"Se as guerras são um negócio, os atores não estatais têm interesse em mantê-las"
Jelena Aparac trabalha há 20 anos nos domínios da paz, segurança internacional e direitos humanos. Coordena um grupo de trabalho independente da ONU sobre utilização de mercenários em guerras. Tem o grupo Wagner na mira. Mas é preciso provar.
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Jelena Aparac nasceu e cresceu na Croácia, perto de Zagreb, testemunhou o sofrimento causado pela guerra na antiga Jugoslávia, tem-se empenhado em promover a resolução pacífica de conflitos como especialista na área das empresas, direitos humanos e conflitos armados. É autora do livro "Business and Human Rights in Conflict". Faz parte da direção de várias organizações que promovem o respeito das empresas pelos direitos humanos. Veio a Portugal participar numa conferência sobre Direitos Humanos e empresas em situações de conflito e pós-conflito, organizada pela Nova School of Law.
Quando olhamos para o que se está a passar na Ucrânia, o que é que podemos dizer sobre a presença de empresas privadas na guerra?
Como membros do grupo de trabalho das Nações Unidas que trabalha no domínio da utilização de mercenários, temos o mandato de monitorizar o papel e as violações dos direitos humanos, de acordo com o direito humanitário das Nações Unidas, por parte de empresas militares e de segurança privadas em todo o mundo. E um dos contextos que temos vindo a acompanhar de perto é, naturalmente, a situação na Ucrânia. Temos a informação de que há vários atores a participar no conflito, tenham eles o estatuto de mercenários, o que é sempre difícil de identificar e provar, ou de empresas privadas de segurança militar, ou de atores relacionados, mas sim temos conhecimento de que têm estado envolvidos no conflito na Ucrânia. Temos estado envolvidos num diálogo com alguns Estados sobre a questão da presença de alguns atores específicos.
Mas têm-se debruçado especificamente sobre o grupo Wagner?
Nós temos, como disse, o mandato alargado para mercenários e empresas militares e de segurança privadas e atores relacionados. Por isso, quando interpretamos o nosso mandato de forma abrangente, também podem ser os combatentes estrangeiros. Atuámos sobre a questão do Wagner, especificamente, sim.
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E quando menciona que tem estado em contacto com os Estados de onde provêm esses atores, quer dizer que, neste caso, tem estado em contacto com as autoridades da Federação Russa?
Sim. De acordo com o mandato do grupo de trabalho, podemos comunicar com os atores estatais e não estatais através de uma ferramenta específica que temos à nossa disposição, que se chama sistema de comunicação, em que enviamos cartas de alegação. E, num caso, enviámos a carta de alegação à Federação Russa, em particular, em relação ao recrutamento de prisioneiros nas prisões russas que estiveram envolvidos no conflito na Ucrânia, em particular na Ucrânia Oriental,
Como é que descreveria a ação e o comportamento de acordo com a ética da guerra, etc., deste grupo no caso da Ucrânia?
Bem, no caso da Ucrânia, como no Mali ou na República Centro-Africana, na Líbia, que também identificámos, nos últimos anos, o grupo Wagner tem estado muito ligado à violação dos direitos humanos e do direito humanitário internacional, e foi também por isso que agimos nesta questão. Documentámos um grande número de violações maciças dos direitos humanos, incluindo também na Ucrânia. Reagimos fortemente no Mali e, recentemente, também na República Centro-Africana, em 2020 e 2021. Reagimos em duas ocasiões. E, infelizmente, isto é algo que parece ser muito sistemático na forma como eles operam, o seu modus operandi, por assim dizer.
Mas podemos assumir, com base em provas credíveis, que o respeito pelos direitos humanos nas atividades militares do grupo Wagner, por exemplo, tem sido diferente do respeito pelos direitos humanos ou das ações levadas a cabo pelas unidades do exército regular na guerra?
Nós não temos o mandato para monitorizar as forças armadas de um Estado. Portanto, não controlamos de forma realista as forças armadas e as suas operações. Controlamos, sim, quando atuam em conjunto com mercenários ou empresas militares e de segurança privadas. Por isso, só posso dizer que o que temos tentado compreender até agora, e é algo que ainda precisa de muita documentação e provas mais consolidadas, é a relação exata entre a Federação Russa e o grupo Wagner. E, em particular, o que temos tentado perceber, e esta é uma das últimas cartas de alegação que enviámos à Federação Russa, é quem, de facto, manda na Wagner, quem dá ordens e quem é, em última análise, responsável, incluindo potencialmente responsável em termos criminais, se houver provas para responder pelos crimes que possam ser cometidos pelos funcionários do Wagner.
Com base nas provas que tem recebido até agora, a liderança do grupo de Wagner no terreno, como Yevgeny Prigozhin deve ser levado a um tribunal de guerra?
Bem, Há provas suficientes para confirmar a existência do Wagner, mas o que ainda não está claro é qual é o estatuto legal do grupo Wagner. É de facto uma empresa militar privada? É um grupo paramilitar? É uma forma identificada de milícia ou algo do género? E o que ainda não está claro, principalmente, é qual é a sua relação com o Estado. E depois, quem dá as ordens? Prigozhin fez declarações públicas, houve algumas informações de que ele está efetivamente ligado ao Wagner, mas até que ponto, isso é algo que ainda teria de ser provado. E se houver um procedimento criminal...
Mas ele assume que é o chefe...
Ele assume que é o chefe. E nós também acreditamos que ele pode ser, mas em termos de processo criminal, seria necessário provar, para além de qualquer dúvida razoável, que ele é, de facto, o chefe. E a relação entre Wagner e Prigozhin e o Estado ainda é ainda muito vaga. E voltando a um aspeto que é crucial quando falamos dos grupos do tipo Wagner que estão a ser utilizados, nós identificámos a multiplicação de atores não estatais nos conflitos armados em todo o mundo. E o que também identificámos é que os Estados recorrem cada vez mais a atores não estatais, como o grupo Wagner, para se desligarem do conflito, para criarem uma espécie de muro de responsabilidade e dizerem: "Bem, na realidade, não somos parte no conflito e, por isso, não podemos ser responsáveis por quaisquer crimes que aí ocorram. E também, publicamente, no seu próprio país para dizer, bem, não temos vítimas, porque os nossos militares não estão a participar no conflito.
É o que tem estado a acontecer no Mali ou, por exemplo, na República Centro-Africana?
Sim. E todo o contexto e as razões pelas quais existe, na realidade, um grupo como o Wagner é para criar esta negação plausível de que o Estado, neste caso concreto, o Estado russo está, de facto, implicado na guerra, no conflito armado, seja na Ucrânia, no Mali, na República Centro-Africana, na Líbia ou noutros. E é por isso que existem. Portanto, apesar de podermos, através de relatos nos meios de comunicação social, e de alguns investigadores que aparecem agora, criar a ligação entre Prigozhin e Wagner, em processo penal, isso tem de ser provado para além de qualquer dúvida razoável, no que diz respeito também ao papel deste responsável hierárquico, de Prigozhin sobre o grupo Wagner, nomeadamente dando ordens e sendo capaz de alterar o seu comportamento, ou punindo os que cometem crimes. Ainda não dispomos dessa informação.
Mas se é tão difícil provar as coisas para além de qualquer dúvida razoável, como disse, no caso de alguém que afirma muitas vezes e publicamente a liderança do grupo Wagner, mais difícil será provar alguma espécie de responsabilidade de pessoas como Valeri Gerassimov, ou Sergei Shoigu, ou no fim de contas, Vladimir Putin...
Bem, depende de quais crimes, a responsabilidade deles em conflitos armados como funcionários do Estado pode ser diferente. Mas gostaria de voltar a uma situação que é um exemplo muito claro de como é difícil conseguir a responsabilização pelos crimes do Grupo Wagner. Tivemos informações de que funcionários do Wagner foram implicados em violações dos direitos humanos de um cidadão sírio, com imagens de cidadãos queimados, e o irmão dele reconheceu a pessoa alegadamente responsável, tendo o caso sido levado ao tribunal de Moscovo. Infelizmente, as partes envolvidas neste caso, que atuavam em nome do falecido e da sua família, não obtiveram justiça. Solicitámos à Federação Russa que nos desse informações sobre o motivo pelo qual nem sequer investigaram este crime, algo que poderiam e deveriam ter feito, mas não obtivemos resposta. E isso mostra muito claramente que a responsabilização de um crime, neste contexto concreto, ocorreu no território da Síria, por isso, poderíamos ter jurisdição síria ou russa, mas não houve jurisdição, não houve caso. E se pegarmos noutro exemplo, na relação entre a República Centro-Africana ou o Mali, e a Rússia vai ser muito semelhante, em particular, porque tivemos as declarações oficiais; mas, a nível interno, a responsabilização vai ser muito problemática. A nível internacional, resta saber como é que os tribunais internacionais, em particular o Tribunal Penal Internacional, vão documentar as violações e a quem é que vão poder associá-las. E se vai haver, de facto, um tribunal especial sobre a Agressão e qual será o mandato e a jurisdição do tribunal? Isso ainda está por ver, claro que vai ter uma jurisdição, mas mesmo que a tenhamos, ainda temos de ter as provas.
Mas pensa que um tribunal especial que julgue o crime de agressão, também se poderá concentrar neste tipo de grupos privados?
Depende. Se os investigadores encontrarem provas suficientes para os relacionar com as pessoas que vão acusar, então essa pode ser uma opção. Mas, no âmbito dos processos penais internacionais, a estratégia é normalmente dirigir-se às pessoas mais graduadas. E, claro, onde existem as provas mais fortes e as maiores hipóteses de sucesso para que o processo vá mais longe. Portanto, tudo depende do que está a ser recolhido em termos de provas. A Ucrânia é, de facto, um exemplo positivo em termos de documentação, porque tem havido de facto muita documentação e investigação. Por isso, esperamos poder assistir a algum tipo de responsabilização, incluindo de gente da Wagner, e esperamos certamente que assim seja. Mas houve outros sítios onde nem sequer houve documentação. Por isso, vai ser difícil conseguir a responsabilização nesta fase.
Mas, e do outro lado da trincheira, será que as violações dos direitos humanos cometidas por eventuais grupos armados ucranianos estão a ser seriamente investigadas?
De momento, ainda estamos a monitorizar a situação. E somos peritos independentes. E, claro, aplicamos a nossa independência e neutralidade em todas as situações, monitorizamos todos os lados. Por isso, obviamente, é importante salientar este facto, até à data, não recebemos qualquer informação sobre quaisquer grupos que se enquadrem no nosso mandato. Por isso, devo salientar que não podemos monitorizar as forças armadas, mas qualquer empresa ou mercenário que opere do lado da Ucrânia, nós obviamente monitorizaremos e, se recebermos informações suficientes e provas credíveis, atuaremos também nesse sentido. É importante que as partes, e temos apelado a todos os Estados e a todas as partes em diferentes conflitos em todo o mundo, se abstenham de utilizar mercenários e empresas militares e de segurança. Porque temos assistido a essa tendência em todos os conflitos. Quando há uma presença de mercenários e de empresas militares e de segurança privadas em zonas de conflito, é mais provável que o conflito seja mais intenso. Haverá mais abusos dos direitos humanos e violações do direito humanitário. E o mais provável é que o conflito dure mais tempo. Porque é um negócio e se a guerra é um negócio, então eles têm interesse em manter as atividades de guerra.
Não são todas as guerras sobre negócios?
Exatamente, poderíamos dizer isso cada vez mais. Sem dúvida. Mas esperamos e é isso que temos apelado a todos os atores, a todos os intervenientes, atores não estatais, atores estatais, para que se abstenham de utilizar mercenários e empresas militares e de segurança privadas, porque os riscos são obviamente muito maiores quando estão envolvidos. E temo-lo visto em conflitos recentes.
Onde viveu durante as guerras dos Balcãs?
Na Croácia.
Onde na Croácia?
Kutina.
Onde é que fica?
Fica a 80 quilómetros de Zagreb.
Poderia comparar de alguma forma o que foi alegadamente feito, ou o tipo de atividades levadas a cabo por um grupo como Wagner com o que foi feito pela Naser Oric, na Bósnia, ou pelos Tigres de Arkan, ou pelo Capitão Dragão, na Sérvia, ou mesmo pelos seus concidadãos do HOS, as forças de defesa croatas?
Sim, sem dúvida. As guerras na Jugoslávia marcam esta nova tendência de mudança, em que há um número crescente de atores não estatais envolvidos em conflitos armados e em que é mais difícil identificar se os conflitos armados se enquadram nas definições clássicas do direito humanitário, se são conflitos armados não internacionais ou conflitos armados internacionais. Temos assistido a isso desde a guerra na Jugoslávia e a muitos outros conflitos em todo o mundo, incluindo a Síria e a Líbia, agora na Ucrânia, absolutamente. Mas uma coisa que receio e vejo que não foi uma lição aprendida com a guerra na Jugoslávia é a forma como gerimos a presença de vários grupos armados não estatais numa zona de conflito, uma vez terminado o conflito. Quero com isto dizer que há uma reforma do setor da segurança que normalmente é posta em prática (e estamos atualmente a trabalhar nela no nosso grupo de trabalho sobre a utilização de mercenários) e essa reforma do setor da segurança deve incluir também os atores não estatais e a forma como estes são integrados na vida civil após a guerra. E já vimos que se isso não for feito, todos estes atores, com toda esta competência militar, vão simplesmente passar de um conflito para outro porque é a única coisa que sabem fazer. Assim, deparamo-nos com um mercado internacional, legal e ilegal, e também com um mercado negro de competências que estão a ser utilizadas e recrutadas em diferentes zonas de conflito. Neste momento, o que é preocupante na Ucrânia, e que é muito semelhante à guerra na Jugoslávia, é que vemos todo o tipo de atores armados a operar neste conflito. E uma questão que me preocupa muito é: o que vai acontecer com todos eles quando a guerra acabar? Para onde irão depois? É algo que temos de refletir sobre a forma de abordar esta questão, não apenas na Ucrânia, mas em todos os conflitos e processos de transição pós-conflito, quando falamos de paz transitória e paz sustentável. O que tem sido do meu interesse, e tenho uma publicação a sair no próximo mês sobre esse tema, é a forma como os atores armados na era pós-guerra não foram devidamente integrados na vida civil, não foi um processo bem concebido. Na verdade, nem sequer houve interesse em trabalhar nesse domínio.
O que é um obstáculo à reconciliação pós-conflito...
Sem dúvida. E depois transferiam-se para a segurança privada nacional ou iam para o estrangeiro combater em diferentes zonas de conflito, quer para as PMC"s, empresas militares privadas, quer para trabalhar como seguranças. Mas, em todo o caso, há duas coisas que estão muito relacionadas. O que é que fazemos com as competências que têm, quer sejam para as forças armadas ou para as forças não armadas, para os paramilitares, etc.? O que é que fazemos com eles? E o que fazemos com as armas que transportam e com a transferência de armas, que é extremamente importante na era do pós-guerra, e que também está muito ligada ao papel das empresas militares e de segurança privadas nos conflitos modernos, quando dão formação e ajudam a indústria do complexo militar a vender as suas armas e munições e, depois, recrutam empresas militares privadas para as treinar. Estas são duas questões muito importantes. E lamentavelmente, e isto é extremamente importante, atualmente, não existe nenhum instrumento internacional juridicamente vinculativo que regule as empresas militares e de segurança privadas em todos estes aspetos.
Bem, o que podemos fazer é monitorizar as violações dos direitos humanos e do direito humanitário, um mandato que, infelizmente, é muito limitado. E depois, quando identificamos alguma, dirigimos a nossa carta de alegação, o sistema de comunicações aos Estados, mas também a atores não estatais, o que penso que no nosso caso é extremamente importante porque somos um dos únicos órgãos a nível internacional que pode falar com atores não estatais.
Ao abrigo de um mandato da ONU?
Sim, sob o mandato da ONU como um grupo de trabalho sobre a utilização de mercenários. Podemos abordar as violações dos direitos humanos de atores estatais e não estatais, e estamos mandatados pelo Conselho dos Direitos Humanos. Mas o nosso mandato termina quando os Estados o tomam ou não em consideração, e podemos prosseguir o diálogo. Mas, em última análise, a responsabilidade cabe ao Estado para tomar medidas.
Pelo que li no seu curriculum, contribuiu para a redação do crime de ecocídio, juntamente com importantes especialistas em direito penal. Diria que há um ecocídio na Ucrânia?
Tem havido informações sobre danos ambientais ocorridos em larga escala. Isso está a ser documentado neste momento. Penso que é extremamente importante que isso tenha sido documentado, porque os danos ambientais ocorrem em muitos conflitos e, infelizmente, a comunidade internacional não tem tido isso em conta nas guerras e tribunais anteriores. Por isso, se isso puder ser documentado e eventualmente transformado, de uma forma ou de outra, em procedimentos perante, mais uma vez, depende de qual tribunal, isso seria extremamente importante para a comunidade internacional.
O mesmo se pode dizer do genocídio?
O genocídio é um crime internacional muito complexo, exigiria a unificação de diferentes elementos do crime, incluindo um elemento psicológico muito complexo. Não me parece que o facto de um crime não ser identificado como genocídio seja menos importante. Se falarmos de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade, continuam a existir violações muito graves dos direitos humanos e é extremamente importante que sejam abordadas. E que a responsabilização tenha lugar.
Pensa que o grupo Wagner deve ser considerado uma organização terrorista? É o que afirmam alguns, como a Assembleia Nacional Francesa ou pessoas Reino Unido...
A resolução da Assembleia Nacional Francesa não é juridicamente vinculativa, mas é muito importante do ponto de vista simbólico para enviar uma mensagem de que alguns Estados estão fartos das violações dos direitos humanos cometidas pelo grupo Wagner. E é importante que estejam a ser tomadas algumas medidas para resolver o que a Wagner pode fazer, quais os danos que podem ser causados pelas operações da Wagner. Mas, mais uma vez, mesmo que se trate de uma mensagem importante, ainda assim, se falamos de responsabilização, ainda temos de encontrar um tribunal com jurisdição relevante, que possa unificar todas as provas e apresentar o caso perante o juiz.
E tendo em conta que as operações têm lugar - e é algo que temos vindo a levantar enquanto grupo de trabalho sobre a utilização de mercenários em todos os nossos relatórios - os mercenários e as empresas militares e de segurança, incluindo o grupo Wagner, operam em total falta de transparência em contextos muito opacos. As vítimas têm muitas vezes medo de falar sobre o que lhes aconteceu ou acontece. E nós temos lutado tanto contra isso no contexto da República Centro-Africana, tanto que todas as pessoas começam por dizer que há terror neste país. Foi muito difícil conseguir que testemunhassem oficial e formalmente perante o tribunal. É extremamente complexo.
E não tem qualquer tipo de meios para garantir a proteção dessas pessoas depois?
Bem, depende do tribunal. Depende do tribunal responsável; os tribunais nacionais normalmente têm; os tribunais internacionais também, mas é um tipo de proteção diferente, estão a ser tomadas medidas diferentes, mas têm. Mas tem razão, a questão da proteção é extremamente importante. Mas, mesmo assim, seria necessário que os juízes de instrução ou os investigadores cooperassem. Portanto, de um país para outro, e vimos que alguns países não querem isso bem, mas quem tem o grupo Wagner presente no território, até o chegam a negar. Por isso, é muito difícil esperar que os procuradores cooperem e partilhem provas com outro procurador de outro país. Por isso, infelizmente, temos muitos obstáculos à responsabilização. Mas se não documentarmos os factos, a responsabilização nunca terá lugar. Por isso mesmo, a fase da documentação é extremamente importante. O grupo de trabalho sobre a utilização de mercenários tem tentado enviar às vítimas a mensagem de que estamos ao seu lado, na medida das nossas possibilidades. Tentamos, de facto, ter uma abordagem centrada na vítima.
Disse que um dos problemas ou desafios mais graves era, se bem entendi, a falta de instrumentos juridicamente vinculativos para estas empresas militares e de segurança privadas. Podemos dizer que é assim porque, na qualidade de membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, temos a Federação Russa com o grupo Wagner, mas também temos os Estados Unidos com a Blackwater, por exemplo?
Bem, o grupo de trabalho intergovernamental que foi mandatado pelo Conselho dos Direitos Humanos tem tido reuniões anuais, e uma delas teve lugar em abril, para discutir o conteúdo do instrumento e se o instrumento seria juridicamente vinculativo. Em primeiro lugar, devo dizer que é bastante chocante, porque se trata de um instrumento muito importante, se não mesmo um dos mais importantes para a paz e a segurança internacionais, mas a sala estava quase vazia. Muito poucos Estados estavam a participar nestes debates e apenas três ONG, ou seja, organizações não governamentais da sociedade civil, estavam presentes. Por isso, precisamos de levar os Estados a dialogar. E precisamos de levar a sociedade a apresentar também as suas posições e a defender um instrumento juridicamente vinculativo, que acreditamos ser necessário para estabelecer algum tipo de enquadramento para as empresas militares e de segurança privadas e para a forma como operam, como recrutam e, mais uma vez, voltando à questão dos combatentes que estão a circular no mercado, para que tenhamos algum tipo de controlo e supervisão sobre este processo e sobre as empresas. Os debates, quando olhamos para as declarações públicas dos países, tendem a ser bastante diversificados e, na verdade, com opiniões bastante opostas de um lado para o outro. Por isso, vai ser difícil chegar a um compromisso. Penso que o presidente do Conselho de Direitos Humanos, que é atualmente a África do Sul, está a fazer um trabalho fabuloso na tentativa de encontrar um compromisso. Veremos como as coisas vão correr a partir de setembro, porque a renovação do mandato do grupo de trabalho intergovernamental sobre empresas militares e de segurança privadas terá lugar no Conselho dos Direitos Humanos em setembro. Esperamos que mais jornalistas, sociedade civil e Estados apoiem o processo e defendam um instrumento juridicamente vinculativo. Como, e que Estado, irá alterar a sua posição? Isso é que falta saber.