Há um "genocídio deliberado e intencional" em Gaza, diz o novo diretor da Amnistia Internacional Portugal
João Godinho Martins desafia os governos europeus a reconhecê-lo, "nomeadamente Portugal". Vai dizê-lo a Paulo Rangel. Na primeira grande entrevista, à TSF, o novo responsável pela Amnistia Internacional em Portugal fala também da Arábia Saudita, Irão, Angola e Moçambique, Rússia e Ucrânia
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Peguemos em alguns dos relatórios que a Amnistia foi divulgando nos últimos tempos. O mais recente é sobre o país onde vive o Cristiano Ronaldo, a Arábia Saudita. Há uma escalada alarmante de execuções na Arábia Saudita, incluindo cidadãos estrangeiros e de menores condenados por crimes relacionados com drogas. Este relatório foi divulgado esta segunda-feira. Qual é o apelo que a Amnistia Internacional faz neste caso? Qual é a dimensão do problema?
A Amnistia identifica ou identificou um disparidade também entre o que são as penas para nacionais e as penas para imigrantes. Depois, há a questão do tipo de crimes que é cometido e o tipo de crimes que dá direito a determinadas sentenças e, em terceiro lugar, obviamente, o que a Amnistia pede ou tem pedido e exercido pressão é sobre o final da pena de morte. Estamos a falar do direito à vida. É um direito que consideramos absoluto e que em nada em nada resolve os possíveis problemas que a Arábia Saudita possa ter. Embora nos pareça a nós que não tem nenhum, porque entre entre mundiais e corridas de Fórmula 1, todos nós gostamos de olhar para a Arábia Saudita.
A Arábia Saudita é o reino da pena de morte?
É um dos reinos da pena de morte, se calhar temos o reino da pena de morte, mas depois também temos a República Islâmica da pena de morte, que é o Irão.
Embora os números da Arábia Saudita sejam muito superiores, aparentemente 1816 pessoas em pouco mais de uma década, dá cerca de 165, em média, por ano. Quase uma pessoa a cada dois dias é condenada à morte na Arábia Saudita. 345 execuções realizadas o ano passado, registadas pela Amnistia Internacional. Mas a Arábia Saudita não é tratado como um pária pelo Ocidente, como acontece com outros países, até referiu o caso da República Islâmica do Irão. Aliás, dos Estados Unidos a Israel, da China aos Europeus e agora até o próprio Irão numa aproximação promovida em parte pela China, todos querem ter boas relações com Mohammed bin Salman, o príncipe regente.
É verdade, toda a gente gosta de ter amigos com dinheiro. Sim, sim. O Irão, o Iraque e a Arábia Saudita são os três países com mais pena de morte, onde a pena de morte é mais usada como uma arma de repressão. E a Arábia Saudita, quer dizer, em termos de respeito pelos direitos humanos, em termos de guerras que têm civis como alvo direto, à Arábia Saudita está em muitos tops. A Guerra do Iémen durou anos e anos e ainda dura, de alguma forma, o envolvimento da árabe Saudita noutros cenários de de guerra, a questão dos migrantes…
A questão das minorias… também o recurso à pena de morte por parte desta monarquia sunita em crimes relacionados com alegados atos terroristas praticados pela minoria xiita; pelo que li, 10% da população são xiitas e foi alvo de quase metade das execuções.
Não me surpreende. É um número que estará em linha com o que tem sido o poder discricionário de Muhammad Bin Salman. Aliás, a guerra contra o xiismo acontece também no Iémen onde a família Al-Houthi continua a lutar contra a Arábia Saudita e onde a população iemenita que nada tem a ver com estas possíveis disputas, tem sofrido imenso nos últimos 10 anos.
Na Faixa de Gaza, evidências recolhidas pela Amnistia Internacional, demonstram como, mais de um mês após a introdução do sistema militarizado de distribuição de ajuda, Israel continuou a usar a fome de civis como arma de guerra contra os palestinianos na Faixa de Gaza ocupada e de impor deliberadamente condições de vida calculadas para provocar a destruição física como parte do genocídio em curso. Isto li num relatório da Amnistia Internacional. Não tem duvidas então… entende e reafirma que o que se passa em Gaza é um genocídio?
Deliberado e intencional, estas são as palavras-chave. Porque as mortes todos nós vemos na televisão todos os dias, são inegáveis. O poderoso exército Israelita e a poderosa tecnologia de guerra atacam civis indiscriminadamente.
Israel rebate isso e diz que o exército atua sempre de acordo com padrões morais.
Depende da moralidade de cada um. Imagino eu, mas não há não, os padrões morais não são o que ratificamos. O que ratificamos são as Convenções de Genebra e que Israel e todos os países ratificaram. E é isso que temos que cumprir. É a lei humanitária Internacional. Israel ataca indiscriminadamente, isso vemos todos. Acho que não há ninguém que o negue. Outra coisa é ser deliberado e ser intencional. E foi esse o trabalho que a Amnistia Internacional fez, foi esse trabalho de pesquisa e esse estudo que foi feito de declarações, de documentos de ordens dadas na hierarquia militar e que está provado. Não é só a Amnistia Internacional que o diz, está provado que foi genocídio. Agora é preciso que haja mais a dizê-lo. E entre os mais que que têm que dizê-lo, estão os Estado europeus e, nomeadamente, Portugal, que tem que olhar para as evidências e dizer o que toda a gente sabe: há um genocídio a acontecer e nós temos que escolher de que lado é que queremos estar. É só há dois lados, há um lado contra o genocídio e há um lado do genocídio e nós temos que escolher onde queremos estar.
Está a dizê-lo através dos microfones da TSF, mas vai logo que possível dizê-lo, ou será que já o disse também, ao Governo português?
A Amnistia já o disse várias vezes. E eu, acabado de chegar, convidei o Doutor Paulo Rangel para uma reunião de apresentação, onde espero poder falar com ele e sei que é um homem e um político consciente e que que tem feito bastante na Europa e em Portugal e creio que mostradas as evidências, ele não terá como negar. Gostaríamos obviamente de falar com ele e poder-lhe transmitir isto.
O acordo de cessar fogo, que estará a ser fabricado deve mesmo contemplar o regresso da ajuda alimentar às Nações Unidas e o fim desta chamada Fundação Humanitária de Gaza?
Esta fundação humanitária de Gaza tem tudo menos de humanitária, talvez em Gaza seja, fundação não sei, mas humanitária não é de certeza. O que nós temos aqui é uma armadilha mortal. Desde que foi implementada 600 pessoas morreram. Fazem-se anúncios de distribuição de alimentos, de combustível e de abrigo que não se deixa mais ninguém transportar para Gaza, organizações como as diferentes agências das Nações Unidas ou outras ONGs humanitárias, como a Cruz Vermelha ou os Médicos Sem Fronteiras, não podem fazer esta distribuição. Pede-se às pessoas famintas para vir a um ponto e são recebidas a tiro. E é isto que está a acontecer em Gaza.
O Hamas é quem ainda manda na Faixa de Gaza, além dos militares israelitas em boa parte do território… houve um comunicado da Amnistia Internacional sobre o facto de as autoridades da Faixa de Gaza deverem respeitar o direito à reunião pacífica e à liberdade de expressão e cessar a repressão contínua dos manifestantes. A Amnistia Internacional documentou um padrão preocupante de ameaças, intimidação e assédio, incluindo interrogatórios e espancamentos por forças de segurança controladas pelo Hamas contra indivíduos que exerciam o seu direito de protesto pacífico no meio de um genocídio em curso por parte de Israel e à recente escalada dos bombardeamentos e expansão das deslocações em massa… Outro grande drama dos palestinianos é saberem que o futuro daquele território poderá ter sempre militares israelitas ou militantes do Hamas ou até ambos em simultâneo?
Sim. Repare… é uma pergunta bastante importante porque denunciar o que Israel faz todos os dias, quem denuncia o que Israel faz, quem denuncia o genocídio não é prá-Hamas. A Amnistia Internacional é uma organização independente, neutra e imparcial. O que nós dizemos é que o que está a acontecer com Israel, o genocídio que se está a cometer, mas também falamos do que acontece com o Hamas, também falamos do que foram os ataques do Hamas no 7 de Outubro. É importante que a opinião pública saiba o que se está a passar agora e também é importante que se faça neste momento um balanço do que está a acontecer de parte a parte.
Já aqui falou na Convenção de Genebra, presumo que já tenham sido mais respeitadas as regras da guerra noutros conflitos, mas de qualquer forma, é mais ou menos constante a falta de respeito pelos civis e infraestruturas civis nas guerras, em todas as guerras, as convenções não serem respeitadas. Voltou a acontecer isso nesta guerra de 12 dias entre o Israel e o Irão?
Voltou, voltou a acontecer isso de parte a parte. Da parte de Israel e da parte do Irão, ambos os países não nos surpreendem pelo seu histórico de desrespeito pela lei Internacional, mas voltou a acontecer. E até posso seguir o raciocínio de que há uma erosão da lei humanitária e do respeito pela lei humanitária. E é preciso lembrar quando é que esta lei humanitária, quando é que as Convenções de Genebra apareceram, foi no seguimento da Segunda Guerra Mundial e no seguimento do Holocausto. Não é irónico, mas é triste que, neste momento, um dos Estados que mais desrespeita a lei Internacional é um Estado…
Que foi vítima do Holocausto…
E que foi uma das razões pelas quais temos direito Internacional. É preciso lembrar estas coisas.
Na verdade, foi o Estado que foi criado na sequência de Holocausto.
E o povo que foi vítima, brutal e continua a ser.
Há um relatório vosso de Abril sobre Moçambique, protestos sobre ataques, violações dos direitos humanos durante a vaga de repressão após as eleições de 2024. Moçambique é também uma fonte de preocupação de uma amiga Internacional?
Sem dúvida. A Amnistia Internacional ao nível global tem várias preocupações. Entre a Amnistia Internacional em Portugal e os nossos escritórios na África do Sul estamos muito atentos ao que está a acontecer em Moçambique e tivemos oportunidade de passar essas mensagens aos nossos governantes. Agora, quando receberam os governantes em Moçambique. O que aconteceu? Não é normal, pessoas morreram. Manifestações foram paradas. Jornalistas membros da oposição assassinados a sangue frio na rua. Não, não, não podemos virar a página como se fosse mais uma história normal vinda de Moçambique. Não é Moçambique. É muito mais do que isso e tem que ser muito mais que isso.
O relatório documenta como as forças de segurança moçambicanas dispararam armas letais, gás, gás, lacrimogénio e balas de baixa contra manifestantes e transeuntes, incluindo crianças. Em Angola, que tão bem conhece, também tem havido sérias limitações à liberdade de manifestação, pelo menos…
Desde já, de um ponto de vista legal, com leis criadas que limitam jornalistas e limitam ONGs. Depois, na prática, tudo o que é feito em termos de limitação a manifestações, limitação à liberdade. Obviamente que, houve se calhar, uma esperança de alguns que, com a mudança não de regime mas de políticos em Angola, as coisas mudassem, mas não é isso que estamos a observar.
Temos guerra na Europa. O que é que viu na Ucrânia, o que é que mais o preocupa especificamente neste conflito intensificado após a invasão russa em larga escala em fevereiro de 2022?
A Ucrânia foi um dos contextos mais difíceis por onde passei. Eu entrei na Ucrânia pelo Sul, ainda a periferia de Kiev era ocupada pelo exército russo. E acabei por, na altura, com a organização onde trabalhava, abrir os escritórios em Kiev, poucos dias após a saída dos russos de Busha. O que vi? Medo, morte, incapacidade de lidar, de compreender. Eu nunca tinha estado na Ucrânia, mas Kiev, Lviv, são cidades como Lisboa. É diferente, muitas vezes, do que vemos na televisão. Estamos habituados a contextos de guerra em países mais pobres, não? A Ucrânia é um país do mesmo nível de desenvolvimento de Portugal em termos do que era visível. E, realmente foi um impacto bastante grande e eu estive também em Karkhiv. Ainda havia bastantes bombardeamentos e era uma cidade de mais de 1 milhão de pessoas completamente abandonada, com populações mais idosas deixadas para trás, pessoas com deficiência que não conseguiam fugir. E tudo isto sob um clima de tensão enorme. Eu estava lá quando nos primeiros dois ou 3 meses, António Guterres visitou e Kiev foi altamente bombardeada, eu estava também em Kiev nessa altura. É realmente uma agressão absurda que só se compreenderá de um ponto de vista completamente maquiavélico do Estado russo e que tem obviamente detalhes, ataques de infraestruturas civis, ataques a ambulâncias, ataques a hospitais. Tudo o que o manual, tudo o que as regras dizem que não deve acontecer, Vladimir Putin faz na Ucrânia.