companhias de seguros de vários países que continuam a facilitar os pagamentos destes negócios ilegais. Pyongyang está também a vender armas a países como o Iémen, Líbia e a Síria.
Na última semana, Donald Trump tentou baixar as expectativas para esta cimeira, dizendo que não tem pressa. O Presidente norte-americano vai continuar a insistir com Pyongyang para que abandone o programa nuclear, mas que isso pode ser feito com tempo já que neste momento não estão a ser conduzidos testes. O antigo número dois da embaixada da Coreia do Norte em Londres, que desertou em 2016, deixou no entanto o alerta. Thae Yong-ho está convencido que Kim Jong Un vai começar a tentar vender material nuclear, se não conseguir que sejam levantadas algumas sanções económicas.
Apesar de todas as dificuldades, Jenny Town acredita que nesta cimeira vai ser possível fazer avanços em relação a Singapura. A antiga diretora assistente do Instituto Estados Unidos - Coreia, da Universidade John Hopkins, explicou à TSF que os dois líderes devem entender-se sobre um plano de trabalho para diminuir a capacidade nuclear de Pyongyang em troca de algumas medidas de incentivo por parte de Washington. Não se trata de um roteiro abrangente, mas dos primeiros passos de um processo para cumprir os objetivos dos dois países.
"Eu acredito que vamos ter um resultado substantivo, mas esse é apenas o primeiro passo. Depois vem a parte difícil - implementar o acordo. Como a Casa Branca fez pouco para envolver o Congresso neste processo, temo que um Congresso dividido crie obstáculos à implementação. Embora o acordo seja uma negociação do poder executivo, Trump precisa do apoio do Congresso, e de outras agências governamentais, para poder implementar as medidas acordadas," acrescentou Jenny Town.
A investigadora suspeita que os atrasos na execução das medidas podem minar qualquer confiança que se tenha começado a formar e podem fazer descarrilar um processo diplomático potencialmente eficaz. A falta de medidas concretas dos dois lados colocará em causa a abordagem que Trump escolheu para lidar com a Coreia do Norte. "Um processo impulsionado pelas lideranças em que Trump e Kim são responsáveis pelos resultados finais, pode ter sucesso quando se lida com um país onde o líder tem o controlo final, o que não acontece nos Estados Unidos. Pelo contrário, chegar ao fim de duas cimeiras de topo apenas com intenções políticas, será visto como um fracasso."
Justin Arnold um investigador norte-americano, antigo colaborador do blogue sobre a Coreia do norte "38 North", lembrou à TSF um fator que pode influenciar o desfecho da cimeira. Amanhã o antigo advogado de Donald Trump vai testemunhar perante o congresso.
O Wall Street Journal avança que o depoimento de Michael Cohen vai ser explosivo e muito prejudicial para o presidente. Como Trump tem o hábito de desviar as atenções das más noticias com outras mais positivas, Justin Arnold acredita que ele vai ser tentado a fazer um anuncio no fim do encontro com Kim.
Ouvido pela TSF o investigador avança três hipóteses: o anuncio do fim do estado de guerra na Coreia, um passo concreto em direção à desnuclearização ou o anúncio de que Pyongyang aceitou a entrada de inspetores no país.
No Vietname, a cidade de Hanói preparou-se para receber os dois líderes. Um restaurante da capital, Durty Bird, criou mesmo uma ementa especial para a cimeira. A ideia foi do chef irlandês, coproprietário do restaurante. Desde segunda-feira estão à venda os hambúrgueres "Durty Donald" e "Kim Jong Yum".
Colin Kelly explicou que os hambúrgueres foram projetados para capturar o espírito dos dois líderes. "Durty Donald" é tão extravagante como Trump: tem dois hambúrgueres, bacon duplo, e está coberto com fios de frango. Para marcar a grande polémica em torno de Trump, o chef escolheu um molho russo.
Já o hambúrguer "Kim Jong Yum" é feito com barriga de porco defumada, carne de javali, maionese de kimchi e kimchi frito crocante. Uma especialidade com ingredientes tipicamente coreanos.
Outra curiosidade tem estado a mobilizar a imprensa internacional antes do inicio da cimeira. O que foi considerada uma jogada brilhante no xadrez diplomático afinal não se concretizou. O líder norte-coreano tinha reservado em Hanói o mesmo hotel usado pela imprensa que acompanha a Casa Branca. Muitos interpretaram isso como uma estratégia deliberada de Kim Jong Un para se dar a conhecer um pouco melhor aos jornalistas norte americanos.
As ilusões acabaram poucos minutos depois do comboio onde viajou Kim ter parado na fronteira entre a China e o Vietname. O ministro dos Negócios Estrangeiros anfitrião anunciou que a imprensa não pode ficar no hotel, tendo sido transferida para o Palácio Cultural Viet Xo, a poucos quarteirões da unidade hoteleira. Menos de 24 horas antes do inicio da cimeira, não foi dada qualquer justificação para este ato e também não foi dito aos jornalistas com reservas onde é que vão poder dormir.