Grande Reportagem TSF: na Alemanha do grande quartel fantasma
Em plena Guerra Fria, foi a maior base militar soviética na Alemanha, casa para mais de 40 mil soldados. Agora, Wünsdorf, na antiga República Democrática Alemã, vive entre o abandono e a reconstrução, entre os que preferem esquecer e os que querem preservar a história. 34 anos depois da queda do muro de Berlim, que Alemanha é esta do grande quartel fantasma?
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O relógio ficou parado às 12h51 de sabe-se lá que ano. Estão lá os ponteiros e os números, no alto do edifício amarelo-torrado, mas já não mexem, como já nada mexe ali. De costas para o relógio está Lenine, em pedra, a dar as boas-vindas à "Haus der Offiziere", a casa dos oficiais soviéticos. "Era o centro de operações do exército soviético na República Democrática Alemã desde 1945 até à retirada, em 1994", introduz o historiador Carlos Gomes, que já visitou o local mais de uma dúzia de vezes para espreitar a maior estátua de Lenine que ainda existe na Alemanha.
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Wünsdorf é discreta nos mapas. Ainda assim, a "cidade proibida", como era chamada durante o período da Guerra Fria, vai atraindo principalmente amantes de história e fotografia. Entre edifícios abandonados, outros reabilitados, e até quartos com vista bunker, há marcas deixadas pela passagem do Imperador Guilherme II, dos nazis, e, mais recentemente dos soviéticos.
"Noventa por cento das construções que existem em Wünsdorf são anteriores à ocupação soviética, do tempo dos nazis ou até mesmo antes. O que os militares soviéticos fizeram foi usar essas infraestruturas. Há, por exemplo, um edifício que era um refeitório militar, nos tempos da ocupação soviética passou a ser uma loja, e, atualmente, depois de restaurado, é ocupado por serviços administrativos da cidade", descreve Sylvia Rademacher, diretora da associação "Bücher und Bunkerstadt Wünsdorf" (Wünsdorf, cidade dos livros e dos bunkers).
Durante quase 50 anos, em plena Guerra Fria, Wünsdorf, a sul de Berlim, foi a casa de cerca de 42 mil soldados e das suas famílias, naquela que foi a maior base militar soviética fora da União Soviética. Era uma cidade fechada à restante RDA, à qual ninguém tinha acesso, salvo algumas exceções. Falava-se russo, na escola estudava-se em russo, nas lojas compravam-se produtos soviéticos, e todos os dias partia e chegava um comboio proveniente de Moscovo.
"A denominação "cidade proibida" terá sido dada mais tarde, nessa altura não se usava. Mas é certo que até a estrada nacional, a B96, estava cortada. Ou seja, para os habitantes da República Democrática Alemã era impossível aceder a esta zona. As pessoas que viviam em Wünsdorf, viviam em casas fora da área militar. Só alguns civis, que por razões de trabalho precisavam de entrar, tinham um passe que lhes dava acesso temporário", lembra Sylvia Rademacher, que partilha um episódio da adolescência.
"Quando eu era jovem, por volta de 1986, vim cá passar o verão a um acampamento fora da área restrita, mas pude ir visitá-la apenas um dia. Mas havia uma relação entre os alemães que viviam nesta zona e os militares. E às vezes, depois de beber umas vodkas, até passeavam pela zona restrita", recorda, entre risos.
Na "Haus der Offiziere" já não há garrafas esquecidas, nem outros objetos, mas as paredes quase parece quererem falar. Era nos jardins que aconteciam as grandes paradas militares com "centenas de soldados a fazerem a saudação militar", aponta Carlos Gomes, coordenador do projeto "Lenine is still around". Ao lado há um teatro "bastante chique, com cadeirões e cortinas vermelhas, como cor dominante do exército vermelho", onde havia concertos, exibições de dança com "grupos que vinham especificamente cá para trazer um pouco de recordações da pátria para pessoas que passavam cá anos e anos a servir na Alemanha."
Carlos Gomes defende que da história "se pode aprender muito", mesmo que esta "não seja um conto de fadas", sublinhando a importância de preservar locais como este.
"Na Alemanha, a cultura de lembrança e recordação é bastante seletiva, e tudo o que tem a ver com a RDA não é tão bem visto e chega até a ser ativamente eliminado dos álbuns de recordações oficias", lamenta, enquanto olha para uma piscina vazia, onde faltam vários pequenos azulejos que antes cobriam todo o fundo.
Para a Katja Hoyer, a RDA é "uma parte enorme da história moderna da Alemanha", e por isso não deve ser apagada, nem esquecida.
"Só porque viveste numa ditadura, pensar que foste sujeito a uma lavagem cerebral e que não entendes nada de política ou do mundo é condescendente. Faz com que as pessoas sintam que não têm voz. O que eu digo é que o sistema não era bom, mas as pessoas tinham as suas vidas, viviam, faziam coisas, eram conscientes do sistema político onde estavam inseridas. Penso que isso dá um certo sentido ao que passaram antes de 1990, faz com que o que viveram tivesse significado. Isso perde-se ao tentar fazer de conta que esse período da história não existiu, as pessoas forem quase proibidas de pensar ou falar do que passaram", enfatiza a historiadora, nascida na RDA.
A autora do livro "Beyond the Wall - East Germany, 1949-1990" acredita que o período imediatamente após a reunificação deixou sequelas, "com a privatização da economia da Alemanha de Leste feita a correr e envolta em corrupção".
"Muitos alemães de leste sentiram que o seu país tinha sido vendido. E aí está o problema. Assumiu-se que as pessoas votaram a reunificação, então tudo tinha de ser feito rapidamente, sem sequer importar como", fazendo com que atualmente ainda exista "uma grande separação entre as duas Alemanhas".
"Psicologicamente ainda há o sentimento de que as pessoas de leste foram deixadas para trás. Não se sentem ouvidas. Não sentem que estão a ser tidas em conta. As pessoas estão cada vez mais zangadas e isso não é algo que vá desaparecer sozinho, é preciso dialogar, é preciso trabalhar para tentar resolver estas diferenças", destaca.
Um sentimento de frustração e desigualdade que dá espaço à extrema-direita, com o partido Alternativa para a Alemanha (AfD) a ganhar cada vez mais espaço.
"Há poucos alemães de leste a ocupar posições de elite, por exemplo. Com a exceção da política, onde a representatividade não é semelhante, mas quase. Acontece nas áreas financeira, administrativa, nas universidades, onde ainda há menos alemães de leste em cargos de topo. E depois, os cidadãos da antiga RDA são mais pobres, basta olhar para os ordenados, os imóveis que têm. Ou seja, há diferenças objetivas entre os dois lados", explica o politólogo Aiko Wagner, da Universidade Livre de Berlim.
"Em média, os alemães de leste são mais pobres. Sentem-se mais ameaçados pelas crises, aumento os preços da energia. Isto faz com que fiquem mais disponíveis a discursos e partidos populistas e de extrema-direita. Outra explicação é a chamada hipótese de contacto, isto é, se não tiveres contacto com estrangeiros, tens mais tendência a ser contra os imigrantes, a ser mais racista. Se conheceres muita gente de outros países, terás menos tendência em apoiar a extrema-direita. A isto junta-se a frustração. A situação atual não é tão boa como as pessoas esperariam e como foi prometido depois da reunificação, por isso há uma grande desilusão e falta de confiança na política", aponta o especialista.
Em junho deste ano, a AfD venceu, pela primeira vez, umas eleições distritais no estado federado da Turíngia, no leste do país. Mas também são mais os alemães do lado ocidental a votar na extrema-direita, com o partido a conseguir, em outubro, os melhores resultados de sempre nos estados federados do Hesse e da Baviera, com um segundo e terceiro lugar respetivamente.
"É verdade que têm mais apoio no Leste, mas as eleições na Baviera mostraram-nos que é um problema de todo o país e de toda a Europa. Acho que no Leste ganha mais peso porque há uma grande incerteza. As pessoas têm menos poupanças, as condições económicas são mais precárias, os salários são mais baixos. Tudo isto combinado faz com que a atual crise seja muito mais sentida na antiga Alemanha de leste do que na antiga Alemanha ocidental", remata Katja Hoyer.
No próximo ano, a 22 de setembro, o estado de Brandeburgo, ao qual pertence Wünsdorf, a antiga cidade soviética em plena RDA, também vai a votos. A autarca do FDP, o Partido Democrático Liberal, Wiebke Şahin-Schwarzweller, não duvida da vitória da AfD na região. Infelizmente, os restantes partidos "já vão tarde de mais para mudar o rumo político" do estado federado até agora governando pelo SPD (Partido Social Democrata alemão).
"Os partidos não fizeram o suficiente pela região e a população está muito descontente. O governo não ouve as pessoas, o que elas precisam, esperam ou desejam. E não me ouve a mim que sou presidente da câmara. Não sabem lidar com os receios das pessoas. Mesmo que o nosso partido tentasse fazer algo agora, já iria tarde demais porque já ninguém acredita. Os eleitores não confiam no governo, esse é o maior problema atualmente, por isso votam AfD, porque estão insatisfeitas. Se essa é a solução certa? Não me parece, mas penso que é o que vai acontecer", lamenta a autarca, realçando que, de acordo com as últimas sondagens a AfD consegue chegar aos 32 por cento dos votos.
Wiebke Şahin-Schwarzweller quer abrir Wünsdorf a todos, considerando importante a multiculturalidade do município. Muitos dos edifícios abandonados terão, em breve, um novo destino.
"Queremos devolver algumas destas áreas aos cidadãos, construindo apartamentos, jardins de infância, parques infantis. Neste momento já há muita construção a decorrer, mas alguns projetos estão parados porque é necessário criar as infraestruturas de base. Penso que um terço da área já está construída e pronta, o resto está em curso. Temos os planos, estamos a progredir e tenho muita vontade de devolver estes espaços às pessoas da melhor forma possível", expressa.
Hans-Albert Hoffmann, que serviu como tenente-coronel no exército da Alemanha de Leste até 1990 e conduziu o processo de conversão de Wünsdorf, recorda a cidade que encontrou quando o último comboio para Moscovo partiu da estação, em agosto de 1994.
"Ficou uma cidade assustadora. Vazia e escura. Não havia iluminação, apenas nas ruas principais. Tinha, para trabalhar comigo, 300 pessoas que estavam na altura desempregadas, mas a receber subsídio do estado. Muitas eram mulheres e pessoas de mais idade. A função delas era recolher e limpar o interior de todos os edifícios", lembra, detalhando o trabalho de três anos, em que muita coisa ficou para trás.
"Uma das coisas que mais me surpreendeu foi a grande quantidade de coisas que deixaram ficar. Os soldados que viviam em Wünsdorf passaram a receber marcos alemães quando o muro caiu. Isso significou um aumento do poder de compra. Por isso, muita coisa ficou para trás, principalmente eletrodomésticos. Havia, por exemplo, 860 televisões, mais de mil frigoríficos. Quando partiram, foi-lhes dado um contentor, que era maior ou menor consoante o tamanho da família, o número de crianças. Os soldados que estavam cá, não tinham forma de levar tudo", acrescenta.
Nas casas ainda havia frigoríficos, televisões, camas, restos de munições, materiais químicas perigosas. Apesar da partida das tropas russas ter acontecido quase cinco anos depois da queda do muro de Berlim, Hans-Albert Hoffmann considera que foi uma operação precipitada.
"O prazo inicial até era dezembro de 1994, mas ainda conseguiram antecipar quase meio ano. A Alemanha tinha interesse em ver-se livre do exército russo o mais depressa possível. E visto a Rússia receber dinheiro com isso, Gorbachev e, mais tarde, Yeltsin, concordaram com o processo. Apesar de tudo ser feito muito rápido, fico feliz por ter decorrido sem incidentes. Era uma situação muito instável e podia ter corrido bastante mal", confessa.
Sylvia Rademacher olha para o relógio de pulso, que vai avançando para as 2 da tarde. Dali a pouco começa mais uma visita guiada pelos bunkers Maybach I e II e Zepellin, onde funcionava o centro de comando subterrâneo das Forças Armadas, durante a Segunda Guerra Mundial.
"Este sítio também funciona como um aviso. Explicamos o que aconteceu e que é importante lembrar. É um pedaço da nossa história", salienta, história que deve ser contada, sempre.
