"Há pessoas a vender membros das próprias famílias. Isso não é esperança, é uma catástrofe"
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Com quase 23 milhões de pessoas em risco por causa da fome, o Afeganistão pode em breve tornar-se na maior catástrofe humanitária no planeta. O alerta é da porta-voz do programa alimentar das Nações Unidas para o Afeganistão. A partir de Cabul, Shelley Thakral conta à TSF que a agência, há 60 anos no país, nunca viu nada assim. As cidades que eram habitualmente dominadas pela classe média estão a tornar-se bolsas de fome.
A responsável avisa que a situação pode piorar nos próximos meses com a chegada do inverno, que este ano se prevê duro. Para além da retirada das forças ocidentais em agosto, a seca e a pandemia fizeram aumentar as dificuldades no acesso aos alimentos.
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O Programa Alimentar Mundial, e outras agências das Nações Unidas, têm alertado para a degradação galopante das condições de vida no Afeganistão. Como é que descreveria a situação atual?
O Afeganistão está a tornar-se na maior catástrofe humanitária do planeta. As pessoas estão à beira de morrer à fome. Dois milhões e oitocentas mil pessoas enfrentam já problemas de insegurança alimentar. Nós nunca vimos tanta gente a enfrentar tempos tão duros, circunstâncias tão brutais.
Para além do que aconteceu em agosto (e o desenvolvimento dos acontecimentos desde então), tem havido uma seca extrema em todo o país, o que fez cair a produção alimentar, temos a pandemia (que também levou ao aumento de preços).
Há meses que avisamos a comunidade internacional, os nossos doadores, o mundo que estávamos à beira de uma catástrofe humanitária e que as coisas já eram muito desesperantes.
E agora, juntamente com a violência, a incerteza, as alterações climáticas, a raiva despoletada pelo conflito, o colapso dos serviços públicos, uma profunda crise económica. Tudo isto está a conduzir o país para o precipício.
Estamos a atingir um ponto sem retorno. Se queremos olhar em frente, temos de trabalhar de uma forma incrivelmente rápida. Temos de acelerar os nossos programas e operações, para ter a certeza que não deixamos ninguém para trás, que ninguém passa fome. Para isso precisamos de financiamento tão rápido quanto possível, para realmente preenchermos estas necessidades. Estou a falar de qualquer coisa como 220 milhões de dólares, por mês no próximo ano.
Entre todos esses fatores há algum que tenha pesado mais para chegarmos a este quadro?
É um efeito dominó. O conflito, ao longo dos últimos 20 anos, matou milhares de civis inocentes no Afeganistão. Nós estamos cá há mais de 60 anos. Somos a maior organização humanitária a atuar no país. Consolidamos o nosso espaço. Vamos continuar por cá. Estamos comprometidos. Mas quando as pessoas ainda são afetadas por todos estes efeitos. O crescimento dos preços da comida, o conflito, a mudança climática, a pandemia. Tudo isto criou uma nova classe de esfomeados no Afeganistão.
Se olharmos para algumas das cidades que eram, de certa forma, pertença da classe média. E que agora se estão a transformar em bolsas de fome. Ou seja, moradores urbanos ameaçados pela insegurança alimentar num nível muito semelhante ao das comunidades rurais. Comunidades agrícolas, pequenos agricultores de subsistência. Já quase não há diferenças.
Uma colega minha contava-me que na semana passada, em Mazar-e-Sharif, encontrou com uma mulher que lhe disse: "nós queremos trabalhar. Estamos muito gratos pela assistência alimentar. Mas nós queremos voltar a cultivar a nossa comida. Queremos ser capazes de produzir". Isso é algo que tem de nos deixar otimistas em relação aos meses e anos que aí vêm.
Portanto sim, a crise alimentar foi potenciada por uma espiral de crise económica, em cima de anos de conflito, de seca, o surgimento da Covid-19, inflação, escassez de dinheiro, desemprego, salários por pagar, a retirada da ajuda internacional e o congelamento de alguns dos ativos do país.
Mas este inverno vai ser muito determinante para os afegãos. Vai ser um inverno duro, vai ser um inverno pesado e isso vai obrigar muitas famílias a deixarem as casas onde moram. A dirigirem-se para diferentes partes do país ou mesmo a cruzar a fronteira e enfrentarem a fome. A menos que a ajuda humanitária possa chegar ao terreno, e a menos que a economia do país possa ser revitalizada.
Ainda há tempo para reverter esta situação ou já é tarde?
Quando temos milhões de pessoas ameaçadas pela fome, isso não nos dá tempo. Isso não ajuda ninguém. Portanto o dinheiro que ainda precisamos no imediato são 24 milhões de dólares. Que vão servir para segurança alimentar, programas nutricionais e outras atividades. Quando temos quase 23 milhões de pessoas a caminho da fome, crianças que já estão subnutridas, famílias que não sabem quando nem de onde virá a próxima refeição. Há histórias de famílias que vendem membros das suas famílias e depois têm de enfrentar isso... Isso não é esperança. Isso é uma crise. Isto é uma catástrofe.
Quais são as maiores dificuldades que encontram para chegar até às pessoas? É só uma questão de dinheiro?
No Afeganistão há pelo menos um milhão de crianças que correm o risco de morrer de fome. O que é que fazemos em relação a isso? Temos de intensificar os tratamentos para evitar que essas crianças se tornem ainda mais subnutridas. Isso é tratamento, mas também prevenção.
Estamos a expandir os nossos programas. Já entregamos vales eletrónicos, para comida, para bens de primeira necessidade. Já fazemos tudo isto. Mas tudo isto precisa de ser financiado.
Metade da população vive num quadro de insegurança alimentar. Mas quase 9 milhões já não conseguem encontrar comida.
A nossa necessidade de financiamento é enorme. Isso significa 200 milhões de dólares até ao fim do ano.
Portanto sim, a questão do dinheiro é crítica. Porque nós temos capacidade para trazer comida, uma cadeia de distribuição, temos boas relações com os países vizinhos. Mas nós temos de ter os recursos necessários para conseguir fazer chegar os alimentos aqueles que mais precisam deles.
Como é que tem sido o vosso trabalho nos últimos meses?
O PAM é um parceiro muito respeitado no Afeganistão. Nós trabalhamos com os nossos parceiros, com diferentes agências, etc. Para podermos entregar comida.
O maior problema será quando começar o inverno. E algumas das estradas talvez se tornem intransitáveis por causa da neve nas zonas mais remotas. Esse é o relógio que está em marcha, essa é a nossa corrida contra o tempo. Sermos capazes de posicionar no terreno comida, certificarmo-nos que temos os alimentos adequados para que as pessoas possam atravessar os meses frios que nos esperam.
Diria que as crianças são as mais expostas ou a situação é tão má que já não há diferenças?
As crianças são sempre as mais afetadas nestas situações. Vemos os efeitos da pandemia nas gerações mais novas. Mas quando são obrigadas a crescer entre a violência e os conflitos, estão perdidas a certo nível. Se juntarmos a isso com a falta de comida, famílias que perderam os rendimentos. Qualquer pessoa que tenha filhos, ou sobrinhos, ou que conheça jovens, sabe que a inocência das crianças é poder brincar, rir e ficarem encantadas com novas coisas. Portanto, temos que dar alguma coisa às crianças para que elas possam ter esperança. Isso é algo em que temos de trabalhar de forma muita dura para podermos devolver e termos a certeza que elas têm o futuro que merecem.
