"Dois mundos distintos." Cidade de Londres dividida para coroação de Carlos III
De um lado, a celebração com bandeiras hasteadas em todas as ruas. Do outro, "não há qualquer elemento decorativo que faça crer que vai haver uma coroação já amanhã [este sábado]". É o caso de Brixton, onde "as pessoas parecem estar um bocadinho distantes daquilo que vai acontecer".
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As atenções do mundo vão estar, este sábado, concentradas na coroação do rei Carlos III e da rainha consorte, Camila, um grande evento com muitas curiosidades e no qual os pormenores são essenciais.
A enviada especial do Jornal de Notícias a Londres, Ana Isabel Moura, descreve à TSF o ambiente festivo que decora a Abadia de Westminster e diz que "é impossível não se perceber que vai haver uma coroação" já este sábado.
"Há bandeiras do Reino Unido em todas as ruas por onde se passa. Quem chega a Londres e não sabe que vai haver a coroação, rapidamente fica a perceber o ambiente festivo e de celebração que se vive. Seja pelas bandeiras do Reino Unido que estão hasteadas em todas as ruas, como também por bandeiras alusivas à coroação do rei Carlos III", expõe.
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Mas a apenas "quatro estações de metro" do Palácio de Buckingham o cenário é outro, parecem "dois mundos distintos" na mesma cidade.
"Aqui em Brixton não há bandeiras nem qualquer elemento decorativo que faça crer que vai haver uma coroação já amanhã [este sábado]", afirma.
A enviada especial sublinha o "sentimento de alienação" que há nesta área mais pobre da capital, onde a população se recusa a falar aos jornalistas.
"As pessoas parecem estar um bocadinho distantes daquilo que vai acontecer", revela.
A cerimónia vai juntar, em Londres, as mais antigas tradições da monarquia inglesa com as mais modernas tendências da comunicação e do entretenimento.
O embaixador José Bouza Serrano, que já escreveu livros sobre a monarquia britânica, e que ocupou as mais altas posições no Protocolo do Estado em Portugal, admite à TSF que a dimensão desta celebração é mais um sonho do que um pesadelo para os profissionais da área.
O monarca assume então o poder de diplomacia e influência, através do encontro com embaixadores ou outros líderes internacionais e a participação em eventos e cerimónias de interesse público ou nacional. O rei reúne-se semanalmente com o chefe de Governo, tendo nestes oito meses trabalhado com dois, Liz Truss e Rishi Sunak.
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Sobre a preparação do rei de Inglaterra para estas funções, o diplomata José Bouza Serrano afirma que apesar de Carlos III estar preparado, o monarca tem vários desafios que se revelam complicados de ultrapassar.
"Estamos num período um bocado difícil da sua existência. Esta saída do Brexit não tem sido boa e eu acho que eles próprios [monarquia britânica] não irão reconhecer, mas verificam tudo isso. Há o problema também da unidade do reino e o problema da Escócia e o problema da Irlanda. Tudo aquilo vai ser um grande trabalho para o rei a manter a unidade do reino. A Commonwealth está com uma crise de republicanismo e, de repente, as pessoas querem reescrever a história e contestam tudo o que foi a colonização, mas isso é a nível mundial e eles também não conseguem escapar disso".
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Apesar desta nova realidade, Serrano realça que a maioria da população "gosta de ter um monarca, gosta de ter uma instituição" e que as vozes dissidentes são apenas "uns milhares no meio de milhões".
"No meio disto tudo, eles [o povo] são maioritariamente monárquicos. Poderá haver uns milhares de pessoas, no meio daqueles milhões, que contestem o rei, mas quando não se desce, e eles estão muito acima disso, quando não se desce a partir dos 50% da população e eles estão muito longe disso, eles gostam. Eles gostam de ter um monarca, gostam de ter a instituição", remata.
Eis alguns pontos essenciais sobre os detalhes da cerimónia faustosa de coroação do sucessor de Isabel II:
O cerimonial militar
Mais de seis mil militares britânicos vão participar na coroação do rei Carlos III, o maior destacamento cerimonial das Forças Armadas do Reino Unido em sete décadas, incluindo soldados, marinheiros e aviadores.
Perto de 400 membros de tropas de 35 países da Commonwealth também vão estar envolvidos nas cerimónias.
Salvas de canhão vão ser disparadas de bases do Exército britânico em todo o país e de navios de guerra em alto mar.
No final, mais de 60 aviões militares, incluindo spitfires da Segunda Guerra Mundial e caças modernos, vão sobrevoar o Palácio de Buckingham.
Os convidados
O príncipe Harry vai assistir à cerimónia de coroação do pai, o rei Carlos III, na Abadia de Westminster, mas a esposa, Meghan, duquesa de Sussex, permanecerá na Califórnia com os dois filhos do casal, o príncipe Archie e a princesa Lilibet.
A presença pôs fim a meses de especulação, resultado da tensão na família real criada pelas entrevistas televisivas e a publicação do livro de memórias de Harry, chamado "Sombra", no qual criticou em especial o irmão e a madrasta.
Para a cerimónia da coroação, na Abadia de Westminster, foram formalmente convidadas 2300 pessoas, sendo que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, é um deles.
Quem mais vai comparecer? Vários líderes estrangeiros, como os Presidentes francês, Emmanuel Macron, alemão, Frank-Walter Steinmeier, filipino, Ferdinand Marcos Junior, bem como a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, o primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese.
Camilla Tominey, editora-adjunta do jornal Daily Telegraph e conhecedora da família real afirma que Londres é agora uma "capital mais diversa", num país que também mudou não só a nível social, mas também económico, geopolítico, militar e religioso.
Para refletir esta multiculturalidade, no interior da Abadia de Westminster vão estar, entre dignitários e realeza, centenas de cidadãos comuns, selecionados pelas contribuições para a sociedade.
Numa bancada erigida para a ocasião em frente ao Palácio de Buckingham vão estar 3800 veteranos militares e profissionais de saúde e apoio social.
O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, estará ausente, sendo representado pela primeira-dama, Jill Biden.
Nas ruas, esperam-se milhões, para assistir aos cortejos e à tradicional apresentação na varanda do Palácio.
Os convites
Durante décadas, Carlos foi uma voz ativa na defesa do ambiente e sustentabilidade e do combate à poluição e alterações climáticas, mas enquanto rei está limitado nas intervenções em questões políticas.
Os mais de dois mil convidados receberam convites em papel reciclado, refletindo a preocupações de Carlos III com a conservação e proteção ambiental.
Apesar do número avultado, José Bouza Serrano lembra que são "muito menos pessoas do que na coroação da mãe [rainha Isabel II]".
A decoração em estilo medieval incluiu um desenho do Homem Verde, uma figura do folclore britânico que simboliza a primavera e o renascimento.
A preparação destas cerimónias é de elevada exigência, mas Serrano destaca que é "um pesadelo compensatório", já que "são as grandes cerimónias que são sempre mais esperadas".
A comida das festas
O rei e a rainha escolheram uma quiche com espinafres, favas e estragão como prato ideal para partilhar nas festas de rua, no domingo.
A escolha da "Coronation Quiche" teve por base o facto de poder ser servida quente ou fria e não ser "muito complicada de cozinhar ou necessitar ingredientes caros ou difíceis de encontrar".
Desde a coroação de Isabel II em 1953, "Coronation Chicken", um prato frio de frango com molho de caril e natas, conquistou o país e tornou-se um clássico em festas e até como recheio de sanduíches.
"Penso que vai ser uma linda cerimónia. Dizem as pessoas que têm medo que o tempo não esteja bom, mas quando foi a coroação da rainha Isabel [II] escolherem o dia que era o melhor e choveu. Portanto, nunca se sabe como é que o tempo pode prejudicar uma cerimónia, mas, em princípio, espera-se um dia magnífico", disse o embaixador.
A unção do rei
O óleo utilizado para a unção do rei será livre de produtos animais e foi perfumado com jasmim, sésamo, canela, rosa, néroli, benjoim, âmbar e óleo de flor de laranjeira perfumado.
Tradicionalmente, incluía âmbar cinzento obtido no intestino de baleias.
Carlos III é o quadragésimo monarca a ser coroado em Westminster. O antigo chefe do Protocolo do Estado realça à TSF a importância deste momento, que já não se realiza "há 70 anos", uma vez que "hoje em dia, mais ninguém tem essa unção, que no fundo é uma ligação com Deus, é uma ligação divina e mais nenhuma das casas reais tem esse protocolo".
"Há 70 anos que não se fazia esta cerimónia, veremos uma parte nova, com as novas siglas do rei, todos as casacas estão a ser bordadas, as cadeiras estão a ser estofadas com os novos monogramas. Tudo isso, como eles fazem isso muito bem, os ingleses são mestres e toda a gente os copia, estou convencido de que toda essa parte vai correr lindamente. Os próprios cortejos, eu espero uma grande cerimónia e um grande espetáculo ao mesmo tempo", conta José Bouza Serrano.
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O cortejo da coroação de Carlos III até à Abadia de Westminster será mais curto do que a rota feita por Isabel II em 1953, numa carruagem moderna e confortável, e a cerimónia religiosa também será mais breve e sóbria.
Numa rutura com o passado, o rei e rainha consorte vão sair do Palácio de Buckingham numa carruagem de alumínio e com suspensão hidráulica, mais cómoda para dois septuagenários.
Apesar de ser puxado a cavalos, o veículo tem aquecimento e ar condicionado, vidros elétricos e um sistema de suspensão hidráulica.
"Não creio que seja segredo que ambos têm problemas de costas e por vezes levam almofadas para eventos", adiantou a jornalista britânica.
Já o regresso será feito numa carruagem de madeira com 260 anos, utilizada em todas as coroações desde 1831, e que é conhecida por ser bastante rígida e desconfortável.
Isabel II descreveu a Carruagem de Estado Dourada como "horrível", a rainha Vitória queixou-se da "oscilação preocupante".
Guilherme IV, conhecido como o "Rei Marinheiro", disse que era como "estar a bordo de um navio sacudido num mar agitado".
Com quatro toneladas, é tão pesada que só avança ao ritmo de caminhada. O que dará mais tempo às pessoas ao longo do percurso para verem o rei e a rainha recém-coroados.
O percurso de dois quilómetros vai ficar aquém dos oito quilómetros que a mãe percorreu em 1953, juntamente com o pai, príncipe Filipe, alongada para poder ser vista por mais pessoas.
Na altura, estima-se que três milhões de pessoas terão enchido as ruas de Londres para aclamar a jovem rainha de 27 anos, que circulou durante duas horas na emblemática Carruagem Dourada.
Os pajens reais
O príncipe George, o neto mais velho do rei e segundo na linha de sucessão, será um dos quatro jovens pajens a ajudar o monarca durante a cerimónia.
A rainha consorte, Camila, terá também quatro pajens: os netos Gus, Louis e Freddy, juntamente com o sobrinho-neto Arthur.
A coroa da rainha
Camila será coroada com uma coroa feita para a bisavó de Carlos, a rainha Maria, em 1911, em vez de ter uma nova feita, como sucedeu com as rainhas consorte que a antecederam.
O Palácio indicou que foram feitas alterações "menores" para "refletir o estilo individual de Camila" e "prestar homenagem" à falecida Isabel II ao integrar diamantes da coleção pessoal da sogra.
Práticas ancestrais, objetos simbólicos e joias requintadas vão sobressair durante a coroação, mas a cerimónia foi modernizada e simplificada para refletir um novo contexto sociopolítico e económico.
Para evitar críticas sobre colonialismo, foi removido o diamante "Koh-i-Noor", originário da Índia e famoso pelo tamanho e pela controvérsia sobre a forma como chegou às mãos da rainha Victoria, no século XIX.
O embaixador José Bouza Serrano fala "num período difícil", que se deve não só à "contestação do que foi a colonização", mas também à "saída do Brexit, que não tem sido boa" e ao problema "da unidade do reino", nomeadamente com a Escócia e a Irlanda.
Nascida Camilla Rosemary Shand em 17 de julho de 1947 numa família de classe média alta, a agora rainha consorte conheceu o príncipe Carlos em 1971 mas, após um breve caso com o herdeiro do trono, casou com Andrew Parker Bowles, do qual teve dois filhos.
O casal divorciou-se em 1995, mas só quatro anos mais tarde é que foi vista em público com Carlos, confirmando uma relação amorosa que já se sabia ter continuado ao mesmo tempo que os respetivos casamentos. Durante anos foi conhecida por ser a "terceira pessoa" no casamento entre Carlos e Diana, o que a levou a ser apelidada de "rottweiler".
Depois de décadas diabolizada, nomeadamente na imprensa, a rainha consorte tem vindo a conquistar os britânicos. A rainha Isabel II também se rendeu aos encantos de Camila e alguns meses antes de morrer, expressou o "sincero desejo" de que esta fosse conhecida como rainha consorte quando Carlos subisse ao trono, pondo fim a anos de discussão sobre o título.
O ponto alto
A cerimónia culminará com a colocação na cabeça de Carlos III da Coroa de São Eduardo, a peça central das joias da coroa britânica, usada apenas para coroações, a última vez das quais em 1953, por Isabel II.
A coroa foi feita para a coroação de Carlos II em 1661, para substituir a anterior, derretida após a execução de Carlos I, em 1649.
Foi recentemente redimensionada para assentar na cabeça de Carlos III, mas quando sair da Abadia de Westminster, o rei vai usar a Coroa Imperial de Estado, criada em 1937 para a coroação do avô, rei Jorge VI.
Apesar de ambas serem ricamente decoradas com pedras preciosas e semipreciosas, como safiras e rubis, a segunda é cerca de um quilo mais leve.
