Raramente um título de um livro resume eficazmente uma conversa ou entrevista. Este é um desses casos. O investigador João Ferreira Dias esteve na TSF a falar do seu livro de estreia, reflexão expositiva sobre a polarização política do nosso tempo.
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João Ferreira Dias é investigador integrado do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa; investiga nas áreas de democracia, ativismos e cidadania. Colabora com o Centro Europeu para os Estudos do Populismo, com sede em Bruxelas e acaba de publicar o livro "Guerras Culturais: os ódios que nos incendeiam e como vencê-los", pela editora Guerra e Paz.
O que são então as guerras culturais?
As guerras culturais, no fundo, são um território de disputa, sobretudo no plano moral. Essa transferência e nós passámos do de quase de um universo marxista, da luta de classes para uma outro tipo de luta, que é a luta imaterial, a luta em torno de valores e as guerras culturais. É essa disputa que envolve questões de de muitas vezes identificados. Idade a forma como a pessoa percepciona se a sua própria identidade sexual, a sua orientação sexual, questões ligadas ao aborto, portanto, dizem respeito àquilo que é a moral social vigente e as formas alternativas contra a hegemónicas de ver a moralidade.
Guerras com caráter divisivo da sociedade?
Sim, tem essa tendência para a polarização.
De um lado a Igreja, ou oosições mais conservadoras assumidas pela Igreja Católica, nomeadamente desde os tempos da Reforma e a Contra-Reforma, as teorias de Copérnico e Galileu, como refere, ao desafiar a visão teológica cristã do universo. Ou seja, a Igreja está lá sempre, há sempre um certo sentido de moralidade conservadora por oposição a ideias mais progressistas?
Sim, no fundo acaba por ser essa a interpretação mais comum, mais corrente, mais consensual de que há dois grandes blocos, embora isto seja mais complexo, os progressistas, e o lado dos conservadores, que terá sempre a Igreja. Ou, podemos hoje dizer: as igrejas. Se nós olharmos para o cenário Internacional, pensarmos no caso do Brasil ou nos Estados Unidos, as igrejas evangélicas também cada vez mais com peso em Portugal.
Uma aliança entre direita radical e as igrejas evangélicas.
Exatamente. Portanto, há sempre esse peso religioso na divisão e no aprofundamento destas divisões sociais. Portanto, é inevitável que haja, porque é de lá que vem, no fundo, toda a moralidade e a forma de ver o mundo em relação ao que é família tradicional, uma construção social e de base religiosa, a moral sobre a sexualidade tem todo esse património cristão subjacente, portanto, é sempre marcante.
A primeira parte do livro faz como que um percurso pelas correntes teóricas que, no fundo, nos fazem chegar ao ao ponto em que estamos. Quando o João Ferreira Dias fala nas correntes pós-modernistas com gente como Lyotard, Foucault, Derridá., todos eles, embora por caminhos distintos, chegam a um ponto que me parece importante que é o peso das estruturas e das relações de poder na formação do conhecimento.
Sim, eu eu sou muito adverso à própria ideia de poder. No fundo, este é o meu pensamento, mas, de esses autores estão muito marcados por essa ideia e não é por acaso que, embora não o tenha referido, mas gosto muito de acrescentar Gramsci, porque tem um peso importantíssimo nesta percepção de que, de facto, há grandes narrativas.
O chamado pós marxismo...
Exatamente. Portanto, esta conjugação entre um pós marxismo gramsiano e estas correntes pós modernas, esta conjugação de leituras sobre o mundo dá origem à contra hegemonia cultural; essa ideia de que há uma hegemonia conservadora dominante, patriarcal de base. E depois a necessidade de dar voz aos subalternos e esquecidos da história. Portanto, é todos esses nomes que citou de teóricos no fundo, o que eles têm por objetivo é a superação dessa dessa hegemonia cultural. Há uma narrativa dominante, é preciso dar voz aos esquecidos, ao outro lado do mundo. Portanto, aquela ideia de a história se conta da perspetiva do Ocidente e eles tentam dar voz aos outros povos, daí a origem das correntes pós- coloniais, etc; portanto, no fundo o poder está lá, na percepção de que o Ocidente, nomeadamente a Europa, detendo o poder, controlou a narrativa do que é a história universal, do que é o normal cultural e até o que é o normal racial, a própria construção do Homem universal como o homem branco, heterossexual, ocidental, cristão.
Não terá um autor que está muito em voga no nosso tempo, Yasha Mounk, não terá ele razão quando no livro A Armadilha Identitária, nos remete para o foco excessivo na fragmentação identitária. Diz ele que enfraquece solidariedades mais amplas, essenciais para enfrentar desafios globais.
Sim, eu sou um pouco suspeito porque considero-me 'Mounquista', digamos assim, eu gosto muito do pensamento de Yasha Mounk. Antes de ler Yasha Mounk, muitas das suas ideias eu já as tinha e quando o li, tive a sensação de uma certa pertença intelectual, porque eu sempre quis - e o livro tenta fazer isso - escapar à polarização e é nesse caminho que eu também tentei trilhar o livro. Vamos tentar ver o que é a política identitária. Porque eu acho que há duas políticas identitárias: a direita cconservadora, chamemos- lhe assim, e a progressista que estão em tensão. Não podemos chamar só política identitária à política de esquerda, dos direitos LGBT, anti-racismo, etc. Do outro lado, também há uma política identitária que é a preservação desta hegemonia conservadora ou, pelo menos, de base ocidental. Portanto, a minha intenção foi sempre superar e, portanto, eu acho que Yasha Mounk, tem muita razão, porque o caminho deve ser por aí. Nós precisamos de de recuperar o chão comum, ser capazes de negociar, de compreender os vários lados, muito mais do que aplicar uma grelha moral que é talvez o principal problema das guerras culturais na minha ótica, quando se aplica muito uma grelha moral sobre os fenómenos. Portanto, o movimento mais progressista, e eu acho que a parte da queda da Esquerda nos últimos anos tem sido esse viés moralista face ao outro; não perceber, por exemplo, esse eleitorado que vota na direita radical. E classificá-lo simplesmente como xenófobo, racista, sem perceber o contexto daquelas pessoas que provavelmente nem sequer, muitas delas, têm capacidade de articular pensamento racista ou xenófobo. O racismo e a xenofobia, de facto, podem ser uma reação intrínseca, mas a base desse seu voto não está aí, está muito mais no abandono, no ressentimento económico, a sensação de que foram esquecidos pela elites políticas.
É essa abordagem uma das causas para o que temos agora? Um partido da direita radical, como o Chega, como segundo partido mais representado na Assembleia da República?
Sim, na minha ótica é isso. É uma conjugação entre a sensação de que os partidos políticos tradicionais já não nos representam. Há um cansaço com a partidocracia. E sobretudo isso afeta muito o Partido Socialista no caso português, porque é o partido que mais anos esteve no poder. E o Chega, recuperou muito bem, no sentido do ponto de vista da da estratégia deles, José Sócrates para vincular a ideia da corrupção, portanto, essa ideia de que é preciso agitar o sistema, que estes partidos só estão voltados para as elites para favorecer os interesses internos partidários e das elites económicas que andam à volta dos partidos. Então é preciso agitar isso. Há essa dimensão de rejeição da democracia representativa, de que eles não nos representam. E depois, há um outro lado, inicialmente o subtítulo iria ter o conceito de ressentimento, mas houve uma opção por não ter...
Mas o livro também fala das políticas de ressentimentos...
Sim. Porque para mim é essencial perceber que, como há um ressentimento económico, as pessoas no mundo rural, as pessoas no ambiente suburbano sentem-se abandonadas. Não conseguem aceder ao elevador social, sentem-se abandonadas, esquecidas, esse conceito Internacional do left behind, que sai no eleitorado, por exemplo, de Donald Trump. É muito evidente, os descamisados, os predadores da globalização. Há muitos conceitos que podem traduzir esse sentimento.
Os deixados para trás...
E claro, há um outro conceito que eu não utilizo no livro mas que utilizo hoje em dia, que é o conceito de estranheza cultural para falar da da imigração. Porque, muitas vezes, há uma rejeição da imigração que começa com a estranheza cultural, porque nós temos que perceber a interpretação que a população faz da imigração não apenas focados nas grandes cidades, não podemos ver apenas como é que o lisboeta ou portuense ou de outras grandes cidades vai acolher o imigrante, mas como é que o outro mundo e o outro Portugal, acolhe ou percebe esta chegada, por exemplo, a locais onde não existiam quase imigrantes nenhuns e, de repente, são 50% da população ou 40%. Há uma estranheza cultural inicial, é um processo automático e isso ajuda a perceber também muito deste voto.
É interessante o exemplo que vai buscar, quando ilustra a ideia defendida por alguns de que o imigrante não pode ter os mesmos direitos dos nacionais. Não é uma coisa que nasce com com estes partidos da direita radical de agora. Em concreto, no caso português, o Chega, mas podemos estar a falar do Vox ou da Frente Nacional ou do Reform de Nigell Farage no Reino Unido, ou do Fidesz na Hungria. Cita uma expressão que foi utilizada pelo então diretor do Independente, Paulo Portas, que depois veio a ser líder do CDS, Ministro da Defesa e Ministro dos Negócios Estrangeiros, como sabemos, que disse algo do género: é normal que que nós, enquanto indivíduos, damos preferência aos familiares em relação aos amigos, aos amigos em relação aos conhecidos, aos conhecidos em relação aos forasteiros. E esse é o exemplo que vai buscar. E eu pus-me a pensar nisso nos seguintes termos: bem, eu às vezes prefiro os meus amigos a alguns familiares, os familiares não os pude escolher e há familiares que prefiro nem ver, ou ver só de 10 em 10 anos. Se calhar há conhecidos com quem eu acabo por aprender ou até de gostar de estar mais do que alguns amigos que às vezes se tornam insuportáveis; e se calhar com os forasteiros posso aprender mais com eles do que com muita gente conheço...
Claro, mas para isso também é preciso que haja uma abertura à à diferença, porque um dos grandes problemas, e o Yasha Mounk acaba por falar nisso também na Armadilha Identitária, que é uma característica inerente da população ocidental branca: a rejeição do outro é uma condição ou fenómeno intrinsecamente humano. O outro é sempre hostil, é sempre perigoso, é sempre diferente, porque o nosso património genético e comportamental é ainda de tempo das cavernas, chamemos-lhe assim para simplificar. Portanto, as nossas reações são inatas e essa rejeição do outro, seja qual for o outro, é sempre um primeiro processo. Depois há a capacidade de de integrar ou não integrar. E aí vai a questão da própria pessoa que chega, neste caso, se falarmos dos imigrantes, em se procurar integrar também ou não, porque eu acho que isto tem que ser um caminho de duas vias. Mas, claro, havendo essa abertura, o multiculturalismo tem sempre grandes vantagens. Porque não é só apenas a gastronomia que nos chega, são experiências de vida, bases culturais, literatura, tudo o que vem até nós e nos enriquece.
E tem sido assim ao longo da história e o João Ferreira Dias aborda isso no livro de forma interessante. Até quando, por exemplo, fala no facto de ter sido Catarina de Bragança que levou que levou o chá para Inglaterra hoje o chá, o chá das 5, é um produto cultural britânico...
Exatamente, portanto, no fundo, toda a humanidade é feita de trocas e talvez o multiculturalismo sempre lá tenha estado. Claro que é muito mais fácil, hoje em dia, nós acedermos à às redes sociais, à Internet e consumirmos um produto cultural do outro lado do mundo.
Ou a massa que veio da Ásia e, hoje em dia, passa por ser um produto italiano.
Exatamente. Eu tenho feito nos últimos tempos muitas entrevistas com figuras políticas do vários quadrantes e a própria ideia do multiculturalismo, não é fácil encontrar muita gente que rejeite, mesmo à direita, o multiculturalismo, que é uma ideia muitas vezes errada. É verdade que dentro do Chega é mais evidente essa rejeição, mas também não está em todas as pessoas. A questão do multiculturalismo tem muito a ver com o relativismo cultural. Muito mais do que a própria ideia de trocas, é a ideia de que o multiculturalismo à solta pode gerar um relativismo cultural que coloque em causa o nosso ordenamento jurídico. Claro que depois na direita mais radical está presente em algumas coisas do Chega e está muito presente nesta direita ocidental muito radicalizada, que insiste no perigo da substituição cultural, demográfica e sobretudo cultural. Este receio de que as culturas islâmicas venham a alterar a nossa e destruir as identidades identidades ocidentais. Não é por acaso que esta direita radical tem por base o nativismo. É preciso ter esta leitura fina também dos de todos os fenómenos, que é uma coisa que eu tentei fazer o máximo possível no livro, que é tentar explicar que é muito difícil nós olharmos para fenómenos de forma taxativa, porque eles têm muitas leituras e as pessoas também são complexas e plurais. Portanto, essa dimensão da rejeição sim mas não o multiculturalismo como princípio, talvez, mais como motor de transformação excessiva da sociedade.
A direita radical, quando se aborda questões de imigração, não tem consciência de que está, de alguma forma pela pelas políticas que defende, a menosprezar várias gerações de seus concidadãos que também emigraram, que também foram para outros países fazer o seu o seu percurso, o seu projeto de vida?
Uma pergunta interessante, eu acho que eles não desconsideram, porque eu penso que toda a estratégia da direita radical é muito, muito ponderada; embora pareça muito reativa, ela é muito ponderada porque ela segue as sensações públicas, as percepções.
Mas segue as perceções públicas em cada momento.
Em cada momento claro, portanto, pode ser neoliberal na economia, como estatizante. Portanto, é conforme o momento, conforme a música é a dança. E, nesse sentido, eles vão sempre atrás do ar do momento. Nesse caso da imigração. acho que o que se nota é, quando se olha para o caso português dos imigrantes, o discurso é sempre os imigrantes portugueses tiveram o cuidado de se integrar nos países para onde foram, enquanto que essas comunidades vêm para cá e não se querem integ. E porque há uma grande diferença cultural.
Resta saber com que base é que dizem que não se conseguem integrar e ao fim de quanto tempo é que os portugueses se conseguiram integrar ou não.
Até porque se nós olharmos para a história é muito diferente essa ideia do português que se integra, quer dizer, os bidonville e tudo isso... Há estudos que mostram...
Os portugueses foram-se integrando...
Foi exatamente isso, sofreram um processo de racialização, foram tratados como árabes e não como cidadãos de uma Europa. Tinham a mesma categoria hierárquica do ponto de vista racial, porque a sociedade, quer se queira quer não, muitas vezes hierarquiza racialmente e etnicamente as pessoas e nesse sentido o português estava no mesmo plano que o magrebino em França. Portanto, essa ideia do português que se integra e correu tudo muito bem, também é uma romantização da memória, que é o que no fundo, esta direita radical também faz, um jogo com a memória.
As guerras culturais e as bandeiras de causas que as pessoas impunham desfraldam, se quisermos, têm muito frequentemente a ver com com o lugar da fala e essa teoria assente no ponto de vista, que toma mais em consideração o contexto em que se inserem os indivíduos, tem a função de dar visibilidade e voz a correntes que normalmente estão mais ocultas, mais subalternas, menos protagonistas. Tudo isto pode parecer uma coisa óbvia e sensata, mas esta corrente também é criticada. Porquê?
Sim. Eu faço parte das pessoas que é muito crítica da teoria do ponto de vista ou do lugar de fala. Eu acho que o conceito, a premissa que ele tem é muito importante, que é, como referiu, dar visibilidade e dar voz, chamemos-lhe assim, às vozes que foram silenciadas pela história. Por outro lado, há outro aspeto que eu acho muito interessante no conceito de de lugar de fala, que é poder ser aplicado para além destes grupos subalternizados pela história, que é a ideia de que nós somos muito daquilo que é o nosso contexto. E a realidade pode ser interpretada e deve ser interpretada a partir de múltiplos olhares. A forma como cada um de nós os dois que estamos aqui nesta mesa, olhamos para o mesmo fenómeno. Podemos não o interpretar da mesma forma, porque a nossa história, que, aqui, no fundo, é o nosso lugar de fala, o nosso património cultural, aquilo que foi a nossa educação, a nossa trajetória pessoal, determina a forma como nós lemos os fenómenos.
Outro caso diferente é depois a politização do lugar de fala, que é talvez o principal perigo, porque a forma como ele é instrumentalizado pelos ativismos, a ideia de que só aquelas pessoas que têm aquelas determinadas características é que podem falar sobre determinado assunto...
Ou seja, se não sou negro, por exemplo, já não posso falar de racismo, ainda que seja para defender o antirracismo.
Pois, o que é outro eu outro é dizer das armadilhas, para usar a expressão do Mounk. Esta política identitária, de que John McWhorter fala no seu livro The Woke Racism, que penso que já está traduzido para português, que é a população branca pode admirar a cultura africana, mas não pode usá-la. Existem uma série de tabus, portanto, essa ideia do lugar de fala é que acaba por dizer que apenas se a pessoa for obesa pode falar sobre obesidade, apenas se for negra, poderá falar sobre raça, apenas se for homossexual, poderá falar sobre orientação sexual, portanto, acaba por confundir o lugar de fala com o lugar de autoridade e lugar de legitimidade. E aí entramos nos perigos da política identitária.
Ou seja, não contesta a necessidade de determinados grupos que têm tido menos visibilidade de terem mais visibilidade, o problema é o facto de essas correntes defenderem quase uma exclusividade.
Sim, no fundo, é exatamente isso.
A teoria crítica de raça fala no racismo estrutural e no facto de as sociedades reproduzirem desigualdades, mesmo sobre discursos de igualdade formal. O que é que podemos dizer sobre isto?
Tive muito cuidado com essa parte do racismo estrutural, mesmo sabendo que iria dar alguns problemas este capítulo. Eu eu tenho um problema com a ideia do estrutural, porque quando nós dizemos que o racismo é estrutural, tendencialmente estamos a dizer que ele está de tal forma entranhado nas instituições, nas estruturas da sociedade que ele é inevitável.
Pode não estar nas instituições, mas pode estar num quadro mental das pessoas.
Na verdade, o que é que são as instituições? As instituições são as pessoas, uma instituição é formada pelas pessoas que lá estão; as instituições em si são conceitos, não são objetos orgânicos. No fundo, o Estado não é um ser, é formado pelas pessoas que o informam, o aparelho, o Governo, os tribunais e podemos dizer que as pessoas que desempenham as tarefas têm atitudes, pensamentos racistas que depois podem ir-se perpetuando porque há um histórico. Por isso é que eu digo, no caso português, que é preciso ver o racismo, contexto a contexto. No caso português, há um racismo endémico, está entranhado na sociedade, mas na sociedade, mas que não considero estrutural, porque o estrutural implica que há um programa intencional de racialização e, na minha ótica, não existe.
Mas já não é grave que seja endémico e que esteja impregnado na sociedade?
É grave e é necessário combatê lo e eu defendo políticas de correção através, por exemplo, de instrumentos como as quotas raciais, que têm que ser muito bem pensadas. Eu sou a favor de quotas. E nós podemos pensar, não sei se é possível fazer esta derivação se me permite, mas nós podemos pensar a quota como instrumento de correção para qualquer efeito, porque se nós olharmos para um ângulo morto da nossa sociedade, cada vez há menos rapazes a ir para a universidade. Há um problema de insucesso escolar masculino. É possível que dentro de uns anos precisemos de quotas género para rapazes acederem à universidade.
Que era algo impensável há uns 30 anos...
Exatamente, portanto, neste momento, a quota é um instrumento de correção, porque esta ideia da igualdade, como algo adquirido, simplesmente porque está na Constituição ou no nosso ordenamento jurídico, não corresponde à realidade.
Estas guerras culturais têm por vezes a particularidade de dividir, não só grupos políticos, partidos, grupos de opinião, mas também até famílias. E tivemos um claro exemplo disso. O João Ferreira Dias cita no livro o que aconteceu no Brasil durante era Bolsonaro.
Sim, esse é um dos principais perigos das guerras culturais e da polarização. É precisamente essa tendência, essa vocação para dividir de forma praticamente definitiva as famílias. Porque nós, quando olhamos para o caso brasileiro, temos isso muito evidente, porque houve famílias que nunca mais tiveram o mesmo tipo de relação entre os seus membros, precisamente porque se tornaram inconciliáveis os valores que cada pessoa defendia. O Ezra Klein, no seu livro Why We Are Polarized (Porque é que nós estamos polarizados), fala num aspeto muito importante quando diz que o as nossas ideias políticas passaram a fazer parte da nossa identidade enquanto pessoa. E então torna-se inconciliável: quando os meus valores entram em confronto com os valores do meu tio e quando cada um de nós vê uma divergência de ideias políticas, como um ataque à nossa à própria identidade, como se estivéssemos a colocar em causa a sua dignidade como pessoa. Daí o perigo de as guerras culturais poderem dividir-nos, de facto, de forma inconciliável.
Quer recordar, para quem não leu o livro, o caso do Tio Alfredo e da prima Bia.
Sim, foi uma ideia que me surgiu de facto, porque no fundo acaba por ser uma forma que eu encontrei de ilustrar o problema dizendo que o Tio Alfredo seria uma pessoa, dentro do quadro da cultura portuguesa, chamemos-lhe assim, mais tradicional, o homem heterossexual e conservador. E a sobrinha, a Bia, era uma rapariga jovem progressista lésbica, portanto, no fundo a identidade de cada um deles estava de tal forma em confronto que era impossível haver, digamos, um jantar de Natal que corresse bem, porque cada cada um estava fechado sobre os seus quadros de valores, sobre a sua identidade. E não tinham essa capacidade de dialogar. No fundo, o grande desafio, que é o dificílimo na superação das guerras culturais, é colocar o Tio Alfredo a perceber a perspetiva da Bia e a Bia a perceber a perspetiva do Tio Alfredo.
E numa sociedade marcada pelo digital em que há um papel muito, muito considerável das plataformas digitais, das redes sociais, é cada vez mais possível as pessoas viverem dentro da sua bolha e consumirem informação que só vai ao encontro daquilo que já pensam, das suas noções pré-adquiridas. Uma democracia saudável é isso?
Não. Vários autores dão conta disso mesmo, de que o algoritmo, ao criar bolhas, apenas informa às pessoas e oferece-lhes conteúdos que vão ao encontro dos seus valores, vêm confirmar. E isso cria um problema muito grande, porque as pessoas sentem-se legitimadas, seja nos seus preconceitos, seja no seu ativismo mais radical, ou seja, todos os lados se sentem legitimados e detentores da verdade. E isso acaba por ser um problema muito sério. É inegável que as redes sociais, embora tenham aberto espaço e um canal para que cada cidadão tenha voz, também vieram reforçar muito a polarização. Não é por acaso que, desde que desde que Musk adquiriu o que veio ser o X, o Twitter, os discursos de ódio racial, homofóbico, etc., aumentaram em 70%. Portanto, neste momento, as redes sociais são um canal que garante um eleitorado de direita radical, mas que coloca em causa a democracia liberal.
A direita radical canaliza a revolta contra as elites, contra o multiculturalismo, como escreve o João Ferreira Dias. Na Europa, a rejeição da imigração cresceu 71% entre os Dinamarqueses, 67% entre os Húngaros, apontam os imigrantes e as minorias como a maior preocupação política. Como é que como é que supera isso? Qual é então o grande desafio contemporâneo ao nível das ideias?
Bem, não é fácil superar este este esta realidade. Na verdade, nós estamos a atingir o pico da direita radical, o pico de um chamado Iliberalismo nativista. Portanto, essas ideias antiglobalização. Não quer dizer que elas não possam vir a cair...
Quer dizer que também já não cresce mais?
Eu diria que é um pico com um pico continuado. Não quer dizer que vá cair já; até porque, na minha ótica, por exemplo no caso português, eu direi que muito em breve, a não ser que haja uma grande alteração da realidade portuguesa, um grande sucesso governativo da AD ou uma capacidade do PS se reinventar, nós teremos o chega como Governo muito em breve. Porque esse pico resulta também termos atingido um pico do progressismo e do multiculturalismo. A verdade é que a circulação de pessoas sempre existiu ao longo da nossa história, mas com este volume volume em tão curto espaço de tempo, com este fluxo migratórios tão grande, e sobretudo populações tão diversas, as populações locais sentiram-se ameaçadas, ainda que seja só simbolicamente. Essa é a chamada competição étnica.
Sentiram-se ameaçadas ou foram manipuladas para sentir essa ameaça?
As duas coisas. Ainda bem que que toca nesse nesse aspeto porque eu, antes de de avançar para o estudo de ciência política, durante muito tempo trabalhei sobre a antropologia religiosa, trabalhei sobretudo antropologia religiosa africana e uma das coisas que eu acho muito interessante no pensamento africano é que, ao contrário do pensamento ocidental, as coisas não são necessariamente ou A ou B . Podem ser A e B. No fundo, elas são as 2 coisas. É a reação à estranheza cultural. É uma evidência que nós temos uma passagem muito grande, de uma realidade social muito maioritária da população nativa, deste nosso espaço ocidental, com uma chegada de muita população estrangeira e ao mesmo tempo manipulação de direita radical no sentido de potenciar o pânico moral. Daí a questão da competição étnica. Estamos a viver um período em que a crise económica trouxe um ressentimento económico. Depois nós tivemos, digo eu, também uma grande deslocalização da nossa indústria para a Ásia, deixando muita gente descamisada do ponto de vista laboral. Portanto, há uma insegurança, há um cansaço com a dcemocracia, os jovens que já nasceram em democracia estão dispostos a experimentar outra coisa que não a democracia. Portanto, há um caldo social muito favorável a esta direita radical, que depois vai saber canalizar os ressentimentos. Esse ressentimento económico volta-se para o imigrante, porque é o mais fácil. Por isso eu acho que o grande sucesso desta direita radical, foi ter sido capaz de roubar o populismo ascendente, o populismo que pertencia à esquerda do combate às elites às elites económicas, o populismo anti elitista e anti-sistémico.
Que estava, por exemplo, no programa do Syriza na Grécia.
Exatamente, e que foi parte do sucesso, se nós pensarmos do período da Troika, do Bloco de Esquerda.
Ou do Podemos em Espanha.
Exatamente, assentou nesse ressentimento anti-sistémico, que foi capturado agora pela direita radical, porque a esquerda passou a ser muito mais imaterialista, muito mais voltada à política. E depois conseguiu canalizar um populismo descendente, digamos assim, um populismo voltado para os mais frágeis da sociedade como ameaças: os imigrantes que vêm roubar o trabalho, quando, na verdade, não vêm roubar trabalho nenhum, ou um aspeto que é verdade mas do qual eles são vítimas e não culpados, que são os salários baixos. Naturalmente, quando há esta competição de um novo trabalhador que está numa situação de tal forma precária, que faz os salários descer é algo que...
Mas não são eles que estão a precarizar o trabalho...
É quem os explora. Mas isso a direita radical não diz.
Procura fazer uma síntese e a superação das guerras culturais. Mas não é verdadeira ou justa a equivalência que que que algumas correntes pretendem fazer entre ideias mais radicais à direita que passam por negar a Carta fundamental dos Direitos humanos, passa por tentar derrubar a Constituição no caso da República Portuguesa e fazer uma equivalência com ideias mais radicais à esquerda que, no fundo, o que dizem pretender é melhorar os direitos daqueles que têm menos. E esta equivalência é muito perigosa.
É uma equivalência muito perigosa, mas também é muito perigoso desvalorizar a dimensão iliberal que algum parte do progressismo tem. Mas sim, em primeiro lugar, começar logo por dizer isso: não, não há uma equivalência moral no sentido em que basicamente, o mainstream do progressismo, o objetivo que tem é corrigir as desigualdades sociais. É procurar uma justiça social para aqueles que foram historicamente marginalizados, a que chamamos oprimidos. Ao contrário, a direita radical o que quer é uma ma visão quase abusiva da vontade da maioria, porque a vontade da maioria significa a tirania da maioria contra estas estas minorias, portanto, significa uma reversão, como bem dizia, dos direitos humanos, dos direitos fundamentais, significa colocar em causa as proteções jurídicas e a base do espírito do legislador, da Constituição, do princípio da igualdade, etc, que pretende salvaguardar estas pessoas que foram vítimas historicamente de marginalização. É uma grande conquista civilizacional o artigo 13 da nossa Constituição, quando diz que não pode haver discriminação para as pessoas baseadas na sua orientação sexual, na sua religião etc. E do ponto de vista da Constituição, tem sido uma doutrina aceite de que isso significa que haja políticas de afirmação positiva que visem corrigir essas desigualdades. No entanto, é preciso ter cuidado também porque uma parte - não toda, eu falei o mainstream do progressismo -, mas há uma parte do progressismo que também é muito iliberal, na medida em que pretende ir além da justiça social para a construção de uma democracia de manta de retalhos, baseada em grupos sociais que não comunicam e que não podem comunicar. A própria ideia de que, por exemplo, em muitas universidades nos Estados Unidos há dormitórios só para pessoas negras ou racializadas, que não permite a presença de pessoas brancas, significa criar bolhas incomunicantes, portanto, há uma certa moralização e uma certa visão moral autoritária também muito presente numa parte deste deste movimento progressista. Mas, como eu dizia, não podemos tomar a parte pelo todo, porque o objetivo do progressismo é corrigiro, tendo naturalmente falhas e o objetivo do nativismo é colocar em causa essa justiça social, essa igualdade.
Mas não estaremos a ser ingénuos se ignorarmos que nas guerras culturais há grupos que defendem ideias que pretendem eliminar outras ou erradicar outras ou mesmo erradicar os grupos que as defendem.
Ah, claro que sim, claro que sim. Por isso é que eu comecei por admitir esse perigo da equivalência, porque no fundo o que aquilo que a ala mais à direita das guerras culturais, essa margem de direita nativista, autoritária e liberal, pretende, pode não ser necessariamente um programa de extinção humana do tipo nazi, mas pretendem que esses grupos minoritários racializados, de diferente orientação sexual, sejam invisíveis socialmente, sob o manto de que a maioria é que deve ter voz, está presente. o regresso a uma invisibilização dessas pessoas.
A tolerância é algo em risco, hoje em dia?
Sim. A tolerância está em risco e aqui vou ter que admitir que está em risco dos dois lados. A direita radical conseguiu captar o homem branco porque a esquerda teve culpa nisso. Nós temos uma sociedade, por factores óbvios, marcada pelo Patriarcado, pela construção da imagem do Homem como a figura dominante; mas quando se deixa de observar esse fenómeno como uma realidade histórica que foi sendo, de algum modo, desconstruída, embora seja dominante, mas já já foi em muitos aspetos alterada, para passarmos a construir uma narrativa de que o mal do mundo assenta no homem branco, heterossexual, está-se a oferecer o eleitorado à direita radical e foi isso que a esquerda progressista fez. Porque, achando que dizer que o homem branco heterossexual era o mal do mundo, porque de facto, representa simbolicamente o espírito do colonialismo porque, de facto, foi colonizar, mas quando não se tem cuidado em explicar do simbólico para a prática, o que aconteceu foi oferecer eleitorado à direita radical. Foi dizer, vocês são o mal do mundo, pensando-se que o homem branco iria adotar uma autoflagelação, iria entrar num processo de culpabilização e expiação permanente da sua culpa branca. O que se fez foi oferecer esse eleitor à direita radical.
Aliás, na página 107 do livro pergunta: “pode o Portugal 2025 ser responsável pelos atos do Portugal dos séculos XV a XVIII? Uma sociedade totalmente distinta?”
Sim.
E coloca outra questão, deverá então Itália compensar os povos que foram conquistados pelo Império Romano? E essa responsabilidade recairia apenas sobre os aspetos negativos ou também sobre os legados jurídicos e urbanos? As questões são obviamente pertinentes, mas é possível Hoje em dia e sabendo que se trata de um movimento que não é um movimento nacional nem apenas ibérico, está em todo o lado, nomeadamente em vários países europeus, mas também com o movimento que já surgu em África…. Ainda tivemos na semana passada uma governante moçambicana a falar da questão da restituição. Ou seja, podemos ignorar o direito à reparação, à compensação, à restituição do património saqueado e roubado?
Não, não podemos. Portugal tem um problema muito profundo que é não ter conseguido ainda lidar com a sua memória histórica. Portugal não consegue lidar com a sua memória colonial, porque continua através dos livros da escola, a reproduzir uma narrativa luso-colonial, do bom colonizador que levou a civilização aos selvagens. E isso continua a ser muito problemático. Outra coisa é quando se começa a pensar nas reparações, porque muitas das entidades políticas daqueles territórios, hoje já não existem. Em segundo lugar, também há um perigo que eu procurei também explicar no livro que é um perigo que resulta de uma postura contrária, portanto é reativa do dos movimentos anticoloniais e activistas, de imaginar África como um Paraíso pré-colonial; portanto, que antes da chegada do europeu, África era um Paraíso, quando na realidade a história nunca poderia ser, em lugar nenhum, sem ser marcada por violência e processos de escravização, etc. Há muitas memórias em disputa. E depois, quanto à questão das reparações, muitas vezes são politicamente instrumentalizadas para favorecer as elites que são quem vai receber muitas vezes essas reparações. Quanto à devolução da arte, nós temos de ter presente que o caso português, ao contrário do que se possa imaginar, não é igual ao caso francês ou inglês. Nós entramos no British Museum, em Londres e há ali uma grande parte do espólio foi saque! Não é por acaso que África está totalmente desprovida da sua identidade cultural, porque não está lá nada da sua arte. Portanto, faz sentido pensarem nessa devolução ou em políticas de estarem uma parte do tempo lá e outra parte na Europa, a cargo de grandes intercâmbios. É preciso é ser criativo. Acho que há esse lado simbólico da devolução da arte porque coloca em causa a identidade. No caso português, nós, se calhar estamos a falar de muito pouca arte que tenha sido efectivamente roubada. Muita dela, ou foi adquirida ou foi oferecida. É muito difícil mapear isso. Mas acho que é necessário fazer esse levantamento de qual é a arte Africana que possamos ter no nosso território, não legítima, porque é preciso ver se a pessoa adquiriu legitimamente ou recebeu legitimamente aquela arte, se pertence à pessoa. Outra coisa é existindo uma arte que possa ser devolvida, e é possível que essa arte para ser devolvida aos países africanos seja muito pouca. Também se pode estar a imaginar que há muito espólio e, de facto, não existir. Não quer dizer que não deva ser pensado porque nós temos que perceber que o museu nasce como conceito no Ocidente. Portanto,, esses objetos hoje existem porque foram preservados em museus ocidentais. Mas o museu também nasce de uma violência simbólica que é a de retirar a cultura esses povos.
A questão do derrube de estátuas muitas vezes tem um simbolismo político. Parece-me estranho, no mínimo, que pessoas ou correntes que contestam que uma determinada estátua de um rei, que foi opressor que mandou matar, que mandou escravizar ou que continuou a escravatura, que as pessoas fiquem muito melindradas por essa estátua ser derrubada, porque dizem - e bem - que a estátua faz parte de um determinado momento histórico, que era a realidade da época, etc, mas ao mesmo tempo já não contestam que seja derrubada a estátua de Saddam Hussein ou de Lenine ou de Estaline…
Pois é, é o perigo do contexto em que nós vivemos. Se nós pensarmos como é que nasce a esquerda e a direita… Há uma ideia muito interessante que é o debate entre Thomas Paine Edmund Burke, quando Edmund Burke diz: “a história é o resultado dos vivos e não vivos, portanto, é um contrato entre uma continuidade e Thomas Payne acaba por ser o pai do agora, da revolução, a história começa agora. E muitos dos movimentos revolucionários que nós temos hoje, revolucionários culturais do progressismo, estão centrados na ideia de que a história começa agora e eu sou o resultado final de uma grande moral, portanto, é a minha moral de agora. É a moral que deve vigorar para sempre. Obviamente que a questão das estátuas té inserida no contexto que nós vivemos porque tem um peso simbólico. Nós vivemos um período de disputas simbólicas, mas também acho que muitas vezes se atribui à estátua um valor que não é atribuído socialmente. Ou seja, a maior parte. das pessoas que passa pela estátua do, Padre António Vieira, não vai pensar no que é que ela simboliza. Simplesmente é a estátua do Padre António Vieira. Muitas vezes, estes movimentos estão a atribuir um valor simbólico excessivo, quase como um totem, como se aquilo tivesse um poder que dali emana e influencia toda a sociedade. Claro que também há uma imagética pública que transmite uma narrativa. Mas é preciso, de facto, ter cuidado como se vai tratar esta questão do derrube de estátuas, porque se se adota uma postura em que se vai verificar em detalhe a identidade de cada pessoa, é provável que, por exemplo, no final, nem a estátua do Eusébio fique.
Faz sentido devolver património aos países de origem?
Faz. Faz porque, como dizia há pouco, esses países, muitos deles, estão vazios da sua identidade simbólica e é preciso restituir-lhes a sua identidade, desde que haja condições para acolher as peças.
Na parte final do livro, fala sobre um debate que é um debate do nosso tempo, sobre a identidade de género e o papel que autores como Judith Butler tiveram na formulação teórica dessa questão. Quais são os quais são os grandes desafios, actualmente, nesta área?
A questão da identidade de género é uma das mais marcantes nas guerras culturais que nós temos. Porque uma das grandes bases da guerra cultural na perspetiva da direita mais radical é o combate ao marxismo cultural e como é entendido. E nós vemos isso muito em figuras do nosso espaço político nacional e Internacional. Há a ideia de que a esquerda progressista quer colocar em causa a família tradicional, que lançou um ataque à família tradicional pela ideia de identidade de género, que eles chamam ideologia de género.
Isso foi muito marcante nas campanhas, por exemplo, de Jair Bolsonaro e de Donald Trump.
Na verdade, a questão do género, em primeiro lugar, diz respeito até a algo que está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na carta fundamental dos direitos da União Europeia, na nossa Constituição, que é o princípio da autodeterminação, a ideia de que a pessoa tem direito à sua autodeterminação e o direito à livre construção da sua identidade. O facto de a pessoa se identificar com um género, agora retirando toda a complexidade que se está, por exemplo, na ideia de que o género pretendeu tirar as pessoas do armário, colocou-as em duas mil gavetas, é uma consequência. Mas fora isso, o que está em causa é o direito à pessoa ser e afirmar-se como quer e, de facto, essa questão foi entendida como ataque à família tradicional e esse é um dos grandes perigos do discurso mais da direita radical, porque não aceita a existência de formas múltiplas de se reconhecer.
No debate sobre o racismo, pergunta se há uma ciganofobia na sociedade portuguesa e se existindo, se é somente fruto de uma sociedade racialmente opressora. Há resposta para isto?
Aí, eu procurei dar, dentro do que me é possível, resposta a isso. Um dos grandes perigos do nosso tempo e das guerras culturais é a ideia de que há visões inconciliáveis em que se ou é uma coisa ou é outra. Na verdade, nós temos um histórico de perseguição às comunidades ciganas em Portugal e não só. Durante muito tempo, por exemplo, nos Países Baixos era comum A Caça ao Cigano. Portanto, houve grandes históricos de extermínio de comunidades ciganas em muitos lugares da Europa. E Portugal teve, durante muito tempo, a expulsão dos ciganos. Depois, durante o período do Estado Novo, também havia uma expulsão de ciganos. Não podiam permanecer em nenhum lugar, portanto, fixar residência, e isso fez com que eles criassem um sentimento de não pertença à sociedade. Portanto, eles eram marginalizados e eles próprios desenvolveram um sentimento de exclusão de pertença e isso fez com que existisse sempre uma tensão entre nós e eles, que se continua a reproduzir. Portanto, por um lado, a sociedade tem historicamente rejeitado os ciganos. Por outro lado, os ciganos, como consequência, viram sempre a sociedade como uma oposição, como um inimigo. E a quem era permitido fazer tudo, desde questões criminais porque estavam a defender a sua própria identidade, o seu modo de vida possível. O que nós temos hoje é uma necessidade de políticas de integração da comunidade cigana por parte do Estado, que têm sido desenvolvidas, mas também é preciso que a comunidade cigana assuma a sua autorresponsabilização e procure os mecanismos e que também, na verdade, tem acontecido em muitos casos. Cada vez mais temos jovens ciganos nas universidades.
O livro tem como subtítulo, como já disse, Os Ódios que Nos Incendeiam e Como Vencê-los. Aponta para soluções. Na parte final do livro, fala na sistematização destas soluções, traçando linhas orientadoras que podem guiar-nos na difícil tarefa de superar as guerras culturais. Pedia-lhe que resumisse cada um deles o mais breve possível. Recuperar a confiança na democracia.
Sim, uma das causas da ascensão de direita radical é a insatisfação com o sistema que nós temos. As pessoas sentem que a democracia já não lhes está a dar resposta aos seus problemas e a democracia como é representativa, só funciona quando as pessoas aceitam as regras do jogo, quando, de alguma forma o bem-estar chega. É preciso recuperar essa confiança de que não há sistemas perfeitos e que a democracia continua a ser a melhor forma de gerir as nossas dificuldades e superar as desigualdades sociais.
Desistencializar as identidades.
Neste momento, o que nós precisamos é de perceber que a identidade é parte de quem nós somos, identidade sexual, identidade racial, mas não constitui o nosso todo como como pessoa. Portanto, é preciso superar isso e voltarmos a ver-nos como pessoas do qual a nossa identidade racial, sexual, religiosa ou clubística fazem parte do nosso todo. Mas não são a marca e definidora enquanto cidadão.
Apostar no novo daltonismo racial.
Esse é o mais complicado, porque quando eu digo apostar no daltonismo racial, não é negar que exista racismo, não é negar que existem diferentes identidades raciais, mas dizer que a raça é uma realidade, mas que nós podemos conviver uns com os outros. Para além disso, é conseguir ver o daltonismo racial não como algo que falhou, mas ver como algo que está a ser construído. Construir uma sociedade para além da raça em que nós somos cidadãos em que por acaso somos determinada origem racial.
Perceber que o agora não é possível.
Pois é, também é um travão ou um alerta para o progressismo, porque como referi, a ideia de Thomas Paine de que o meu mundo é agora, o momento, tudo tem que acontecer agora. E muitas vezes o ativismo e o progressismo entendem que a sociedade tem que mudar já. Focando-se no que não aconteceu, em vez de focarem no que aconteceu e, de facto, a sociedade muda muito,
Ou seja, não valorizando aquilo que já que já foi feito, as conquistas.
As conquistas, exactamente, é preciso perceber que as conquistas também demoram muito mais tempo a ser implementadas do que aquilo que seria também o ideal.
Despolarizar a história.
Ser capaz de olhar para a história com o máximo rigor possível, sem um olhar retrospetivo nem glorificador nem moralizante.
Desistencializar opiniões e valores.
Ser capaz de compreender que aquilo que são as nossas ideias políticas, as nossas opiniões não não são colocadas em causa. Perante opiniões diversas, é da diversidade, do confronto, do diálogo que nascem soluções mais criativas e precisamos de deixar de olhar para as nossas ideias políticas como a nossa identidade e quando elas são colocadas em causa, estão a colocar-nos em causa a nós como pessoas.
O livro termina com este parágrafo: "o caminho das guerras culturais ainda é longo. Lá fora, o céu permanece cinzento, com nuvens carregadas. No entanto, em tempo de em tempos de cólera e de tempestade que somos chamados a dobrar o cabo das tormentas e se precisarmos de uma luz ao fundo do túnel, estaremos prontos a acendê-la nós mesmos?".